segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Terreno baldio

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.

Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — "Eu vi tudo e sei tudo". Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana.

O mérito não é nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente. E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão.

O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das "entrevistas imaginárias". Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto.

Fascinou-me a "entrevista imaginária". Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia.  Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências.

Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

Fiz "entrevistas imaginárias" com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antônio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal.

"Mas quem?" — eis o que me perguntava. — "Quem?" E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — "D. Hélder!". De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística.

Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a "entrevista imaginária". À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar.

Primeira pergunta: — "O senhor fuma, d. Hélder?". Resposta: — "A entrevista é imaginária?". Acho graça: — "Ou o senhor duvida?". E d. Hélder: — "Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?". Digo: — "Caporal Amarelinho". Cuspiu por cima do ombro: — "Deus me livre! Mata rato!".

Faço a pergunta: — "Que notícias o senhor me dá da vida eterna?". Riu: — "Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?". No meu espanto, indago: — "E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?". O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — "Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta".

Ele continuava: — "O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém". D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — "Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?". Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: — "A fome do Nordeste é a fome do Nordeste".

D. Hélder estende a mão: — "Dá um dos teus mata-ratos". Acendi-lhe o cigarro. D. Hélder não pára mais: — "Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D'Arc. Já viu a nossa querida Joana D'Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!".

Lanço outra isca: — "É verdade que o senhor vai para o Amazonas?". Riu: — "Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?".

Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — "E o comunismo?". D. Hélder conta: — "Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!". Insinuei a dúvida: — "Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso". Nova risada: — "Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos".

Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — "Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda".

Desfechei-lhe a pergunta final: — "E a Presidência da República?". D. Hélder respira fundo: — "Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá". Era o fim da "entrevista imaginária".

Despedi-me assim: — "Até logo, presidente". Respondeu: — "Obrigado, irmão". E antes de partir fez a última declaração: — "Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro".

Disse isso e sumiu na treva.

[14/3/1968]
______________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Leia mais...

Furtado Coelho

Furtado Coelho - 1883
Furtado Coelho (Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado Coelho), compositor, teatrólogo, empresário, ator e poeta, nasceu em Lisboa, Portugal, em 28/12/1831, e faleceu em 13/2/1900.

Veio para o Brasil em 1856, estreando como ator em Porto Alegre RS no ano seguinte. Contratado pelo Teatro Ginásio Dramático, fixou-se no Rio de Janeiro RJ em 1858, excursionando ainda por várias cidades do país.

Como compositor, introduziu nos saraus familiares e nas tertúlias literárias a moda do recitativo, poema declamado com fundo musical composto especialmente para a ocasião.

Em 1860, fez a música da encenação brasileira do drama Dalila, de Octave Feuillet (1821—1890) — composição que alcançou imenso sucesso em todo o Brasil, tornando-se obrigatória nas serenatas familiares da segunda metade do séc. XIX e início do XX.

Em 1861, com letra da atriz Eugênia Câmara, compôs a Grande marcha acadêmica, dedicada aos estudantes de direito de São Paulo SP.

Autor de inúmeras obras teatrais, algumas musicadas, exibia-se nos intervalos das peças, executando o copofone, instrumento de sua invenção, e, ao piano, valsas e polcas de sua autoria, muitas delas editadas pela Casa de Música Narciso & Artur Napoleão.

Promoveu ainda a construção dos teatros São Luís, em 1870, e Lucinda, em 1880, no Rio de Janeiro.

Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e PubliFolha - 2a. Edição - 1998.
Leia mais...

Flávio Rangel

Flávio Rangel (Flávio Nogueira Rangel), diretor teatral, cenógrafo, jornalista e tradutor brasileiro, nasceu em Tabapuã (SP), em 06/08/1934, e faleceu em São Paulo (SP), em 25/10/1988.

Um dos principais nomes do teatro brasileiro no século 20, não foi somente o diretor de mais de 80 espetáculos no teatro e televisão.

Traduziu 19 peças, iluminou, produziu e escreveu para o teatro, preparou cinco livros, colaborou com os principais órgãos de imprensa no país e dirigiu shows musicais (Simone, Nara Leão, Raíces de América).

Participou de várias montagens do Teatro Brasileiro de Comédia, companhia que revitalizou e modernizou o teatro na década de 50 no Brasil.

Flávio nasceu em Tabapuã, no interior de São Paulo e com três anos de idade mudou-se para a capital. Estudou na Escola Caetano de Campos e no Colégio Estadual Presidente Roosevelt. Entrou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas não completou o curso. Em 1956, escreveu textos para teleteatros do Grande Teatro Tupi, mas a profissionalização veio no Teatro Brasileiro de Comédia, TBC, em 1957, com "Do Outro Lado da Rua", de Augusto Boal.

Em 1958, ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos Teatrais, pela encenação de Juventude Sem Dono, de Michael Vincent Gazzo. Em 1959, para o Teatro Popular de Arte, dirigiu "Gimba, Presidente dos Valentes", de Gianfrancesco Guarnieri. Apresentou-se no Festival do Teatro das Nações, em Paris, Roma e Portugal. Com bolsa de estudo, viajou para os Estados Unidos, onde estagiou em teatros da Broadway.

No ano seguinte, Flávio Rangel assumiu a direção artística do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Levou à cena "O Pagador de Promessas", de Dias Gomes e "A Semente", de Gianfrancesco Guarnieri. Conquistou consecutivamente os prêmios Saci, Governador do Estado de São Paulo e Associação Paulista de Críticos Teatrais, de melhor diretor. Em seguida, encenou "Almas Mortas", de Nikolai Gogol e "A Escada", de Jorge Andrade, que o fez premiado como o melhor diretor de 1961.

A temporada de 1962 começou com "A Morte de Um Caixeiro Viajante", de Arthur Miller. Depois, com "A Revolução dos Beatos", de Dias Gomes, Flávio se desligou do TBC, pensando em transpor "Gimba" para o cinema, o que só ocorreu anos depois. Em 1964 levou à cena "Depois da Queda", de Arthur Miller. Em 1965 fez "Santa Joana", de Bernard Shaw. Para o Grupo Opinião, junto com Millôr Fernandes, escreveu e dirigiu "Liberdade, Liberdade" -um dos maiores sucessos de sua carreira.

Num ato de protesto no Rio de Janeiro, foi preso com outros intelectuais, soltos após semanas de protestos da classe artística. Flávio voltou à prisão em 1970, por escrever crônicas para "O Pasquim". Foi colaborador do jornal "Folha de S.Paulo" entre 1978 e 1984.

Grandes sucessos

Em 1966, fez "O Sr. Puntila e Seu Criado Matti", de Brecht, e no ano seguinte "Édipo Rei", de Sófocles. Em 1969 lançou "À Flor da Pele" e uma versão para "Esperando Godot", de Beckett, com Walmor Chagas e Cacilda Becker, que fez seu último espetáculo. Flávio dirigiu ainda uma versão para "Hamlet", de Shakespeare, e em 1971, "Abelardo e Heloísa", de Ronald Millar. Seguiram-se "A Capital Federal", de Artur Azevedo, "O Homem de la Mancha", de Dale Wasserman, "Dr. Fausto da Silva", de Paulo Pontes, e "Pippin", musical da Broadway.

Durante a década de 1970, Flávio se dedicou a "Mumu, a Vaca Metafísica", de Marcílio Morais; "À Margem da Vida", de Tennessee Williams, com Ariclê Perez (com quem foi casado); "O Santo Inquérito", de Dias Gomes; "A Nonna", de Roberto Cossa; "Tudo Bem no Ano que Vem", de Bernard Slade; "Investigação na Classe Dominante"; e "O Rei de Ramos", musical de Dias Gomes e Chico Buarque. Também fez uma nova versão para "O Pagador de Promessas".

A partir dos anos 80, Flávio Rangel assumiu os musicais, dirigindo em 1982, "Amadeus". No ano seguinte, com "Piaf", marcou a carreira de Bibi Ferreira. "Vargas", porém, outro musical de Dias Gomes e Ferreira Gullar, gerou polêmicas com políticos do Rio. Em 1984, encenou o espetáculo "Freud, no Distante País da Alma", de Henry Denker. Sem destaque, fez "A Herdeira", baseado em Henry James, e "Negócios de Estado", comédia de Louis Verneuil.

Seu último trabalho foi "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand, em 1985, à frente da Companhia Estável de Repertório - CER. Para Flávio, o teatro era "imperecível, imortal".

Suas crônicas jornalísticas foram reunidas em quatro títulos: "Seria Cômico Se Não Fosse Trágico", "A Praça dos Sem Poderes", "Os Prezados Leitores" e "Diário do Brasil". 

Fontes:  Wikipedia; Biografia - UOL Educação.
Leia mais...