No fim de sete anos de matrimônio, o único vínculo do casal eram os
cravos do marido, que Marlene gostava de espremer. Fora esta distração
profunda e imprescindível, não havia mais nada. Debaixo do mesmo teto,
cercados pelas mesmas paredes, eles se sentiam como dois estranhos, dois
desconhecidos, sem assunto, um interesse ou um ideal comum. E, como não
tinham filhos, a inexistência de criança aumentava o tédio. Até que, um
dia, Godofredo toma coragem e ataca, de frente, o problema da monotonia
conjugal:
— Sabe qual é o golpe? O grande golpe? A solução batata?
— Qual?
E ele:
— A separação. Que é que você acha? Vamos nos separar?
No momento, Godofredo estava com a cabeça no colo da mulher. Muito entretida, Marlene coçava e catava os cravos do marido com inenarrável deleite. O rapaz insiste:
— Como é? Topas?
Ora, Marlene estava entregue a um mister que lhe parecia de suprema volutuosidade. Justamente acabava de fazer uma des¬coberta da maior gravidade. Com água na boca, anunciou:
— Achei um formidável! Grande mesmo!
E não sossegou enquanto não completou a extração do cravo monumental. Satisfeita, eufórica, vira-se, então, para Godofredo:
— O que é que você perguntou?
Ele repete:
— Vamos nos separar?
A princípio ela não entendeu:
— Separar?
Godofredo confirma: “Exato”. Sem horror, sem drama, apenas surpresa, ela indaga: “Separar por quê? A troco de quê? Sinceramente, não vejo razão”. Sóbrio, mas firme, ele protesta:
— Razão há. Tenha santíssima paciência, mas há. Você quer ver como há? Nossa vida é duma chatice inominável. Te juro o seguinte: — não há no mundo uma vida mais sem graça, mais besta do que a nossa. Há? Fala francamente.
Marlene parece disposta a uma segunda pesquisa no rosto do marido. Pergunta, meio distraída:
— Você me dá três dias pra pensar?
Godofredo faz os cálculos:
— Três dias? Dou.
A VIZINHA
Na história matrimonial de ambos, não havia a lembrança de um atrito, de um incidente sério, de um ressentimento. Eles se aborreciam juntos, eis tudo. Para Godofredo, a monotonia era um motivo mais do que suficiente para a separação. Já Marlene, que respeitava mais a opinião dos parentes e vizinhos do que a do próprio Juízo Final, duvidava um pouco. De qualquer maneira, como era uma mártir, uma Joana d’Arc do tédio, é possível que acabasse concordando. Mas aconteceu uma coincidência interessante: no dia seguinte, conhece Osvaldina, sua nova vizinha. Conversa vai, conversa vem, e Osvaldina, sua vizinha, começa a pôr o seu marido nas nuvens.
— Esposa tão feliz como eu, pode haver. Mas duvido!
Isto foi o princípio. Formara-se um grupo de mulheres na calçada. E Osvaldina continuou, no mesmo tom de comício: “Estou casada há cinco anos. Muito bem. Vocês pensam que a minha lua-de-mel acabou? Que esperança!”. Houve em derredor um assombro mudo e, possivelmente, um despeito secreto. Uma lua-de-mel assim infantil e infinita era um fato sem precedente naquela rua, onde o fastio do matrimônio começava ao término da primeira semana. E a fulana prosseguia, cada vez mais cheia de si e do marido:
— Jeremias me beija, hoje, como na primeira noite etc. etc.
De noite, quando Godofredo chegou, Marlene estava indignada. Contou-lhe o caso da vizinha e explodiu:
— Uma mascarada! Pensa que é o quê? Melhor do que ninguém? Ora veja!
Godofredo rosna:
— Deixa pra lá!
Mas ela estava numa revolta sincera e profunda:
— Você conhece o marido dela? Viu? É um espirro de gente, um tampinha! E vou te dizer mais: não chega a teus pés, não é páreo pra ti!
De cócoras, ao pé do rádio, Godofredo estava procurando uma estação. Súbito, a mulher vira-se para ele. Foi misteriosa:
— Ela não perde por esperar! Vou tomar as minhas providências! Quando quero, sou maquiavélica!
MUDANÇA
De manhã, quando o marido ia sair, ela avisou: “Vou te levar ao portão”. Ele, que enfiava o paletó, espanta-se: “Que piada é essa?”. O espanto era natural, considerando-se que, após dez dias de lua-de-mel, ela jamais rendera ao marido semelhante homenagem. Interpelada por Godofredo, eleva a voz:
— Piada por quê, ora bolas? Você não é meu marido? Devo tratar meu marido a pontapés?
Ele, sem entender patavina, rosna:
— É fantástico!
E vai saindo na frente. Então, Marlene, dando-lhe o braço, exige: “Presta atenção. Lá fora, vou te beijar, percebeste?”. Houve no portão o que o próprio Godofredo chamaria depois de um verdadeiro show. Marlene dependurou-se no braço do esposo e deu-lhe um beijo cinematográfico na boca. Em seguida, enquanto o espantadíssimo Godofredo afasta-se, ela, num quimono rosa, debruçada no portão de madeira, esvazia-se em adeusinhos com os dedos.
A coisa fora tão insólita que, da cidade, o rapaz bateu o telefone para casa, fulo. Começou grosseiramente: “Você bebeu? Acordou com os azeites? Que papelão foi aquele?”.
Marlene engrolou as palavras. Ele insistiu:
— Há uns duzentos anos que tu não me beijavas na boca. Por que esse carnaval?
EXPLICAÇÃO
Quando voltou do serviço, e pôde conversar com a esposa, Godofredo soube de tudo. Quem tomara a iniciativa de proporcionar aos vizinhos e eventuais transeuntes cenas amorosas ao portão fora a nova vizinha. Osvaldina, com efeito, dava com o marido um espetáculo de incomensurável chamego. Marlene vira aquilo e se doera. Prometera de si para si: “Eu te dou o troco!”. E dizia agora ao esposo:
— Essa lambisgóia me atira na cara a sua felicidade. Pensa, talvez, que é a única esposa amada. As outras não são, só ela é que é. Mas comigo não, uma ova!
Devidamente esclarecido, Godofredo esbravejava, por sua vez: “Você resolveu dar um espetáculo e quem paga o pato sou eu? Exatamente eu?”. Exaltada, andando de um lado para o outro, Marlene estaca: “Você é marido pra quê, carambolas?”. E ele consternado:
— Mas, criatura, raciocina! Pensa um pouco! A gente não estava combinando o desquite? Separação?
Só faltou bater no marido:
— Você pensa que eu vou dar o gostinho a essa cavalheira? Se eu me separar, ela vai mandar repicar os sinos, vai espalhar que eu fracassei como mulher. Não, nunca! Você não casou comigo? Meu filho, aqui no Brasil não há divórcio, compreendeu? Agora agüenta!
Ele, pasmo, lívido, abria os braços para o teto:
— Essa é a maior! É a maior!
RIVALIDADE
E, então, todas as manhãs, era um duplo show de indescritível felicidade conjugai. No portão fronteiro, Osvaldina atracava-se ao esposo e submergia-se nas demonstrações mais deslavadas. Beijava-o como se o pobre homem fosse partir para a Coréia ou coisa que o valha. Por sua vez, Marlene não ficava atrás. Como os dois maridos saíssem quase na mesma hora, os dois espetáculos foram muitas vezes simultâneos. A princípio, Godofredo, envergonhado da comédia, quis relutar. Mas Marlene foi intransigente. Definiu em termos precisos a situação:
— O negócio é o seguinte: aqui, dentro de casa, você pode me tratar a pontapés. Mas lá fora, não. Lá fora, eu quero, eu faço questão que você banque o apaixonado até debaixo d’água, sim? Eu nunca te pedi nada. Te peço isso!
Godofredo coçava a cabeça impressionado. Mas era um bom sujeito, doce de caráter, fraco de coração. Compreendia que, para Marlene, aquela misteriosa mistificação matinal era um problema de vida e morte. Suspirou, arrasado:
— OK! OK!
AMOR DE VERDADE
Todos os dias, ela o instigava: “Vamos embasbacar essa gente, meu filho, conta pra eles que tu me amas com loucura e vice-versa”. Pouco a pouco, o espírito de concorrência, de rivalidade, foi se apoderando de Godofredo. À noite, depois do jantar, os dois saíam num agarramento, numa inconveniência de namorados. Já se rosnava na rua: “Aqueles dois são impróprios para menores!”. Simulavam também, no cinema, um falso assanhamento que indignava as pessoas próximas. Em casa, trancados, tiravam a máscara e agiam com a maior circunspeção. Mas tanto fingiram que, uma noite, a portas fechadas, ele se vira para a mulher: “Dá cá um beijinho”. Então espantado, inquieto, Godofredo saboreia o beijo, como se lhe descobrisse, subitamente, um sabor diferente e mágico.
Levanta-se e vem, transfigurado, beijar sôfrego e brutal a pequena. Arquejante, balbucia:
— Gostei.
Pronto. A partir de então, começaram uma nova e inenarrável lua-de-mel.
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...
— Sabe qual é o golpe? O grande golpe? A solução batata?
— Qual?
E ele:
— A separação. Que é que você acha? Vamos nos separar?
No momento, Godofredo estava com a cabeça no colo da mulher. Muito entretida, Marlene coçava e catava os cravos do marido com inenarrável deleite. O rapaz insiste:
— Como é? Topas?
Ora, Marlene estava entregue a um mister que lhe parecia de suprema volutuosidade. Justamente acabava de fazer uma des¬coberta da maior gravidade. Com água na boca, anunciou:
— Achei um formidável! Grande mesmo!
E não sossegou enquanto não completou a extração do cravo monumental. Satisfeita, eufórica, vira-se, então, para Godofredo:
— O que é que você perguntou?
Ele repete:
— Vamos nos separar?
A princípio ela não entendeu:
— Separar?
Godofredo confirma: “Exato”. Sem horror, sem drama, apenas surpresa, ela indaga: “Separar por quê? A troco de quê? Sinceramente, não vejo razão”. Sóbrio, mas firme, ele protesta:
— Razão há. Tenha santíssima paciência, mas há. Você quer ver como há? Nossa vida é duma chatice inominável. Te juro o seguinte: — não há no mundo uma vida mais sem graça, mais besta do que a nossa. Há? Fala francamente.
Marlene parece disposta a uma segunda pesquisa no rosto do marido. Pergunta, meio distraída:
— Você me dá três dias pra pensar?
Godofredo faz os cálculos:
— Três dias? Dou.
A VIZINHA
Na história matrimonial de ambos, não havia a lembrança de um atrito, de um incidente sério, de um ressentimento. Eles se aborreciam juntos, eis tudo. Para Godofredo, a monotonia era um motivo mais do que suficiente para a separação. Já Marlene, que respeitava mais a opinião dos parentes e vizinhos do que a do próprio Juízo Final, duvidava um pouco. De qualquer maneira, como era uma mártir, uma Joana d’Arc do tédio, é possível que acabasse concordando. Mas aconteceu uma coincidência interessante: no dia seguinte, conhece Osvaldina, sua nova vizinha. Conversa vai, conversa vem, e Osvaldina, sua vizinha, começa a pôr o seu marido nas nuvens.
— Esposa tão feliz como eu, pode haver. Mas duvido!
Isto foi o princípio. Formara-se um grupo de mulheres na calçada. E Osvaldina continuou, no mesmo tom de comício: “Estou casada há cinco anos. Muito bem. Vocês pensam que a minha lua-de-mel acabou? Que esperança!”. Houve em derredor um assombro mudo e, possivelmente, um despeito secreto. Uma lua-de-mel assim infantil e infinita era um fato sem precedente naquela rua, onde o fastio do matrimônio começava ao término da primeira semana. E a fulana prosseguia, cada vez mais cheia de si e do marido:
— Jeremias me beija, hoje, como na primeira noite etc. etc.
De noite, quando Godofredo chegou, Marlene estava indignada. Contou-lhe o caso da vizinha e explodiu:
— Uma mascarada! Pensa que é o quê? Melhor do que ninguém? Ora veja!
Godofredo rosna:
— Deixa pra lá!
Mas ela estava numa revolta sincera e profunda:
— Você conhece o marido dela? Viu? É um espirro de gente, um tampinha! E vou te dizer mais: não chega a teus pés, não é páreo pra ti!
De cócoras, ao pé do rádio, Godofredo estava procurando uma estação. Súbito, a mulher vira-se para ele. Foi misteriosa:
— Ela não perde por esperar! Vou tomar as minhas providências! Quando quero, sou maquiavélica!
MUDANÇA
De manhã, quando o marido ia sair, ela avisou: “Vou te levar ao portão”. Ele, que enfiava o paletó, espanta-se: “Que piada é essa?”. O espanto era natural, considerando-se que, após dez dias de lua-de-mel, ela jamais rendera ao marido semelhante homenagem. Interpelada por Godofredo, eleva a voz:
— Piada por quê, ora bolas? Você não é meu marido? Devo tratar meu marido a pontapés?
Ele, sem entender patavina, rosna:
— É fantástico!
E vai saindo na frente. Então, Marlene, dando-lhe o braço, exige: “Presta atenção. Lá fora, vou te beijar, percebeste?”. Houve no portão o que o próprio Godofredo chamaria depois de um verdadeiro show. Marlene dependurou-se no braço do esposo e deu-lhe um beijo cinematográfico na boca. Em seguida, enquanto o espantadíssimo Godofredo afasta-se, ela, num quimono rosa, debruçada no portão de madeira, esvazia-se em adeusinhos com os dedos.
A coisa fora tão insólita que, da cidade, o rapaz bateu o telefone para casa, fulo. Começou grosseiramente: “Você bebeu? Acordou com os azeites? Que papelão foi aquele?”.
Marlene engrolou as palavras. Ele insistiu:
— Há uns duzentos anos que tu não me beijavas na boca. Por que esse carnaval?
EXPLICAÇÃO
Quando voltou do serviço, e pôde conversar com a esposa, Godofredo soube de tudo. Quem tomara a iniciativa de proporcionar aos vizinhos e eventuais transeuntes cenas amorosas ao portão fora a nova vizinha. Osvaldina, com efeito, dava com o marido um espetáculo de incomensurável chamego. Marlene vira aquilo e se doera. Prometera de si para si: “Eu te dou o troco!”. E dizia agora ao esposo:
— Essa lambisgóia me atira na cara a sua felicidade. Pensa, talvez, que é a única esposa amada. As outras não são, só ela é que é. Mas comigo não, uma ova!
Devidamente esclarecido, Godofredo esbravejava, por sua vez: “Você resolveu dar um espetáculo e quem paga o pato sou eu? Exatamente eu?”. Exaltada, andando de um lado para o outro, Marlene estaca: “Você é marido pra quê, carambolas?”. E ele consternado:
— Mas, criatura, raciocina! Pensa um pouco! A gente não estava combinando o desquite? Separação?
Só faltou bater no marido:
— Você pensa que eu vou dar o gostinho a essa cavalheira? Se eu me separar, ela vai mandar repicar os sinos, vai espalhar que eu fracassei como mulher. Não, nunca! Você não casou comigo? Meu filho, aqui no Brasil não há divórcio, compreendeu? Agora agüenta!
Ele, pasmo, lívido, abria os braços para o teto:
— Essa é a maior! É a maior!
RIVALIDADE
E, então, todas as manhãs, era um duplo show de indescritível felicidade conjugai. No portão fronteiro, Osvaldina atracava-se ao esposo e submergia-se nas demonstrações mais deslavadas. Beijava-o como se o pobre homem fosse partir para a Coréia ou coisa que o valha. Por sua vez, Marlene não ficava atrás. Como os dois maridos saíssem quase na mesma hora, os dois espetáculos foram muitas vezes simultâneos. A princípio, Godofredo, envergonhado da comédia, quis relutar. Mas Marlene foi intransigente. Definiu em termos precisos a situação:
— O negócio é o seguinte: aqui, dentro de casa, você pode me tratar a pontapés. Mas lá fora, não. Lá fora, eu quero, eu faço questão que você banque o apaixonado até debaixo d’água, sim? Eu nunca te pedi nada. Te peço isso!
Godofredo coçava a cabeça impressionado. Mas era um bom sujeito, doce de caráter, fraco de coração. Compreendia que, para Marlene, aquela misteriosa mistificação matinal era um problema de vida e morte. Suspirou, arrasado:
— OK! OK!
AMOR DE VERDADE
Todos os dias, ela o instigava: “Vamos embasbacar essa gente, meu filho, conta pra eles que tu me amas com loucura e vice-versa”. Pouco a pouco, o espírito de concorrência, de rivalidade, foi se apoderando de Godofredo. À noite, depois do jantar, os dois saíam num agarramento, numa inconveniência de namorados. Já se rosnava na rua: “Aqueles dois são impróprios para menores!”. Simulavam também, no cinema, um falso assanhamento que indignava as pessoas próximas. Em casa, trancados, tiravam a máscara e agiam com a maior circunspeção. Mas tanto fingiram que, uma noite, a portas fechadas, ele se vira para a mulher: “Dá cá um beijinho”. Então espantado, inquieto, Godofredo saboreia o beijo, como se lhe descobrisse, subitamente, um sabor diferente e mágico.
Levanta-se e vem, transfigurado, beijar sôfrego e brutal a pequena. Arquejante, balbucia:
— Gostei.
Pronto. A partir de então, começaram uma nova e inenarrável lua-de-mel.
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.