segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Fernanda Montenegro

Fernanda Montenegro (Arlette Pinheiro Esteves da Silva), atriz de teatro, cinema e televisão, nasceu no Rio de Janeiro em 16/10/1929. Descendente de portugueses e italianos, é filha de uma dona de casa e de um mecânico da Light. O nome "Fernanda" foi escolhido por ela, por ter uma sonoridade que remetia aos personagens de Balzac ou Proust. "Montenegro" veio de um médico homeopata que era amigo da família.

Por volta dos 15 anos, ainda no colégio, Fernanda começou a trabalhar como locutora e atriz de rádio-teatro na Rádio Ministério da Educação e Cultura, onde passou a fazer traduções e adaptações de peças literárias para o formato de radionovelas.

Para completar o orçamento, dava aulas de português para estrangeiros na mesma escola de idiomas em que aprendia inglês e francês.

Iniciou sua carreira no ano de 1950, na peça "Alegres Canções nas Montanhas", ao lado daquele que seria seu marido por toda a vida, Fernando Torres.

Sua estréia em cinema se dá na produção de 1964 para a Tragédia Carioca de Nelson Rodrigues, "A Falecida", sob direção de Leon Hirszman.

Além de ter sido cinco vezes premiada com o Prêmio Molière, ter recebido três vezes o Prêmio Governador do Estado de São Paulo e de inúmeros outros prêmios em teatro e cinema, ganhou ainda o Urso de Prata de melhor atriz e concorreu ao Óscar de melhor atriz em 1999 e ao Globo de Ouro de Melhor atriz em filme dramático pelo filme "Central do Brasil" de Walter Salles. Recebeu também vários prêmios da crítica americana, no mesmo ano (Los Angeles Film Critics Award, National Board of Review Award).

Em televisão participou de centenas de teleteatros na extinta TV Tupi, que na direção revezavam-se Fernando Torres, Sérgio Britto e Flávio Rangel, telenovelas na extinta TV Excelsior e na TV Rio e na Rede Record e dezenas de produções na Rede Globo.

Fontes: Wikipedia; Biografia UOL - Teatro.
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Os idiotas da objetividade


Sou da imprensa anterior ao copy desk. Tinha treze anos quando me iniciei no jornal, como repórter de polícia.

Na redação não havia nada da aridez atual e pelo contrário: — era uma cova de delícias. O sujeito ganhava mal ou simplesmente não ganhava. Para comer, dependia de um vale utópico de cinco ou dez mil-réis. Mas tinha a compensação da glória.

Quem redigia um atropelamento julgava-se um estilista. E a própria vaidade o remunerava. Cada qual era um pavão enfático. Escrevia na véspera e no dia seguinte via-se impresso, sem o retoque de uma vírgula. Havia uma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado por uma emenda, jamais.

Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente, explodiu o copy desk. Houve um impacto medonho. Qualquer um na redação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagrada vaidade estilística. E o copy desk não respeitava ninguém. Se lá aparecesse um Proust, seria reescrito do mesmo jeito. Sim, o copy desk instalou-se como a figura demoníaca da redação.

Falei no demônio e pode parecer que foi o Príncipe das Trevas que criou a nova moda. Não, o abominável Pai da Mentira não é o autor do copy desk. Quem o lançou e promoveu foi Pompeu de Sousa. Era ainda o Diário Carioca, do Senador, do Danton. Não quero ser injusto, mesmo porque o Pompeu é meu amigo. Ele teve um pretexto, digamos assim, histórico, para tentar a inovação.

Havia na imprensa uma massa de analfabetos. Saíam as coisas mais incríveis. Lembro-me de que alguém, num crime passional, terminou assim a matéria: — "E nem um goivinho ornava a cova dela". Dirão vocês que esse fecho de ouro é puramente folclórico. Não sei e talvez. Mas saía coisa parecida. E o Pompeu trouxe para cá o que se fazia nos Estados Unidos — o copy desk.

Começava a nova imprensa. Primeiro, foi só o Diário Carioca; pouco depois, os outros, por imitação, o acompanharam.

Rapidamente, os nossos jornais foram atacados de uma doença grave: — a objetividade. Daí para o "idiota da objetividade" seria um passo. Certa vez, encontrei-me com o Moacir Werneck de Castro. Gosto muito dele e o saudei com a mais larga e cálida efusão. E o Moacir, com seu perfil de lord Byron, disse para mim, risonhamente: — "Eu sou um idiota da objetividade".

Também Roberto Campos, mais tarde, em discurso, diria: — "Eu sou um idiota da objetividade". Na verdade, tanto Roberto como Moacir são dois líricos. Eis o que eu queria dizer: — o idiota da objetividade inunda as mesas de redação e seu autor foi, mais uma vez, Pompeu de Sousa. Aliás, devo dizer que o copy desk e o idiota da objetividade são gêmeos e um explica o outro.

E toda a imprensa passou a usar a palavra "objetividade" como um simples brinquedo auditivo. A crônica esportiva via times e jogadores "objetivos". Equipes e jogadores eram condenados por falta de objetividade. Um exemplo da nova linguagem foi o atentado de Toneleros. Toda a nação tremeu. Era óbvio que o crime trazia, em seu ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Em menos de 24 horas o Brasil se preparou para matar ou para morrer. E como noticiou o Diário Carioca o acontecimento?

Era uma catástrofe. O jornal deu-lhe esse tom de catástrofe? Não e nunca. O Diário Carioca nada concedeu à emoção nem ao espanto. Podia ter posto na manchete, e ao menos na manchete, um ponto de exclamação. Foi de uma casta, exemplar objetividade. Tom estrita e secamente informativo. Tratou o drama histórico como se fosse o atropelamento do Zezinho, ali da esquina.

Era, repito, a implacável objetividade. E, depois, Getúlio deu um tiro no peito. Ali estava o Brasil, novamente, cara a cara com a guerra civil. E que fez o Diário Carioca? A aragem da tragédia soprou nas suas páginas? Jamais.

No princípio do século, mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal. (Segundo me diz o luso Álvaro Nascimento, o rei tinha o olho perdidamente azul). Aqui, o nosso Correio da Manhã abria cinco manchetes. Os tipos enormes eram um soco visual. E rezava a quinta manchete: "HORRÍVEL EMOÇÃO!". Vejam vocês: — "HORRÍVEL EMOÇÃO!".

O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: — o fato e a sua cobertura.

Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção popular. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy.

Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe.

O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto da manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a tragédia, entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.

O Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, lembra-me aquela página célebre de ficção. Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio espiar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa suja. Eis o que eu queria dizer: — a primeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões e das batalhas.

E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões de copy desks? Oitenta milhões de impotentes do sentimento.

Ontem, falava eu do pânico de um médico famoso. Segundo o clínico, a juventude está desinteressada do amor ou por outra: — esquece antes de amar, sente tédio antes do desejo. Juventude copy desk, talvez.

Dirá alguém que o jovem é capaz de um sentimento forte. Tem vida ideológica, ódio político. Não sei se contei que vi, um dia, um rapaz dizer que dava um tiro no Roberto Campos. Mas o ódio político não é um sentimento, uma paixão, nem mesmo ódio. É uma pura, vil, obtusa palavra de ordem.

[22/2/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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domingo, 2 de outubro de 2011

Velhos espartilhos


Cada época se assoa de uma certa maneira. (Não falo da grã-fina atual, que não se assoa, nem usa lenço. Na belle époque, porém, a mulher não tinha esse pudor nasal. Por exemplo: — numa frisa de ópera, uma bela senhora puxava o lenço e, diante da platéia interessada, assoava-se com um som de trombeta. Era sublime).

Já as gerações seguintes tinham outros escrúpulos e recatos. E uma bonita senhora só usava o lenço em último recurso, e quando a coriza já pingava. Mas não havia o som comprometedor. Em nossos dias, chegamos à solução ideal: — uma grã-fina não usa nem lenço, nem som, nem coriza.

Até hoje, que me lembre, não vi nenhuma capa de Manchete com sinusite.

Mas, assim como uma época tem um estilo para se assoar, usa outro para se vestir ou para se despir. Eis a pergunta que me faço: — como se veste ou como se despe a presente geração? A rigor, todo mundo está mais interessado em se despir. Vivemos a mais despida das épocas.

Na minha infância profunda, o Brasil inteiro cantava uma modinha que, entre outros, tinha o seguinte verso: "Cobre, me cobre, que eu tenho frio". Ah, eu andava pelos quatro, cinco anos. Não percebia a insinuação erótica, nem desconfiava que havia, ali, uma nudez confessa. "Cobre, me cobre, que eu tenho frio." Hoje, nenhuma menina ou senhora está interessada em se cobrir. A nudez feminina perdeu todo o suspense e todo o mistério.

Nas minhas Memórias contei um dos mais violentos traumas de minha infância. Foi numa batalha de confete da praça Saenz Peña. Teria seis anos, ou cinco, talvez. Cinco. Em cima do meio-fio, atracado às saias de uma vizinha, eu espiava o corso. E, de repente, fez-se, na praça, um silêncio ensurdecedor. Sim, foi um silêncio de se ouvir em toda a cidade. Lá adiante vinha um carro aberto; e, dentro dele, uma odalisca. Mas odalisca era o de menos. Seria bonita, feia, ninguém sabe. O patético é que havia uma abertura na fantasia, um decote abdominal. E, por aí, pela modestíssima nesga de carne — irrompia o cavo umbigo. Daí o assombro total.

Eis o que eu queria dizer: — a primeira nudez que eu vi, na minha vida, foi um umbigo. Há entre mim e essa batalha de confete toda a imensa, espectral distância de meio século. Cinqüenta anos. Pois, até hoje, o umbigo pretérito ainda atropela meus sonhos.

Hoje, a nudez não custa nenhum esforço. Com dois ou três movimentos, qualquer uma se despe. É, se assim posso dizer, uma nudez fulminante. Na época do espartilho, não.

Eu fui, confesso, um menino fascinado pelo espartilho. Já com dez anos, subi, certa vez, no sótão lá de casa. Morávamos, então, em Copacabana, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Na casa do lado, havia um menino chamado Edgard, que é, hoje, se não me engano, engenheiro.

Mas deixemos o Edgard. Subi ao sótão e encontrei lá uma mala cheia de roupas antigas, exatamente roupas da belle époque. No meio de velhas plumas, de chapéus espectrais, descobri um espartilho, cor-de-rosa. Muitos anos depois, escrevi minha peça Vestido de noiva. E a heroína também sobe ao sótão, também abre uma mala da belle époque e também descobre um espartilho. (Mas estou misturando as coisas).

O espartilho explica todo um comportamento feminino. Do mesmo modo, o fraque influía nas maneiras, idéias e sentimentos masculinos. O homem de fraque estava sempre ereto, de fronte alta, como se estivesse ouvindo o Hino Nacional. Não sei se me entendem, mas acho que o espartilho criava entre a mulher e sua nudez, entre a mulher e o pecado, uma distância física e psíquica. Despir-se era um esforço, uma paciência, quase um martírio. E uma bonita senhora deixava de ser uma Ana Karenina — por preguiça.

E outra coisa: — assim como influía nas maneiras e sentimentos da mulher, o espartilho fazia o seu tipo físico.

Pode parecer exagero. Nem tanto, nem tanto. Como se sabe, cada época tem seus quadris típicos. Antes da primeira batalha do Marne e até à primeira batalha do Marne, a brasileira tinha outros flancos. Uma menina de catorze anos precisava pôr-se de perfil para atravessar as portas.

O sujeito olhava a mulher e via, nos seus quadris fortes, uma generosa promessa de fecundidade. Nada mais normal do que uma mulher ter oito filhos. Lembro-me de mães de vinte, 22 filhos. Hoje, a partir dos dez, a mãe recebe um prêmio do Chacrinha, medalha, o diabo. Mas era a brasileira. O casal que parava no primeiro filho arrancava os cabelos de vergonha e frustração.

Em nossos dias, cabe a pergunta alarmada: — onde estão os quadris? Não se pode nem falar em "cadeiras", porque não há mais cadeiras. E, súbito, esbarramos numa realidade surpreendente: — o tipo manequim. Ele se multiplica por toda a parte. Está na PUC, na praia, nos colégios, nas calçadas. A beleza sem quadris, sem peso, sem busto e, numa palavra, o manequim.

Outro dia, um amigo meu, desesperado, bramava: — "A brasileira nunca foi manequim!". Bufei: — "Nunca". Mas tanto eu como o meu amigo somos vencidos, convencidos e humilhados pela evidência. Realmente, a brasileira nunca foi manequim. De Debret para cá e antes e depois de Debret, a brasileira nunca foi manequim. Até há pouquíssimo tempo, não era manequim.

Não era. Um dia, porém, o brasileiro acorda e constata o seguinte: — está namorando um manequim; vai-se casar com um manequim; e, se trair, há de ser com outro manequim. Nas velhas gerações, a brasileira não se parecia com uma alemã, ou uma inglesa, ou uma americana. E, de repente, parece gêmea dos modelos profissionais que posam nas revistas de Londres, Nova York, Paris.

Outro amigo me pergunta se eu não noto menos feminilidade por aí. E, então, eu me lembro de um Rio em que as mulheres tinham um certo halo de histeria. Há anos e anos e eu quase dizia: — há várias gerações que não vejo ninguém desmaiar. Alguém poderá explicar a redução de feminilidade e os pobres quadris de manequim.

Não deixa de ser alarmante para o brasileiro. Tem que namorar, amar, trair ou esquecer a antibrasileira. Sob a pressão de novos usos, novas maneiras, novas idéias, novos sentimentos, a brasileira muda também fisicamente e vira a antibrasileira.

Contei o caso de um amigo, de 45 anos, que amou uma menina de vinte. Ah, nós sabemos o que é uma dessas paixões tardias que levam tudo de roldão, tudo. O meu amigo estava disposto a largar família, fugir, o diabo. Até que, um dia, vai ver a garota e ela o recebe com uma saraivada de palavrões jamais sonhados.

Mais tarde, contando-me o episódio, ele esbravejava: — "Um manequim, um manequim!".

Para ele, a explicação de tudo estava nos quadris estreitos. Não tinha quadris, donde tinha que ser uma impotente do sentimento. Uma antibrasileira.

[12/2/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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