sábado, 8 de outubro de 2011

Hermilo Borba Filho

Hermilo Borba Filho (Hermilo Borba Carvalho Filho), jornalista, romancista, folclorista e teatrólogo, nasceu em Palmares, PE, em 08/07/1917, e faleceu em Recife, PE, em 02/06/1976.

Começa a carreira na década de 1930, como ator, ponto, autor e diretor na Sociedade de Cultura Palmarense. Em 1936, muda-se para o Recife e trabalha como ponto do Grupo Gente Nossa - GGN, de Samuel Campêlo.

Na década de 1940, ingressa no Teatro de Amadores de Pernambuco - TAP, traduzindo peças e atuando nos espetáculos. Insatisfeito com a linha de repertório do grupo, é convidado e assume a direção artística, em 1945, do Teatro do Estudante de Pernambuco - TEP. Para a estréia escolhe as peças O Segredo, de Sender e O Urso, de Anton Tchekhov que fazem parte de um mesmo espetáculo em 1946.

Mais tarde, o TEP monta uma barraca em praça pública, onde realiza várias montagens, entre elas, as primeiras peças de Ariano Suassuna e do próprio Borba Filho.

Em 1953 muda-se para São Paulo, onde trabalha como jornalista, diretor de teatro e faz parte da Comissão Estadual de Teatro. Em 1957, recebe prêmio como diretor revelação pela Associação Paulista de Críticos Teatrais - APCT, com a peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Volta para o Recife, em 1958, a fim intergrar o corpo docente do curso de teatro da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco - UFPE). Funda o Teatro Popular do Nordeste, em 1960, com o objetivo de abrir caminho para o "teatro de arte" em caráter profissional na região.

Nos primeiros anos da década de 1960, monta diversas peças de Ariano Suassuna, como A Pena e a Lei, A Farsa da Boa Preguiça e A Caseira e a Catarina. A primeira fase do TPN é interrompida, por razões financeiras e também políticas, em 1962, após a encenação de Município de São Silvestre, de Aristóteles Soares.

Hermilo Borba Filho funda, simultaneamente ao TPN, em 1960, o Teatro de Arena do Recife, onde encena Marido Magro, Mulher Chata, de Augusto Boal, 1960, e Eles Não Usam Black-Tie de Gianfrancesco Guarnieri, 1961.

Em 1966, retoma as atividades do TPN com O Inspetor, recriação de O Inspetor Geral, de Nicolai Gogol, a partir da teatralidade e das técnicas das festas populares nordestinas. Dirige em seguida O Santo Inquérito, de Dias Gomes, e Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, ambos em 1967, e Dom Quixote, de Antonio José, o Judeu, 1969. No ano seguinte, encena Cabeleira Aí Vem, de Sylvio Rabello, BUUUM, de Osman Lins e José Bezerra, Município de São Silvestre, de Aristóteles Soares, O Pagador de Promessa, de Dias Gomes, O Cabo Fanfarrão, de Hermilo Borba Filho, Antígona, de Sófocles, e Andorra, de Max Frisch.

Para contornar o déficit permanente da companhia, Borba Filho tenta atrair os operários e os estudantes, faz convênios com entidades do comércio e da indústria, mas não consegue pagar as dívidas e fecha o teatro de 90 lugares.

Em entrevista para o Serviço Nacional de Teatro - SNT, questionado sobre se algum dia ganhou dinheiro com teatro, Hermilo Borba Filho se refere à montagem de Dercy Gonçalves para sua versão de A Dama das Camélias como exemplo único, e acrescenta: "mas, de repente, verifiquei que a prostituição era muito pesada, e parei".

Entre 1959 e 1968, é diversas vezes premiado como diretor pela Associação de Críticos Teatrais de Pernambuco. Em 1969, ganha o título de Chevalier de L'Ordre des Arts et des Lettres, outorgado pelo governo da França.

Exerce atividades culturais em muitas entidades: Serviço Nacional de Teatro, Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo, Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, Escolinha de Arte do Recife, Centro Cultural Luiz Freire. Na Universidade Federal de Pernambuco, cria e ministra a cadeira de história do teatro no Curso de Arte Dramática, em 1958; funda o Movimento de Cultura Popular - MCP, com Paulo Freire, Ariano Suassuna e outros; na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, colabora para a implantação do Curso de Teatro, em 1967; na Universidade Federal da Paraíba, ministra a disciplina de história do espetáculo; no Centro de Comunicação Social do Nordeste - Cecosne, leciona história do espetáculo. Em 1969, cria Teatroneco, dedicado ao teatro de bonecos.

Como crítico de teatro colabora, em São Paulo, para os jornais Última Hora e Correio Paulistano, além da revista Visão e, em Pernambuco, para Folha da Manhã, Jornal Pequeno, Diário da Noite, Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio e Jornal da Cidade.

O trabalho de Hermilo Borba Filho, nos grupos que funda, é o de criar um caminho para buscar um espetáculo nordestino, com uma estética épica, baseada nos folguedos populares. Em conferências, artigos e nos diversos livros que publicou, relê as teorias universais do teatro a partir da ótica das manifestações festivas do Nordeste.

Depois de duas palestras publicadas em 1947, Teatro, Arte do Povo e Reflexões sobre a Mise en scène, escreve o primeiro manual de história do teatro editado no Brasil, História do Teatro, em 1950.

Nos anos 1960, publica, entre outros: Teoria e Prática do Teatro, 1960, Diálogo do Encenador, 1964, Espetáculos Populares do Nordeste e Fisionomia e Espírito do Mamulengo, ambos em 1966, Apresentação do Bumba-Meu-Boi, 1967, e a nova edição da História do Teatro, com o título de História do Espetáculo, 1968. Seus estudos sobre a cultura nordestina se aprofundam no período do TPN, onde ele coloca em prática a fusão entre o popular e o erudito.

Osman Lins, de quem ele encena uma peça no TPN, afirma, em artigo para a Revista de Teatro da Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais, que em todos os cargos e funções que ocupa Hermilo Borba Filho luta pela transformação: "Há por trás de quase todos esses títulos e iniciativas um combate que passa desapercebido do público: as incompatibilidades com as funções ou o empenho no sentido de renová-las".

Em artigo para o Diário de Pernambuco, quatro anos após sua morte, Benjamin Santos, ex-integrante do TPN, escreve: "Durante a fase final de uma montagem, Hermilo já estava adaptando, traduzindo e concebendo o próximo espetáculo [...]. Outras características do TPN: revezamento de papéis importantes, divulgação do nome do grupo e não de atores isolados, formação de atores pela montagem sucessiva de espetáculos em função da estética procurada, incentivo ao estudo e à reflexão, formação de pessoal paralelo ao palco (cenógrafos, figurinistas, aderecistas...) [...]. Mais importante, porém, que todos esses aspectos encontrados é a concretização de uma estética do espetáculo. [...] Em resumo, seria um teatro com o canto, a dança, a máscara, o boneco, o bicho... uma recriação do espírito popular nordestino [...]; o homem brasileiro posto no palco com toda a sua luta, o sofrimento, a derrota, a insistência, a vitória; um teatro de intensidade emocional e crítica, um teatro vivo, aberto, sem a ilusão da quarta parede, permitindo ao público a compreensão maior de sua própria história. O teatro como um ato político e religioso a um só tempo. Esta é a busca de Hermilo [...]".

Fontes: Enciclopédia Itaú Cultural - Teatro; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e PubliFolha.
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O cachorro atropelado

Lembro-me de uma crônica que li não sei onde, nem sei quando. Escapa-me também o nome do autor. Se não me engano, era brasileiro. Não, não era brasileiro. E o assunto era a influência da distância nas leis da emoção.

Vejamos o que dizia o cronista. Dizia que um atropelamento de cachorro na nossa porta, pelo fato de ser na nossa porta, teria mais apelo emocional do que Hiroshima.

Sabemos que, em Hiroshima, morreu um mundo e nasceu outro. A criança de lá passou a ser cancerosa antes do parto. Mas há entre nós e Hiroshima, entre nós e Nagasaki, toda uma distância infinita, espectral. Sem contar, além da distância geográfica, a distância auditiva da língua.

Ao passo que o cachorro é atropelado nas nossas barbas traumatizadas. E mais: — nós o conhecíamos de vista, de cumprimento. Na época própria, víamos o brioso vira-lata atropelar as cachorras locais. Em várias oportunidades, ele lambera as nossas botas. E, além disso, vimos tudo. Vimos quando o automóvel o pisou. Vimos também os arrancos triunfais do cachorro atropelado.

Portanto, essa proximidade valorizou o fato, confere ao fato uma densidade insuportável. A morte do simples vira-lata dá-nos uma relação direta com a catástrofe. Ao passo que Hiroshima, ou o Vietnã, tem, como catástrofe, o defeito da distância.

Não sei se estou dizendo o óbvio. Não importa. Toda a história humana ensina que só os profetas enxergam o óbvio.

Seja como for, achei a crônica citada de uma sagacidade deliciosa. Muito tempo depois, sinto, na própria carne e na própria alma, a influência da distância nas leis da emoção.

Imaginem que recebo de Natal este súbito e inapelável telegrama: — "Sua Peça 'Toda Nudez' Quase Pronta, Elenco Ensaiando, Artistas Unidos Grupo Vencedor Festival Pascoal, Censura Proíbe Em Todo Território Nacional. Que Podemos Fazer? Abraços etc. etc.".

Este o telegrama. A princípio, a proibição me pareceu espantosamente irreal. Toda nudez será castigada foi levada em 1965 no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Não sofreu o corte de uma vírgula. Ao terminar o ensaio geral, os seus três censores, inclusive Ayres de Andrade, aplaudiram, de pé, o texto e o espetáculo. E por que, e a troco de que, de repente, vem a censura e impõe uma interdição bestial? Só vejo duas hipóteses: — ou é má-fé cínica, ou obtusidade córnea, ou ambas.

Ora, eu sou o sujeito mais próximo de mim mesmo e de minha obra. E a coisa repercutiu brutalmente em mim.

Se me perguntarem qual foi a minha primeira reação, eu diria: — a vergonha de ser brasileiro. Tive, sim, uma vergonha total e como que o arrependimento de ter nascido aqui. Estou, porém, diante do fato consumado. O telegrama faz a pergunta, sem lhe achar a resposta: — "Que faremos?".

Sim, que faremos? Agora, vou ficar esperando um manifesto, uma passeata e uma greve. Tenho vinte e tantos anos de vida autoral e sofri seis interdições (cinco peças e um romance). Por uma singular coincidência, nas seis oportunidades, não mereci a solidariedade de ninguém. Álvaro Lins, em plena atividade crítica, limitou-se a dizer: — "Nelson Rodrigues deixou de ser um problema literário. É um caso de polícia".

Dr. Alceu hipotecou a sua veemente solidariedade à polícia.

No fundo, os nossos intelectuais achavam que eu era mesmo obsceno e que devia ser mesmo interditado.

Mas as coisas mudaram. E, se as coisas não mudaram, mudou o dr. Alceu. E espero um artigo do dr. Alceu. Todo santo dia hei de comprar o Jornal do Brasil. Quero ver o nosso Tristão de Athayde, com a sua nobilíssima indignação, fulminar o crime contra a inteligência. E também penso na classe teatral, que é a minha. Vocês não são de teatro, nem sabem nada. Mas a classe teatral é um comício nato.

Nas suas assembléias, há iras sublimes. Pois eu gostaria de ver as indignações da classe teatral salvando a minha peça.

Recentemente, entrei numa greve dos meus colegas. Levei-lhes a minha comovida solidariedade. E mais: — sentei-me na escadaria do Teatro Municipal. Embora não visse em tal ato nenhum heroísmo, sentei-me com os outros. Estavam todos indignados; hipotequei-lhes a minha indignação. O motivo da greve era também a interdição de uma peça, ou duas, não me lembro mais.

Em seguida, houve uma nova greve. Por que, já não sei. A minha solidariedade tem um automatismo inexorável. Juntei-me aos colegas. Todos os teatros deviam cerrar suas portas. E só um permaneceu escandalosamente aberto: — o da sra. Eva Todor.

Imediatamente, despachou-se um piquete aguerrido. A atriz estava no palco representando e ganhando o pão. Impediram-na de representar e de ganhar o pão.

Vejam vocês como há, de autor para autor, dessemelhanças irritantes de sorte. A classe trata os outros a pires de leite. E eu, mais interditado do que qualquer um, sempre estive em crudelíssima solidão. Alguém dirá que falo assim por despeito, por ressentimento. Não nego. Sou despeitado e sou ressentido. Mas tenho atenuantes.

Nas minhas seis interdições, ninguém impediu a sra. Eva Todor de trabalhar. Quero crer que chegou o grande momento. Interditaram Toda nudez será castigada. É hora, pois, de mandar a sra. Eva Todor devolver o dinheiro das entradas.

Realmente, mais que uma assembléia da classe, mais do que uma greve, estou interessado numa passeata. Sim, um desfile contra a interdição de Toda nudez será castigada.

Há, em qualquer brasileiro, uma alma de cachorro de batalhão. Passa o batalhão e o cachorro vai atrás. Do mesmo modo, o brasileiro adere a qualquer passeata. Aí está um traço do caráter nacional.

Mas já não sei se quero mesmo a passeata. Em passado recente, houve um desfile patético. Cem, duzentos cartazes dando morras ao imperialismo. O diabo é que, em vez de morte, estava lá escrito "muerte". Imaginem se há a passeata em favor da minha peça.

Cem, duzentos cartazes dando morras à censura em castelhano. Em tal caso, eu teria também vergonha de ser brasileiro.

[13/5/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Alienação

Faço anos dia 23 de agosto e confesso: — tenho, como o José Lino Grünewald, a alma do aniversariante. Nos meus sete, oito anos, minha família nem sempre teve uma fatia de pão com um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Não importa. Mesmo sem uma mísera cocada, sem uma mísera mãe-benta, eu celebrava, sozinho, a feliz data.

E, hoje, quero crer que o aniversário apagado e triste é mais lindo. Também o José Lino Grünewald sabe fazer anos como ninguém, e repito: — é um aniversariante vocacional.

Muito bem. Fiz esta introdução para dizer o seguinte: — lembro-me, com implacável nitidez, de cada dia 23 de agosto de minha vida.

Dirão vocês que dou muita importância a meu próprio aniversário. Exato, exato. Dou, sim, uma importância capital. Todavia, há um 23 de agosto que me doeu com uma pungência mais aguda. E isso por dois motivos: — primeiro, porque eu fazia anos; e, segundo, porque era véspera de um suicídio histórico. Vocês já perceberam que falo de Getúlio.

Um suicida não se improvisa, assim como não se improvisa o artista, o poeta, o mágico, o mímico, o arquiteto. Portanto, teremos de antedatar a tragédia getuliana. Não sei se me entendem e tentarei explicar. O suicídio é anterior a si mesmo. Começa muito antes e direi mesmo: — começa no berço. Não sei se cabe falar em gesto nato.

Ao vir ao mundo, o homem traz um repertório de atos facultativos e de atos obrigatórios. Quando Getúlio nasceu, o tiro no peito estava inserido entre seus gestos obrigatórios.

Em 30, ao assumir o poder, já era o suicida. E, dia após dia, foi ainda e sempre o suicida. Até que, já aos setenta anos ou pouco mais, matou-se. Mas atirou no peito. Não estourou os miolos, como o faria um suicida banal. Quis preservar o rosto, o último rosto, para a história, para a lenda. O povo quer olhar a cara do líder morto.

Mas o que eu queria dizer é o seguinte: — Getúlio foi o último grande enterro do Brasil. Parou a cidade, parou o Brasil.

Lembro-me de uma crioula, de gloriosas ventas raciais, que desmaiou junto ao caixão. Foi levada, arrastada por dois ou três. Que crioula, gorda como a babá de ...E o vento levou, retinta como a babá de ...E o vento levou, que crioula, repito, desmaiaria por um morto contemporâneo?

Somos 80 milhões. Examinemos, um por um, os 80 milhões. Façamos um censo de possíveis defuntos. E chegaremos à conclusão de que ninguém, no momento, justificaria um grande enterro. Por isso, falo na solidão do Brasil. Não há a perspectiva do "grande enterro" porque não há "grande homem" para enterrar.

Parece enfático falar em "solidão do Brasil". Mas é a límpida e inapelável verdade. E como é árida a época que não consegue dar um defunto monumental!

De repente, entendemos o mistério brasileiro. Somos uma rala, uma tênue orla litorânea. O que existe, fora de nós, é uma imensa sibéria florestal. E nunca o deserto siberiano daria um radiante cadáver.

Aqui, passo às nossas esquerdas. Sou uma flor de obsessão e, nos meus últimos escritos, tenho insistido no papel e destino das esquerdas brasileiras. Elas não faziam nada, senão beber no Antonio's, dourar-se na praia e rabiscar nos suplementos dominicais. Até que uma data universal deu-lhes a oportunidade sonhada: — o 1º de maio. As esquerdas se prepararam para entoar o que se chama, em ópera, o dó de peito.

No mesmo dia 1º de maio, o Estádio Mário Filho apresentava um Flamengo x Vasco. O paralelo pode ser feito nos seguintes termos: — o jogo trouxe, em seu ventre, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E ao comício compareceram apenas os oradores. Minto. Em verdade, compareceram alguns familiares dos oradores. E o comício foi desses fatos íntimos, confidencialíssimos.

O pior vocês não sabem. O pior é que, em pleno e furioso ato cívico, dois ou três oradores ligaram o rádio de pilha e ficaram ouvindo o jogo. Travou-se, ali, um duelo inesperado entre as duas retóricas: — de um lado, a libertária; de outro lado, a futebolística.

Enquanto em São Cristóvão o orador fazia anti-imperialismo, no Mário Filho o locutor tratava de botinadas.

No dia seguinte, encontro-me com um esquerdista feroz. Numa cava depressão, gemeu: — "Como pode? Como pode?". Ele não entendia os quinze gatos pingados do comício e as 200 mil pessoas do jogo. E, por uma boa meia hora, rosnou de impotência e frustração. Por fim, despediu-se.

Mas estava de pé o problema, a saber: — por que o povo ignora as esquerdas? Pelo simples motivo de que as esquerdas também ignoram o povo. Não se conhece, na Terra, caso mais prodigioso de alienação.

Por outro lado, volto ao dado fúnebre, que me parece decisivo: — onde não há perspectiva de "grande enterro", também não é viável o "grande comício". E vêm as esquerdas e começam a falar do Vietnã, de Cuba, dos Estados Unidos.

Se o problema é racismo, falam do norte-americano. E não há uma palavra, ou um palavrão, em favor do negro brasileiro. Simplesmente, o nosso negro não existe. Poderão objetar que não há racismo em nosso país. Como não há, se nunca vimos um negro de casaca?

Mas a fatal alienação das esquerdas começa na própria língua. Já citei uma passeata recente.

Vários cartazes davam morras ao imperialismo. Mas a palavra escrita, a piche, era "Muerte". Não morte, e sim "Muerte". Os gaiatos odiavam em castelhano, queriam matar em castelhano. Punham sotaque até nos cartazes. Claro que ali se insinua a influência cubana.

Mas Cuba é uma Paquetá ou, se preferirem outra imagem, eu diria que é uma pulga e o Brasil um fabuloso elefante geográfico. A troco de que a pulga vai montar no elefante? Os gringos das nossas esquerdas representam o anti-Brasil, a negação do Brasil. As esquerdas não entendem o povo, nem o povo as entende.

[10/5/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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