sábado, 27 de agosto de 2011

Banho de Cléopatra

Era muito relaxado. Quase todas as manhãs, Ritinha fazia a mesma pergunta:

— Não vai tomar banho?

Mentia:

— Estou gripado.

E ela:

— Não mente, Hildegardo, não mente! Gripado onde?

O rapaz acabava perdendo a paciência.

— Ritinha, escuta! Te mete com a tua vida! Mania de dar palpite!

Mas a esposa era teimosa:

— Ao menos, passa álcool no pescoço e nas orelhas. Passa, Hildegardo! É tão feio homem de orelha suja.

Hildegardo acabava passando uma lição de moral:

— Escuta, mulher, escuta! — E foi enfático: — O que importa é lavar debaixo do braço. E basta! Vê se não enche! Você já está enchendo!

Ritinha suspira:

— Olha, meu filho! Eu não tenho nada com isso. É pra teu bem.

No dia seguinte, a mesma cena. O marido esbravejava: “Ih, você é chata!”.

O CASAL

Entre parênteses, era louca pelo marido. Ia dizer às amigas: — “Gosto tanto do Hildegardo, mas tanto, que olha: — se ele morresse, eu acho que não me casava outra vez”.

Protestavam:

— Mulher precisa de casamento, o que é que há? Ou você é fria?

Batia na madeira, mais do que depressa:

— Isola!

Havia, porém, na sua felicidade, um defeito: — o banho semanal do marido. Como nas anedotas, Hildegardo só tomava banho aos domingos. Menina de um asseio mórbido, que tomava, às vezes, três banhos por dia, Ritinha não entendia aquilo. Repetia, na maior boa-fé: — “É feio, meu filho, é feio!”. E o seu pavor era que a criada notasse e fosse contar na vizinhança. Toda vez que o marido entrava no banheiro, ela ia abrir o chuveiro. Explicava:

— Deixa o chuveiro aberto pra criada pensar que estás tomando banho.

Ele achou o expediente genial. Fora esse detalhe, eram felicíssimos. Até que, um dia, Hildegardo acorda antes da mulher e a sacode:

— Mulher, escuta! Vai botar o meu banho!

Vesga de sono, não entende:

— Banho?

E Hildegardo, feliz, o olho rútilo:

— Exato. Olha: — hoje, quero um banho de banheira. Caprichado.

Sentada na cama, olhava o marido:

— Que piada é essa?

Esfregando as mãos, ele fazia um risonho escândalo:

— Piada como? Você não me chama até de porco? Pois é. Resolvi ser limpo, pronto. Prepara o banho, mulher. Anda, capricha!

Tocada pela alegria do marido, enfiou os pés nas sandálias e pôs o quimono em cima da camisola:

— Até que enfim, puxa vida!

ASSEIO

Enquanto a mulher abria as torneiras, ele, diante do espelho, escovava os dentes. Disse:

— Banho morno!

O dentifrício escorria-lhe da boca como uma efervescente baba. Continuou:

— Mulher, quero sair daqui como o sujeito mais limpo do Rio de Janeiro! E olha: — vou te incumbir de uma missão especialíssima. É a seguinte: — quando eu acabar de tomar banho, você vai me limpar as orelhas com álcool. As orelhas e pescoço.

Escovou os dentes, fez a barba. A banheira já estava pela metade. Em calça de pijama, nu da cintura para cima, estufava o peito, com uma sensação de plenitude. De vez em quando, Ritinha experimentava a temperatura da água. No seu quimono rosa, esgarçado nos cotovelos, suspira:

— Sabe que eu estou te estranhando!

O marido acha graça:

— Vocês, mulheres, são engraçadíssimas! Escuta, escuta! Você sempre não reclamou? Pois bem. No dia em que resolvo ser limpo, você estranha?

Olhava aquele marido que era um garotão forte e bonito:

— Estou brincando! Você não vê que eu estou brincando, seu bobo?

Hildegardo veio beijá-la na testa:

— Minha mulher, você é a maior. Vem cá, vem cá. Põe água-de-colônia na banheira.

Era demais: — “Água-de-colônia?”. Teimou:

— Sim, senhora! Água-de-colônia! Quero um banho de Nero, um banho de Cleópatra!

Sem uma palavra, foi apanhar o litro de água-de-colônia. Faz o comentário:

— Você está exagerando!

LIMPEZA

Guarda o litro no pequeno armário e vai saindo:

— Toma teu banho, que eu vou fazer um negócio.

O fato é que Hildegardo demorou-se, na banheira, como uma noiva. Pensava, esfregando-se com ferocidade: — “Banho de casamento!”. Quando saiu, sentia-se mais leve. Gritou:

— Mulher, vem esfregar as orelhas! O pescoço!

Ela respondeu do quarto:

— Agora não posso.

Então ele molha a extremidade da toalha no álcool e passa no pescoço, nas orelhas. Em seguida, põe perfume no cabelo, debaixo do braço, no peito. Imagina: — “Devo estar cheiroso como um bebê”. E já ia saindo quando teve uma lembrança: — “Os pés!”. Inunda os pés de talco. E, então, enrolado na toalha, passa do banheiro para o quarto. Mas estaca na porta. Pergunta, estupefato:

— Que piada é essa?

Via Ritinha, muito entretida, passando a gilete nos seus ternos, um por um. A mulher acabava de abrir, em dois, o último paletó. O marido se arremessa:

— Está doida? Bebeu?

Ela ergue o rosto em desafio:

— O senhor não vai sair, não, senhor. Vai ficar aqui, comigo. Marido limpo eu quero pra mim!

Na sua raiva, segura-a pelos dois braços e a sacode. Ritinha, porém, não teve medo:

— Você arranjou uma cara e vai se encontrar com ela. Por isso tomou banho. Mas vai ficar, ouviu? Vai ficar. Quero a tua limpeza pra mim.

Larga a mulher. Com um esgar de choro, olha aquelas tiras de fazenda. Súbito, dá um repente na mulher. Puxa-o pelo braço:

— Deixa de ser burro! Eu tenho mais classe do que a gaja que você arranjou. Vem cá, vem! Burro!

Puxou-o para si. Deu-lhe um violento beijo na boca.

Meia hora depois, ele, respirando fundo, dizia:

— Você é a maior! A maior!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O espírito

O caso que vou contar passou-se há um bom par de anos, quando no Rio de Janeiro o espiritismo não tinha ainda o caráter de seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé.

Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa dele.

O nosso herói não se empregava absolutamente noutra coisa que não fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e só gastava o rendimento do seu patrimônio.

Casara-se com d. Laura que, não sendo formosa que o inquietasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instruída que ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.

O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto?

Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico...

Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.

Ou fosse para melhorar de situação ou porque realmente o magoasse a vitória fácil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia.

Num dia em que este, ano e meio depois de casado, perguntou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranqüilizar, respondeu, simulando indiferença:

— Não sei... Parece que morreu...

— Morreu?...

— Pelo menos disseram-me que sim... em São Paulo... Não sei ao certo, nem isso me interessa.

Por esse tempo já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos mistérios do espiritismo, e fazia parte de um grupo, um dos primeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.

Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa giratória, evocar espíritos e conversar com defuntos célebres. Produziam-se, realmente, alguns fenômenos, que impressionaram profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo.

Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridículo.

Mas uma noite, em que a sessão ainda não começara, e estavam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo.

Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado.

— Está presente o espírito que evoquei? - perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. - Se está presente, dê duas pancadas!

A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.

— Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! - continuou o Garcia no mesmo tom.

A mesa deu seis pancadas.

— F - disseram os dois companheiros.

— Adiante!

A mesa deu dezoito pancadas.

— R - repetiram os espíritas.

— Adiante!

A mesa deu cinco pancadas.

— E - explicou um dos três.

— F, R, E - disse o outro.

E em tom de comando, acrescentou:

— Se é Frederico, dê uma pancada forte!

A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.

O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:

— Estou satisfeito.

— Mesmo porque é preciso consertar a mesa - concluiu um dos companheiros.

— Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.

O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos.

Nessa ocasião estavam presentes no Rio de Janeiro não só o espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.

Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver - apenas ver - d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até entrou para a sala..

O caso é que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.

O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numa cadeira de balanço, a ler um livro, fingindo a maior tranqüilidade.

— Que quer isto dizer?

— Isto quê?

— Esse homem que acaba de sair daqui?

— Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!...

— Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?

— Estás doido, repito.

— Eu vi-o!

— Não podias ter visto.

— Vi-o, e era o Frederico!

D. Laura soltou uma risada.

— Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!

O Garcia pensou:

— Um morto... Sim, ele está' morto... e ele então materializou-se para aparecer-me... Não foi outra coisa!

No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:

— Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito importante: sou médium vidente!

— Deveras? - exclamaram todos em coro.

— É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.

— Conte-nos isso - ordenou o presidente do grupo - Você não teve medo?

— Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir...


por Artur Azevedo
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Pensamentos e visões de um decapitado

Tríptico: Primeiro minuto, segundo minuto, terceiro minuto

Há pouco ainda rolaram algumas cabeças do cadafalso. Nessa oportunidade ocorreu ao artista a idéia de pesquisar o problema: a cabeça teria a capacidade de pensar por alguns segundos depois de separada do tronco?

Eis o relato dessa pesquisa. Em companhia do Sr. ... e do Sr. D., magnetopata especializado, tive acesso ao cadafalso; lá solicitei ao Sr. D. estabelecer contato entre mim e a cabeça cortada, por intermédio de novos procedimentos que lhe pareciam adequados. O Sr. D. concordou. Fez alguns preparativos e então esperamos, não sem emoção, a queda de uma cabeça humana.

Assim que chegou o momento fatal, caiu a terrível lâmina, fazendo estremecer toda a armação e rolar a cabeça do julgado pelo horrível saco vermelho.

Ficamos com o cabelo em pé, mas não tivemos mais tempo para nos afastar. O Sr. D. me segurou pela mão (eu estava sob a sua influência magnética) levou-me até à cabeça em convulsões e me perguntou: O que está sentindo? O que está vendo? A emoção me impedia de responder na hora. Mas logo depois gritei, com extremo pavor: Horrível! A cabeça pensa! Agora estava querendo me livrar do que inevitavelmente iria acontecer, mas era como se um pesadelo me segurasse. A cabeça do executado enxergava, pensava, e sofria. Quanto tempo durou? Três minutos, como me disseram. O executado deve ter pensado: trezentos anos.

O que sofre quem é executado assim não pode ser reproduzido pela linguagem humana. Aqui me limito a relatar as respostas que dei a todas as perguntas, enquanto eu, por assim dizer, estava me identificando com a cabeça cortada.

Primeiro minuto: sobre o cadafalso

Eis as respostas: Um ruído inconcebível rugia em sua cabeça. O ruído do machado que se abaixa. – O delinqüente acredita que foi atingido pelo raio, não pelo machado. – Estranho, aqui debaixo do cadafalso está a cabeça no chão, pensando que ainda está em cima; acredita que ainda faz parte do corpo, e ainda está esperando o golpe que a deve separar.

Um sufoco horrível. – Respiração, impossível. – É uma mão não-humana, sobrenatural, desabando como uma montanha sobre a cabeça e o pescoço. De onde vem essa mão horrenda e inumana? A vítima, resignada, a identifica nesse momento: púrpura e armelino roçam os dedos.

Sofrimentos mais atrozes estão por suceder.

Segundo minuto: debaixo do cadafalso

A pressão transformou-se em corte. Somente agora o executado toma conhecimento de sua situação. – Com os olhos mede a distância que separa a cabeça do corpo, e reflete: a minha cabeça está cortada.

O delírio aumenta freneticamente. Parece ao executado que sua cabeça está pegando fogo e girando em torno de si mesma... E nesse frenesi, um pensamento inconcebível, tresvariado, indizível, apodera-se do cérebro moribundo: Será possível? O homem decapitado ainda tem esperança. Todo o sangue que lhe ficou pulsa mais rapidamente pelas veias e agarra-se à esperança.

Chega o momento em que o executado pensa que está estendendo as mãos crispadas, trêmulas, em direção à cabeça. É o instinto que nos faz tapar com a mão a ferida aberta. Isso se dá com o intuito, o horroroso intuito de recolocar a cabeça em cima do tronco, para guardar mais um pouco de sangue, mais um pouco de vida... Os olhos do torturado reviram-se nas órbitas sangrentas... o corpo torna-se rijo como granito...

É a morte...

Não, ainda não.

Terceiro minuto: na eternidade

Ainda não é a morte. A cabeça continua pensando, e sofrendo. Sofre o fogo que queima, sofre o punhal que estraçalha, sofre o veneno que convulsiona, sofre nos membros que são serrados, sofre nas entranhas que são arrancadas, sofre na carne que é cortada e moída, sofre nos ossos que são fervidos devagar em óleo quente. Todos esses sofrimentos juntos não chegam a dar uma idéia do que se passa com o executado.

Nesse momento, um pensamento o faz estarrecer:

Já está morto e deverá continuar a sofrer assim? Talvez por toda a eternidade?...

Porém, a existência humana lhe escapa; aos poucos lhe parece confundir-se com a noite; de leve ainda passa uma névoa, mas ela também enfraquece e se esvanece; escuridão total... O decapitado está morto.

por Antoine Wiertz (Pintor belga 1806 - 1865)
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