quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Abigail Maia



Três grandes nomes do rádio, na mesma foto: Rodolfo Mayer, Abigail Maia e Floriano Faissal. Abigail nasceu no século retrasado, ou seja, em 16 de setembro de 1887, à  Rua do Senado, número 7. Aos quinze anos de idade já estava no palco substituindo uma faltosa atriz na companhia teatral da qual sua mãe, Balbina Maia, integrava o elenco.

Sua história é longa e linda. Foi casada com Raul Roulien, primeiro ator brasileiro a ser conhecido em Hollywood, e depois com Oduvaldo Viana, dramaturgo que iria emprestar sua inteligência a serviço da cultura de nosso país, escrevendo novelas que até os dias de hoje são encenadas em diversos canais de televisão.

Abigail Maia, atriz, cantora e bailarina, nasceu em Porto Alegre, RS, em 17/10/1887 e faleceu no Rio de Janeiro RJ, em 20/12/1981. Estreou no teatro aos 15 anos de idade, na peça Fada Coral. Trabalhou em inúmeras companhias de comédias e revistas antes de criar sua própria empresa, em parceria com Oduvaldo Vianna.

Em 1921, agregando-se à companhia Viriato Correa e Nicola Viggiani, deu-se a temporada conhecida historicamente como "Movimento Trianon".

Com seu trabalho ligado a um dos mais conceituados comediógrafos do período, valorizou a dramaturgia brasileira e ensejou algumas experimentações renovadoras. Nos anos 40 ingressou no elenco de rádio-atores da Radio Nacional.

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A igreja do Diabo

DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada.

Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua Igreja? Uma igreja do Diabo era o meio mais eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, concluiu ele. Escritura contra Escritura, Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isso, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter uma vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai.

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu me proponho a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor - a indiferença, ao menos - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralista do mundo. É assunto gasto; se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias dos seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para o meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"...

O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?

Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude precisa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos.

Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo o caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do teu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniário, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!"

A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratava de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi escrito no livro da sabedoria.

FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.

O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados.

Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela, solitário; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das sua ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se e ao levantar-se. O Diabo mal pode crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análogo ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.
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por Machado de Assis
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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Veneno

Ele a esperava, no corredor. Baixou a voz:

— Preciso bater um papinho contigo.

— Quando?

— Logo mais.

— E onde?

— No jardim.

— OK.

Mas ouviram passos na escada. Marina pediu, num sopro de voz: “Cuidado com minha filha! Cuidado com minha filha!”. Fugiu ao longo do corredor, abriu a porta do quarto e entrou, trancando-se. Veio sentar-se diante do espelho; disse para si mesma: “Estou maluca! Completamente maluca!”. E uma coisa, sobretudo, a aterrava: que sua filha Terezinha, de treze anos, descobrisse e desconfiasse. O fato é que, depois de catorze anos de felicidade matrimonial, ela experimentava um primeiro flerte, olhava para um homem que não era seu marido. Uma amiga desquitada, que estava no mesmo hotel, ponderava: — “Isso não é nada do outro mundo”. E sugeria: — “Aproveita, aproveita!”. Esse conselho claro ou mesmo cínico foi de uma grande e pungente doçura para Marina. Ainda assim perguntou, com uma expressão de tormento nos olhos e na boca:

— E minha filha?

AS DUAS

Estavam naquele hotel de montanha há quinze dias, ela, o marido (Godofredo) e a filha única (Terezinha). O marido descera naquela tarde para a cidade, para atender a um chamado urgente. Terezinha, que adorava o pai, levara-o até o ônibus. Ao despedir-se, depois de beijar e ser beijada, a menina prometera, fixando no pai os olhos serenos:

— Eu tomo conta de mamãe.

Godofredo achou graça. Homem sem imaginação e sem ciúmes, não pedira essa vigilância. Pois bem. Partiu o ônibus e as duas ficaram sozinhas. E, para Marina, a pior forma de solidão era a companhia da filha. Ao longo dos anos, não conseguira conquistar a menina. Não havia entre elas nenhuma confiança, nenhum abandono, nenhum carinho possível. Desesperada, Marina perguntava a si mesma: “Mas o que foi que eu fiz a essa menina? Que foi?”.

De fato não fizera nada, absolutamente nada. Mas a verdade é que existia, de uma para a outra, uma sutil, uma secreta hostilidade. Um dia, no confessionário, teve que admitir: “Eu não sou a mãe que devia ser”. Fez um esforço para acrescentar: — “Não gosto de minha filha”. Desejaria ser como as outras mães, mas qualquer tentativa que fazia no sentido de acariciar a menina a amargurava. Essa falta de amor era tão ilógica que, na sua meditação, agarrava-se à explicação espírita: “Quem sabe se em encarnações anteriores...”. Agora estavam as duas sozinhas num hotel, fechadas, cada qual no seu mundo de solidão.

O FLERTE

Depois que a família chegara ao hotel, começara o primeiro flerte pós-matrimonial. Para si mesma e para a amiga desquitada, ela fazia questão de sublinhar: “O primeiro, o primeiro!”. Chamava-se Gustavo e estava à porta quando a família desembarcou. Ela o achou talvez bonito demais para um homem. Mais tarde, já no quarto, abrindo as malas, guardando as roupas na gaveta, pensava naquele rosto que mal percebera nos atropelos da chegada. O pior não foi a impressão muito intensa, mas a certeza imediata de que se apaixonaria por ele. Na mesa, parecia distraída, ausente ou nervosa. De repente, porém, tomou um susto. Percebeu que a filha não a desfitava, como se lesse com apavorante vidência os seus pensamentos mais secretos. Dissimulou, tanto quanto possível. Riu alto a pretexto de nada. Mas sentiu no próprio riso um som falso. Pouco depois, a amiga desquitada vinha dizer-lhe: “Viste que pedaço de homem?”. Disfarçou: “Sim”. Foi ainda essa amiga quem, dias após dias, exasperou sua imaginação. Começou por dizer: “Está te olhando. Olha também, sua boba!”. Foi assim que começou aquele flerte. O primeiríssimo. O marido não via, não observava nada. Marina, porém, tinha medo da filha, muito sensível, sagaz e atenta. Se não fosse a cumplicidade e o estímulo da amiga, teria talvez desistido. Mas a outra a cercava por todos os lados:

— Flerte não tem importância. É uma coisa à toa.

Marina reagia:

— Mas eu sou casada!

— Ora, fulana! Você pensa que então a mulher casada é um paralelepípedo? Tinha graça!

Apenas balbuciou a pergunta:

— E minha filha? Muxoxo da amiga:

— Manda tua filha lamber sabão!

O BEIJO

Era realmente flerte, apenas flerte, nada mais, na sua forma inócua e clássica, ou seja, à distância. Limitavam-se a olhares que, entretanto, eram de uma delícia mortal. Jamais haviam trocado uma palavra, um aperto de mão, uma carícia. A desquitada, que estava no caso esportivamente, sem nenhum interesse, já resmungava: “Vocês estão bobeando! Ah, se fosse comigo!”. Marina sofria, a verdade é que sofria. Até então, julgara-se feliz e, de repente, descobre que sua felicidade não existia, nunca existira. Tinha agora abstrações, melancolia; um perfume a fazia chorar ou desfalecer. Acabou admitindo para a desquitada:

— Amo este homem. — E repetiu numa espécie de angústia: — Amo.

A desquitada a instigou:

— Mergulha de cara! Mergulha de cara!

E, uma noite, pouco antes do jantar, aconteceu uma fatalidade deliciosa e terrível. Cruzou, no corredor, com o bem-amado. Tudo aconteceu de uma maneira irresistível. Sem uma palavra, Gustavo se apoderou de sua mão e a beijou, longamente. Foi um minuto ou muito menos. Mas ela saiu dali numa embriaguez completa. E o que tornava sua delícia mais aguda era o sentimento do pecado. Correu à amiga, pois sentia necessidade imediata de uma confidência. Contou que o Gustavo a beijara na mão... Fulana exclamou: “Na mão?”.

Confiou, convulsa: “Pois é”. Fez a outra pôr a mão no seu peito para sentir as palpitações furiosas. Mas a desquitada parecia insatisfeita: “Vocês são dois moscas-mortas. Ora veja!”. Para Marina, porém, o episódio se revestia de um significado terrível. Pela primeira vez, o caso saía da espiritualidade pura e se materializava. Foi nessa noite que o marido recebeu o chamado. A desquitada esfregou as mãos:

— Está pra ti! Ou é agora ou nunca!

O FATO

O marido partiu. E, à noite, no corredor, Gustavo pedira: “Um papinho”. No jardim, Marina teve de esperar que a filha, que dormia com uma coleguinha, se recolhesse. Até o último momento teve um pavor: “Será que ela vai cismar de dormir comigo?”-. Felizmente, a menina, sem desconfiar, foi com a colega para o quarto. Então Marina deslizou como uma criminosa, com o coração aos pinotes e uma sensação de crime. Parecia-lhe, então, que jamais tivera qualquer amor, qualquer carinho, qualquer afinidade com o marido; pensava nele como o último dos estranhos. Ficou no jardim com o Gustavo uma meia hora. Desde o primeiro instante, sentiu-se frágil, indefesa, derrotada. Lembrava-se que o marido voltaria no dia seguinte e que só lhe restava uma noite livre. Essa urgência do pecado era fascinadora. Por outro lado, Gustavo foi altivo, ousado, quase brutal. E a deslumbrava com um argumento de cinismo absoluto: — “Uma vez só. Uma vez não são todas”. Ela evitava, embora sabendo que se abandonaria. Na verdade, resistia à idéia de capitular sem luta, sem conquista, sem namoro. E mal ia escutando:

— Deixa a porta encostada, apenas encostada... À meia-noite, eu vou lá e... Sim?

Respondeu, num sopro:

— Sim.

Voltou correndo. Mas o deslumbramento inicial se extinguira. O que havia no mais íntimo de si mesma era uma angústia intolerável, a vontade de fugir e, ao mesmo tempo, um ressentimento contra o marido que não se fizera amar. Pensava também na filha: “Imagina se ela sabe ou imagina!”. De repente, aparece a desquitada e, ao saber que está tudo combinado, pisca o olho: “Felicidades!”. E sai.

À meia-noite em ponto, Gustavo empurra a porta encostada.

O REMÉDIO

Marina acordou tarde. Toda sua angústia desaparecera: estava de novo feliz e com a sensação de que só agora começava a viver. Levantou-se, pôs as chinelinhas róseas e, na camisola muito leve, que era quase a nudez, correu ao espelho como se quisesse ver a própria imagem depois do pecado. E, pelo espelho, viu quando Terezinha entrava. Trazia um copo com um líquido qualquer. Marina virou-se, mas a simples presença da filha feriu de morte todo o seu encanto de viver. Estavam as duas, no meio do quarto, face a face. Até aquele momento, havia entre mãe e filha uma polidez que era o disfarce de um sentimento mais turvo, mais profundo e mais envenenado. E, pela primeira vez, ambas viam o rosto verdadeiro da outra. Naquele instante, ocorreu novamente a Marina a explicação espírita de que na outra encarnação... Então, com o rosto erguido, quase sem mover os lábios, Terezinha foi dizendo:

— Eu me escondi detrás do guarda-roupa... Fiquei lá a noite toda...

E repetiu, trincando nos dentes as palavras:

— Detrás do guarda-vestidos...

O DILEMA

Marina sentiu que a mentira seria inútil. Teve um brusco pavor daquela filha. Foi fraca, pusilânime. Indefesa, perguntou:

— Que queres que eu faça?

A resposta veio sumária, quase doce: “Bebe isso”. Não compreendeu imediatamente. Apanhou o copo; ergueu-o contra a luz. Tornou a perguntar: “Mas isso é o quê?”. E a outra, com os lábios negros:

— Veneno.

Recuou, aterrada, sem coragem de atirar longe aquele copo, de parti-lo em mil estilhaços. Sentiu-se agarrada. Terezinha dizia-lhe: “Então, bebo eu. Ou tu ou eu. Uma de nós tem de beber”. Marina olhou com assombro o líquido claro, enquanto a filha repetia:

— Ou tu ou eu.

Marina fechou os olhos, foi bebendo, até o fim. Largou então o copo, que se estilhaçou no chão.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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