quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O cemitério

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas.

Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.

Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas - coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei.

E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a lutar...

Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.

Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que a arrematavam pretensiosamente.

Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo do vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase exclamei:

- Bela mulher!

Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.

Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo, e fugaz.

Abalei-me! Eu que dizia a todo mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade - eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a elas?

Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...

Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma, viva, que me falava.

Com surpresa, verifiquei isso.

Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na rua do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso.

E, por mais que procurasse explicar, não pude.

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por Lima Barreto
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Lima Barreto

Chamado "o romancista da primeira república", Lima Barreto foi um crítico virulento da vida carioca nesse período histórico. Não se limitou a estigmatizar o farisaísmo e a mediocridade arrogante da burguesia nascente, mas recriou também o panorama social da existência miserável e triste dos subúrbios, com seu rebuliço e sua áspera luta pela vida.

Entre o realismo psicológico machadiano e a explosão modernista, foi esteticamente um solitário, que se orientou pela linha inovadora de um realismo crítico de cunho popular e rebelde.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro RJ, em 13 de maio de 1881. Mulato, de família muito pobre, perdeu a mãe aos sete anos. Estudou no Colégio Paula Freitas, onde também se preparou para a Escola Politécnica, em cujo vestibular foi aprovado em 1896. Em 1902, seu pai enlouqueceu e, no ano seguinte, o escritor abandonou o curso de engenharia para trabalhar na Diretoria de Expediente da Secretaria da Guerra. Em 1904, Lima Barreto começou a escrever a primeira versão de Clara dos Anjos.

O escritor foi rejeitado pela maioria dos escritores de seu tempo, não propriamente por sua origem de classe e de raça, mas por não ter abdicado dessa condição na consciência e na prática, já que sempre rejeitou as receitas éticas e estéticas impostas de cima para baixo, o falso refinamento e a gramática da intelligentsia ainda submissa aos padrões estrangeiros.

Ao erigir uma obra em estilo brasileiro, impregnada de tipicidades do linguajar carioca e voltada para a crítica social, foi um dos primeiros a romper com o complexo colonial da literatura brasileira. Boicotado por críticos, jornais e editores, enfrentou muitas dificuldades para publicar seus livros. O primeiro a aparecer foi Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), itinerário de um anti-herói negro, em tom autobiográfico.

Angustiado, presa do álcool e da vida boêmia, o escritor teve em 1914 sua primeira internação no Hospício Nacional, para onde voltaria cinco anos depois. Em 1915 editou O triste fim de Policarpo Quaresma, sua obra-prima, que traça o destino tragicômico de um homem tomado pelo patriotismo ingênuo, em quixotesca luta contra a corrupção dos políticos.

Em Numa e a ninfa (1915), criou uma galeria grotesca de figurões da República Velha, recheados de vícios e de apetite pelo dinheiro. Particularmente interessante é o retrato do deputado Numa Pompílio de Castro, paradigma do bom-mocismo cínico e da estupidez atarefada. Em 1918, divulgou no semanário ABC seu manifesto de apoio à revolução russa.

No ano seguinte, candidatou-se à Academia Brasileira de Letras, mas recebeu apenas dois votos. Sua verve satírica reservou um lugar especial para a diplomacia brasileira em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), onde a principal personagem é a cidade do Rio de Janeiro, poucas vezes tão bem retratada. Em 1920, publicou Histórias e sonhos, livro de contos.

Muitas obras de Lima Barreto foram publicadas postumamente. Merecem referência especial os romances Clara dos Anjos, inacabado, e Cemitério dos vivos, de que o escritor deixou apenas fragmentos. No primeiro, retomou o tema do preconceito racial na vida de uma moça de subúrbio, seduzida e abandonada por um conquistador de camada social superior.

A fragilidade do argumento revela um Lima Barreto decadente e minado pela doença. Apesar disso, nos dois únicos capítulos de Cemitério dos Vivos, onde predomina a atmosfera do hospício, percebe-se o quanto ainda poderia realizar o talento do romancista se contasse com melhores condições materiais e de saúde.

O descaso crítico e editorial com relação à obra do autor foi amplamente compensado com a organização das Obras de Lima Barreto, publicadas em 1956 em 17 volumes. A coleção reúne não só as obras citadas, como também as coletâneas de crônicas e artigos Bagatelas, Feiras e mafuás, Vida urbana e Marginália, as sátiras Os Bruzundangas e Coisas do reino do Jambon, o livro de crítica literária Impressões de leitura, além do Diário íntimo e de dois tomos de Correspondência.

Lima Barreto morreu no Rio de Janeiro em 1º de novembro de 1922.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
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Vassoura bruxólica

"É, neste mundo de Deus, há muitos mistérios e esta gente simples aqui da Ilha vive estas coisas quase como uma realidade. Meus lobisomens, bruxas, demônios e boitatás existem.

Sempre foi crença do povo hospitaleiro desta Ilha dos famosos bois de mamão que, na Sexta-Feira-Santa, não se deve tomar instrumentos de trabalho para usa-los, seja qual finalidade for.

É também costume tradicional deste povo, descendentes de colonos açorianos, que, na Sexta-Feira-Santa, a partir de zero hora, devem banhar-se nas ondas do mar, levando consigo animais domésticos, para purificarem-se e protegerem-se de todos os males do corpo físico e espiritual. As águas colhidas nesta hora servem para todo o tipo de cura.

É a fé, longínqua dos tempos, aliada a superstição, ao medo e ao amor pela conservação do corpo físico, na cura dos males que atacam o homem em franca vivência espiritual e física com o seu Deus. As forças atuantes de práticas religiosas freiam os instintos animalescos do homem, encaminhando-o, espiritualmente, para viver com bons modos junto com o seu Deus, com a cultura, na sociedade e conseqüentemente com o seu próximo.

Entrementes, sempre aparecem nos meandros desses cenários fantásticos, e outros moderados, pessoas que se arrojam contra os poderes divinos, maltratando esses conjuntos de sociedades freadoras, veículos insubstituíveis de abrandamento de sofrimentos que martirizam e açoitam a criatura humana.

Um caso de desrespeito espiritual aconteceu há muitos anos passados, lá pras bandas do sul da Ilha de Santa Catarina. A Maria Vivina, moradora da praia dos Naufragados, fez uma aposta com a Carrica, de que, na Sexta-Feira-Santa daquele ano, ela tomaria uma vassoura e com a mesma, varreria o quintal de sua casa e,certeza tinha, nada lhe aconteceria de extraordinário. Apostaram um par de tamancos contra uma botina. E firmaram a promessa da aposta, casando-a.

Quando a Vivina deu a primeira varredela, a vassoura soltou-se de suas mãos qui nem um relâmpago, metamorfoseou-se em bruxa, ganhou altura sobre o morro do Ribeirão da Ilha e desapareceu, num repente, no espaço sideral das alturas incomensuráveis da quimera.

A Maria Vivina caiu de joelhos no terreiro, rezou e pediu perdão aos céus pelo ato impensado que havia cometido contra as ordens divinas, chorando copiosamente. A Carrica abraçou-se com ela e ambas choraram e sentiram o amargo do néctar da desobediência humana. Nenhuma das duas era bruxa, porque a vassoura, que e um instrumento de montaria de bruxas, foi embora, viajar pelo espaço sideral, sozinha.

Oh! Minha querida Ilha de Santa Catarina de Alexandria, és a graciosa sereia que repousa sobre brancas areias de comoros errantes, sambaquis seculares, banhada pelas ondas acasteladas do oceano, perfumada pela brisa acariciante dos ventos e enxuta com as toalhas felpudas dos raios solares que beijam calorosamente seu corpo mitológico."

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Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.
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