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terça-feira, 8 de novembro de 2011

As cabeças rolantes

E ninguém fala dos estudantes tchecos. Quando os jovens da França começaram a virar carros, a arrancar paralelepípedos e a incendiar a Bolsa — as manchetes se assanharam, em todos os idiomas. Ninguém entendia nada.

A primeira Revolução Francesa fora nítida e profunda. Derrubou-se a Bastilha, decapitou-se Maria Antonieta e instalou-se o Terror. Mas sabíamos por que as coisas aconteciam e por que rolavam as cabeças. Mas a recente agitação estudantil teve um defeito indesculpável: — faltou-lhe o Terror.

O mundo ainda faz a pergunta sem resposta: — "Onde estão as cabeças cortadas?". Simplesmente, não estão, nem houve. Ninguém decapitou ninguém. E, como não havia gasolina, ninguém morria, nem atropelado.

Pode-se dizer que nem tudo se perdeu no caos estudantil. Eu diria que se salvaram algumas frases. Fala-se muito da prosa francesa. E, de fato, as maiores bobagens ditas em francês têm um insuperável requinte estilístico.

Além de arrancar a capa de asfalto e pôr fogo nos carros, os estudantes faziam as belas frases. Uma dela dizia assim: — "É proibido proibir". Houve um dia em que todos os muros parisienses não diziam outra coisa. Por toda a parte, o berro vital: — "É proibido proibir".

E todos os fatos eram possíveis. Numa assembléia de estudantes, levantou-se um barrigudo: — "Quero falar. Sou um capitalista". Um jovem líder se levanta: — "Fala o camarada capitalista". E o gorducho disse ao que veio. Em seguida, o poeta Aragon pede a palavra. Um estudante diz: — "Aqui, qualquer um pode falar, inclusive o último dos traidores". Aragon é stalinista e, como tal, o último dos traidores, não só da França, não só da poesia, como da própria pessoa humana. Falou, como o camarada canalha.

Naturalmente, vocês querem saber qual figura fez Sartre no lírico tumulto daqueles dias. Ah, Sartre, Sartre! Quando o filósofo esteve no Brasil, o nosso papel foi, se me permitem dizê-lo, meio indigno. Sim, os nossos intelectuais se comportaram como se fôssemos a mais deprimente subcolônia espiritual. Fui ver uma de suas conferências.

Quando ele apareceu, a platéia só faltou lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E foi aí que eu descobri que há, sim, admirações abjetas.

Mas o francês não admira outro francês com esse estupor. E os estudantes de lá trataram o filósofo de alto a baixo. Quase não houve conversa. A rapaziada ouvia Sartre com irônica indulgência. Por fim, o gênio levantou-se, humilhadíssimo; disse: — "Vocês têm mais imaginação do que eu". Saiu de lá trôpego e derrotado. Os jovens o enxotaram e assim começou a solidão de Sartre.

Mas a grande frase da quase Revolução Francesa foi mesmo a do general De Gaulle. O velho herói parecia um mito exausto. A jovem massa levava cartazes assim: — "Fora De Gaulle", "De Gaulle Assassino", "Morte para De Gaulle". O general estava fora do país. Sim, o mito passeava. Quando voltou à França, declarou para o seu povo: — "Eu sou a Revolução!". Foi um espanto mundial. E todos sentiram que De Gaulle era o último "eu" do século. Olhem o nosso mundo, virem e revirem a nossa época. Não há outro "eu". E o herói setuagenário parece um momento da insânia humana. Só um louco, em sua danação, pode-se julgar um "eu".

Nem precisamos ir tão longe. Vamos olhar o Brasil.

Antes, porém, de falar do Brasil, quero lembrar os versos que Rainer Maria Rilke escreveu para o próprio túmulo. Só me lembro de um momento do epitáfio. É quando diz o poeta que o morto sente "a volúpia de ser ninguém". Aí está o mistério da nossa época. Fora um insano, como De Gaulle, que se imagina "eu ", não há mais as fortes e crispadas individualidades, que ofendiam e humilhavam os demais com a sua dessemelhança genial.

Mas deixemos de lado os outros países e os outros homens. O que me interessa é o Brasil, é o brasileiro e, em especial, o nosso teatro. Sempre digo que só os profetas enxergam o óbvio. O que eu chamo de óbvio é este fato: — o teatro brasileiro acabou antes de começar.

Na altura de 1940, sentiu-se aqui uma enorme tensão criadora; e cheguei a pensar que ia nascer a nossa tragédia. Toda uma geração de autores, diretores, atores parecia saturada de potencialidade. Essa plenitude durou pouco. De repente, estancou o processo teatral. Falei do "nascimento da tragédia" no Brasil. E o que aconteceu foi espantoso: a "tragédia brasileira" ainda não nasceu e já está decadente. Entendem? Decadente antes de nascer. Todo o maravilhoso ímpeto inicial se esvaiu e se corrompeu no show idiota.

Mas há pior e, repito, há pior. O show ainda tem uma relação com o teatro. Acontece que os diretores, autores, atores e atrizes abandonam o palco. Cabe então a pergunta: — e onde estão eles? Cada qual assume a forma impessoal, numerosa e irresponsável da assembléia, do comício, da comissão, do manifesto, da passeata e da unanimidade. Só agimos, só sentimos, só amamos e só odiamos em massa.

Sim, estamos todos massificados. E cada um sente, como no epitáfio de Rilke, a volúpia de ser ninguém. O sujeito se dissolve na passeata, na assembléia, na unanimidade. E ninguém faz as coisas simples e profundas que o teatro exige.

Em vez de realizar o Hamlet ou A dama das camélias, a classe desfila da Cinelândia à Candelária. E basta.

E, por isso, dizia eu que o teatro está morto no Brasil. Morreu a partir do momento em que nos politizamos.

Felizmente, a nossa traição ao "drama brasileiro" tem nobilíssimas razões e, eu diria mesmo, razões sublimes. Não escrevemos peças, nem as representamos e, tampouco, as dirigimos. Em compensação, salvamos o Vietnã e, ao mesmo tempo, resolvemos o problema da fome mundial. Dirá alguém que a fome do homem resistiu a Cristo, Buda, Alá, Maomé, Marx, Freud. Mas os citados falharam, por azar, inépcia, incompetência, má-fé, corrupção.

O que não acontece com a Classe Teatral. Bem me lembro da nossa última assembléia.

Enquanto vociferávamos, o Pentágono foi surpreendido a ouvir-nos, atrás das portas; e do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina da pusilanimidade.
[26/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O antiteatro

Ah, gosto muito do Sábato Magaldi, o crítico paulista.

Lembro-me do nosso encontro, há anos, aqui no Rio, na esquina de Senador Dantas com Evaristo da Veiga. Eu não o via há meses. E ele me pareceu tão magro e tão só. O que me impressionou mais, porém, foi o olho do amigo, e repito: — o olho de uma doçura intensa, quase insuportável. Com um retoque aqui e ali, o Sábato Magaldi seria um santo, o primeiro santo da crítica teatral.

Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia falar da nossa discussão sobre cinema. Era a época dos primeiros filmes coloridos.

Há entre mim e o caro amigo uma série de cordiais abismos. Quando escreve sobre o meu teatro, sinto que não é o crítico, mas o amigo, quase o irmão (quero crer que ele sempre reage como o amigo e o irmão das coisas). Eu era a favor do filme colorido, e Sábato, contra. Ele só entendia o preto-e-branco.

No meu espanto, perguntei-lhe: — "Mas que diabo! Você é contra a cor?".

E eu não compreendia tal ressentimento visual.

Discutimos uma boa meia hora. E, até o fim, o Sábato Magaldi foi o mesmo e brioso paladino do preto-e-branco. Dizia eu: — "Vem cá, Sábato, vem cá". E insistia: — "Mas que diabo te fez o amarelo? E o verde? E o azul? E o roxo?".

Lembrei-lhe que Van Gogh gostava tanto do amarelo. O meu último argumento foi este: — "Você odeia o arco-íris?". Não o dissuadi. Hoje, imagino que o Sábato deva abominar também o poente do Leblon porque a natureza não o fez em preto-e-branco.

Falei do cinema para chegar ao teatro. Quando começou o cinema, houve o vaticínio mundial: — "O teatro vai morrer". E mais tarde surgiu a televisão. Imediatamente, outros profetas anunciaram também que a televisão era o fim do teatro. Vejam como o teatro vive de mortes e de ressurreições. De vez em quando, vem alguém passar-lhe o atestado de óbito. Mas ele continua. Não importa que a tela cinematográfica seja miguelangesca. (Contra a oposição solitária e ressentida do Sábato Magaldi, a cor vingou triunfalmente). Mas o teatro está vivo, o teatro é um cadáver salubérrimo.

Não sabemos se o cinema morrerá um dia, se outras técnicas vão devorar a televisão. Quanto ao teatro, quero crer que já demonstrou a sua eternidade. Cabe então a pergunta: — e por que sempre existirá um palco e sempre existirá um elenco representando?

Tem sido assim e assim será, para sempre. Pode parecer que o "grande artista" explica essa prodigiosa continuidade. Nem tanto, nem tanto. A eternidade do teatro depende mais do canastrão.

Foi mais ou menos isso que eu disse, no telefone, ao Sábato Magaldi. Imaginem vocês que o crítico ligou para mim, e vamos e venhamos: um interurbano é sempre uma altíssima demonstração de afeto. Lisonjeado, balbuciei: — "Quanta honra!". Não é sempre que um crítico, e dos mais lúcidos, e dos mais agudos, procura um autor.

Conversa daqui, dali, e o Sábato acaba pedindo: — "Por que é que você não faz uma entrevista imaginária com a Cacilda Becker?". Foi aí que, dentro do meu ponto de vista, expliquei que a Cacilda tinha um defeito: — era "a grande atriz".

O Sábato não entendeu: — "Se é grande atriz, melhor". Reagi: — "Pior". E expliquei que é o canastra que, inversamente, nutre a continuidade teatral. O "grande ator" é um para 10 mil. Só a massa de medíocres pode alimentar milhares de elencos e milhares de repertórios.

Todavia, o Sábato, com sua bondade pertinaz e persuasiva, insistia: — "Pelo amor de Deus, faz a entrevista imaginária com a Cacilda. Te peço como amigo". Eu preferia a canastrona, muito mais representativa do que o gênio. A Duse ou Sarah Bernhardt é um corpo estranho dentro de sua geração. Mas o Sábato pedia; e quem, no céu e na terra, pode resistir ao Sábato? Suspirei: — "Está bem. Você manda. Vou entrevistar a Cacilda Becker".

E, antes de me despedir, fiz o apelo: — "Me abençoa, Sábato, me abençoa". E o amigo, em sua infinita misericórdia, me abençoou.

Saí do telefone, isto é, não saí do telefone. Desliguei e, imediatamente, disquei para 01. Feita a ligação fulminante, uma voz feminina atende. Peço: — "Quer-me chamar a Cacilda?". A resposta foi taxativa: — "Não mora aqui".

Protesto: — "É esse o número, minha senhora. Cacilda Becker. Mora aí". E a outra: — "Engano". E, súbito, desconfio da verdade. Berro: — "É você que está falando, Cacilda? Sou eu, Nelson!". Há uma pausa dramática. Finalmente, explode a voz feminina: — "É mesmo, é mesmo! Agora me lembro. Cacilda Becker. Eu era Cacilda, fui Cacilda. O sobrenome é Becker? Fui Cacilda Becker".

A conversa estava meio alucinatória. Numa impressão profunda, pergunto: — "Está-me ouvindo, Cacilda? Esteja, hoje à meia-noite, no terreno baldio. Você vai-me dar uma entrevista imaginária. Entendeu? Uma entrevista imaginária, na presença da cabra vadia".

A grande atriz pluralizou: — "Lá estaremos". E eu: — "Boa noite". Ela respondeu em voz pungente, em voz plangente: — "Boa noite".

Às dez para meia-noite, estou eu no terreno baldio.

Tomei todas as providências. Reuni os gafanhotos, sapos, corujas, caramujos e minhocas. Fui de um em um, pedindo pelo amor de Deus: — "Modos, hem; modos!". E, súbito, vem correndo um caramujo: — "Está chegando a passeata". Pulo: — "Que passeata? Eu não chamei passeata nenhuma. Vou entrevistar a Cacilda Becker. Só a Cacilda e mais ninguém".

Mas era a estarrecedora verdade. Ao longe, empunhando archotes, vinha a passeata. E, no meio, hirta, sonâmbula, vestida de Ofélia, pude ver a minha entrevistada, Cacilda Becker.

Aterrado, esperei aquela massa ululante. Ouvia-se o coro: — "Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!". O vozerio subia aos céus.

Lá em cima, as estrelas começaram a atirar listas telefônicas e cinzeiros sobre os manifestantes. A quinze metros do local, o Vladimir Palmeira trepa na capota do próprio automóvel. Diz, forte: — "Classe teatral!". Silêncio. E o Vladimir: — "Estamos cansados. Vamos sentar".

A docilidade foi total. A Classe sentou-se no asfalto, o Líder deixou passar cinco minutos; e comanda: — "Já descansamos. Vamos marchar!". E todos marcharam os quinze metros que faltavam.

Só então, dilacerado e confuso, dirijo-me à própria Cacilda: — "Escuta, houve um lamentável engano, um equívoco horrendo. Eu só convidei você, Cacilda!". E a atriz: — "Eu não sou Cacilda. Sou a passeata!".

Lá estava Paulo Autran: — "Você, Paulo Autran, ao menos você, é Paulo Autran?". Resposta: — "Sou uma assembléia!".

Ao lado, vi o Ferreira Gullar: — "Ferreira, diga, berre: — eu sou Ferreira Gullar!". Retruca: — "Eu sou um abaixo-assinado! Sou uma comissão de intelectuais!". Em seguida, puxou um isqueiro e incendiou um exemplar de A luta corporal.

Vozes repetiam: — "Sou um comício! Sou um panfleto! Sou a Classe!". Cada qual era ninguém. Olho aquelas caras. Todos tinham perdido a noção da própria identidade. Recuo, apavorado. Uma coruja rola com ataque.

E, então, a marcha continua. A massa coral repetia: — "Par-ti-ci-pação! Par-ti-ci-pa-ção!". A cabra vadia veio sentar-se no meio-fio e começou a chorar. As estrelas atiravam catálogos telefônicos sobre a passeata.

Foi um caso sério.
[25/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Brasil nazi-stalinista

Vocês se lembram do pacto germânico-soviético. Uma manhã, o mundo vê, em todas as primeiras páginas, a cínica, a deslavada fotografia: — Stalin apertando a mão de Ribbentropp.

Digo sempre que o riso pode comprometer ao infinito. Aqui mesmo, contei o caso daquele ministro que não ria, para não se arriscar. E, diante de tudo e de todos, tinha a mesma cara hirta como uma máscara.

Mas Stalin e Ribbentropp riam, um para outro, e a risonha abjeção estarreceu o mundo.

Ou por outra: — não estarreceu. Em verdade, a manchete, a notícia e o clichê só espantaram uma meia dúzia. Os outros sentiram apenas o medo, o Grande Medo.

Os exércitos alemães esperavam apenas o riso e o aperto de mão. Posso dizer que uma fotografia assassinou milhões. Em seguida, a Polônia foi estuprada. Era a nova Guerra Mundial. E morreram tantos que, no fim de certo tempo, o horror deixou de ser horror. E o que havia, por toda a parte e em todos os idiomas, era o tédio da morte, e do sangue, e das mutilações.

Diria também que os próprios sobreviventes tinham vergonha de estar vivos. A vida tornara-se indigna.

Não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana.

Escrevi que a fotografia matou 100 milhões (não sei se mais, não sei se menos). Mas deixemos de lado o horror numérico. Tanto faz 1 ou 100 milhões de defuntos. Quando se assinou o pacto, eu já trabalhava em O Globo. Li o telegrama ainda na redação.

Eis o que me ocorreu, por outras palavras: — se é possível o pacto germânico-soviético, e se o mundo o aceita, tudo é permitido. Durante dias e até meses, fui devorado por uma obsessão. Parecia-me absurdo que cada um de nós continuasse a fazer sua vida, a escovar os dentes, a tomar café, a jogar nos cavalos etc. etc. O meu sentimento era de que o pacto extinguira toda a vida moral.

E, no entanto, em todo o século, não há um ato tão inteligente, uma aliança tão lúcida, um acontecimento tão natural. Rússia e Alemanha tinham que se entender naquele momento. Tão parecidos Stalin e Hitler, tão gêmeos, tão construídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler do que Stalin. Do mesmo modo, como são parecidos os radicais da esquerda e da direita!

Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não. Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha. Pode parecer que Hitler e Stalin passaram. Nenhuma ilusão mais idiota. Napoleão, o Grande, só foi possível porque a Europa estava saturada de pequeninos napoleões. E o mundo está cheio de Hitler e Stalin liliputianos. No tempo da guerra usava-se muito a expressão nazi-fascismo. Muito mais válido seria dizer-se, ainda hoje, nazi-stalinismo. O pequenino Hitler, ou o pequenino Stalin, tem um íntimo tesouro de ódio. É como se tivéssemos de optar por um ou por outro.

Imaginem que falo pensando no Brasil. Vejamos os brasileiros. Aqui, o radical de esquerda não percebe, ou finge que não percebe, que é um stalinista. O radical, do outro lado, é nazista. A toda hora e em toda a parte, cumprimentamos um pequenino Stalin ou um pequenino Hitler. Instala-se o Brasil do ódio, ou, melhor dizendo, o anti-Brasil. Direi mesmo que o brasileiro está em processo de desumanização.

Imaginem cada um de nós transformado, de repente, na antipessoa. Conheço vários que perderam qualquer semelhança com o ser humano. Aqui abro um parêntese. Não sei se notaram que estou usando uma ênfase, um tom, uma veemência não comuns nesta coluna. Mas explico.

O caso é que, ontem, o Kleber Santos bateu o telefone para mim. Dizia excitadíssimo: — "Imagine, Nelson, imagine!". Sinto a sua dispnéia emocional. E o Kleber, que é um dos nossos grandes diretores de teatro, continua, arquejando: — "Usaram o teu nome! Teu nome!".

Excelente Kleber! Falava como se meu nome fosse um patrimônio, algo de sagrado e intangível como um quepe ou uma espada da Guerra do Paraguai. E, então, mais calmo, contou-me tudo.

Alguém atirara, de um automóvel, na porta do Teatro Jovem, prospectos insultantes. Eu não os li. Mas o meu amigo informa que os panfletos ameaçam e ofendem os artistas. E lá está impresso o trecho de um artigo meu sobre d. Hélder. No seu fervor de amigo, o bom Kleber entende que eu devo repudiar a canalhice.

Aí está por que, desde o começo do presente artigo, sou o mais contrafeito dos colunistas. Se eu apoiasse qualquer ato de violência, da direita ou da esquerda, seria um canalha.

Ao mesmo tempo, é meio humorística a situação de um escritor que, empostando a voz, limpando o pigarro e alçando a fronte, anuncia para o seu público: — "Meus senhores e minhas senhoras, saibam que eu não sou exatamente um canalha". Entendo, ao mesmo tempo, o empenho do Kleber. Sua dispnéia, ao telefone, tinha algo de comovente. Não resisto a um amigo patético. Bem. Vamos lá.

Eu me consideraria o último dos infames se, algum dia, me solidarizasse com a violência. Para mim, a liberdade está acima do pão (e, por isso, o pequenino Stalin ou o pequenino Hitler há de me considerar o mais bestial dos reacionários). D. Hélder e dr. Alceu são contra e a favor da violência. Assumem uma ou outra atitude, taticamente, segundo as conveniências de momento.

Outro dia, li, no d. Hélder, no dr. Alceu e no padre Comblin, que a guerrilha "não adianta". Não se trata de uma objeção moral, religiosa, humana, ou que outro nome tenha. Eles se opõem pela ineficácia. Só.

A dedução é óbvia: — se a carnificina fosse proveitosa, devíamos sair por aí chupando as carótidas uns dos outros. Singular caridade de d. Hélder, do padre Comblin e do dr. Alceu.

Também não aceito o padre de passeata. Quero que me entendam. O padre de passeata é, hoje, uma ordem tão definida, tão caracterizada como a dos beneditinos, dos franciscanos, dos dominicanos e qualquer outra. E está a serviço do ódio. Nunca ninguém verá um gesto meu, ou uma linha, a favor de qualquer terrorismo da esquerda ou da direita.

Agora mesmo cometeu-se um crime contra o teatro brasileiro. Espancou-se a platéia, espancou-se o elenco de Roda viva. Despiram as atrizes. Uma delas estava grávida, e gritou a própria gravidez. Foi arrastada, pisada, chutada.

Começou um Brasil nazi-stalinista.

[24/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A leitora de Marcuse

Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C. Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é o que mais viaja.

De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — "Meu bem, cadê o Machado?". A telefonista, mascando um imaginário chiclete, responde: — "Está em Tóquio". Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim. E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.

Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim para mim: — "Por que viaja tanto o Machado?". E, de fato, é o único brasileiro que gosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que, para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino.

Estivemos juntos, ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não estará desembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul. Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras, idiomas e paisagens, o Machado tem o mesmo e fácil trânsito em todos os jornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas por telefonemas.

E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: — ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em que jornal. Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — "Eu não sou jornalista". Mas ninguém pode exigir que uma linda senhora, e, de mais a mais, capa de Manchete, seja também racional. Ela está acima de qualquer argumento ou raciocínio.

E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria pouco para a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a aflição da capa de Manchete que o Machado quis saber: — "Mas o que é, afinal?". Imagino que, do outro lado da linha, a grã-fina tenha baixado a vista, escarlate de modéstia; e disse: — "Estou lendo Marcuse".

Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: — "Como? Como?". A outra suspira: — "Estou lendo Marcuse". E queria que o Machado, que tinha tantas amizades jornalísticas, mandasse publicar que ela, d. Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, as amigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horas e os dias lendo e relendo Marcuse.

Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — "Como pode? Como pode?". Eu, numa curiosidade aflita, queria o nome e, se possível, os dados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonho escândalo: — "Mas é ela? Ela?". Sim, era "ela".

E, já num interesse profundo, perguntei mais: — "E vais dar a notícia?". Meu amigo admitiu que sim. Estava disposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão "pra frente".

E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e, se possível, até uma descrição física da pessoa. Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não. Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bonita, como costumam ser as grã-finas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Taylor. Como se sabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou.

E a leitora de Marcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimentado, de Elizabeth Taylor. Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações "físicas" sobre a nossa heroína. Ah, já me lembro.

Tempos atrás, fui ao Estádio Mário Filho ver um Fla-Flu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; a grã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, entende tanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar, nervosamente: — "Quem é a bola? Quem é a bola?".

Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelo mesmo elevador. Estávamos amontoados num espaço sufocante e numa promiscuidade vagamente abjeta. Justamente, eu ia lado a lado com a leitora de Marcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que a olhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: — ela tem narinas de cadáver!

Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveis virtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acima de qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver.

E, ali, no elevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitora de Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou do primeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade do desquite. E o que perturbou sua convivência com os quatro maridos anteriores foram, ouso presumir, as narinas de cadáver.

Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claro impedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e, dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais.

No fim da leitura, eis a minha conclusão: — "O Machado trabalhou direito". E, de fato, em todos os jornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — "A sra. Fulana de Tal está lendo Marcuse".

Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginam o que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e lá está: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lê Marcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estão lendo Marcuse.

A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.

A grã-fina que "lê Marcuse", e o confessa por toda a parte, está dando um atestado de ideologia. E, realmente, a conhecida do Machado e minha é esquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mão de sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta e eterna impossibilidade.

No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vista, numa sacada, atirando listas telefônicas. De outra feita, marchou pela Avenida. Só fez uma concessão à própria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceu para não sujar o vestido.

Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína. Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos.

Certa vez, fui a um sarau de grã-finos no Alto da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadáver e seu decote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presentes o Daniel Caetano, moreno como um galã do neo-realismo italiano. E havia também um dominicano, vestido de branco, que passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculado pavão de arminho.

Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuse teve uma dúvida: — "Esse Molière é brasileiro?".

Um pau-d'água grã-fino respondeu na hora: — "Cearense".
[20/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Os noivos

Tinha eu sete anos. Não havia ainda o Poder Jovem e, pelo contrário, o Brasil estava cheio de setuagenários natos. Muitos nasciam com cinqüenta, sessenta, setenta anos. Por exemplo: — Rui Barbosa. Nasceu de fraque e já conselheiro.

Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável. Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez.

Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo. E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha.

A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.

Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes).

D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — "Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!".

Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal.

Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.

Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — "A mais antiga das profissões". Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.

Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a "Pasionaria" do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — "E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?". Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou "quarenta anos antes do Nada".

Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — "Muerte" a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. "Muerte", portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes.

Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.

Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro.

E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. "O que não respeita nem as cunhadas" começou, às gargalhadas: — "Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?".

Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — "Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual".

Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — "Então, melhor. Não precisam comprar nada".

Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — "Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores".

Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — "Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?".

Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — "Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!".

Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — "E o pior é o sindicato!". Atracado no telefone, fez um comício: — "Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E o problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!".

E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — "Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser  contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!".

Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — "Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto".

O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade.

E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — "Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias".

[18/7/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 1 de novembro de 2011

A morte do Teatro

Hoje, a classe teatral é realmente uma classe. Ninguém anda só, ou por outra: — a única solidão que conheço, em nossa comunidade, sou eu mesmo. No meio dos meus colegas, eu me sinto só, e tão só, como um Robinson Crusoé sem radinho de pilha. Ao passo que os outros autores, e os atores, e as atrizes, e os contra-regras, e os maquinistas são A CLASSE.

Não vejam, porém, nas minhas palavras, nenhuma insinuação restritiva. Deus me livre. Diria mesmo que considero a minha solidão, não uma virtude, mas uma incapacidade. Bem que eu gostaria de ter um mínimo de vocação associativa. Gostaria de ser ninguém ou, por outra, ser apenas GRUPO, CLASSE, REUNIÃO, ASSEMBLÉIA, DISCURSO!

Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz Cacilda Becker. Ia cumprimentá-la, mas não me atrevi. Como tratá-la?

Outrora, eu diria: — "Olá, Cacilda", ou "Bom dia, Cacilda", ou "Tudo azul, Cacilda?".

Sim, houve um tempo em que Cacilda era Cacilda, simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenógrafo é um misterioso ser impessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim: — "Olá, Comissão", "Olá, Assembléia", "Olá, Passeata".

Dias atrás, ao sair de casa, encontro um ator patrício, à espera de condução. Ergueu o gesto e anunciou: — "Vou à passeata!". Disse eu não sei o que ou, melhor, não disse nada, e ele começou a falar. Juntou gente. Não era um ator, era um Discurso, era uma Comissão, era uma Assembléia.

Dizia "nós" e não "eu". E, de repente, entraram, de roldão, o Vietnã, Mao Tsé-tung e Guevara.

Com mais um pouco, ele sairia por aí virando carros, arrancando paralelepípedos e incendiando a Bolsa (tal como em Paris).

E daí a minha admiração pela CLASSE. Em outra ocasião, houve, em São Paulo, um "seminário de teatro". Era de teatro e, como dramaturgo, lá fui eu. Imaginei que íamos discutir representação, técnicas, décor, luz, textos etc. E, súbito, um alienado qualquer falou em dramaturgia. Quase o lincharam. Um latagão enfiou-lhe o dedo na cara, aos berros:

— "Pensa que nós estamos aqui pra discutir teatro?". O quase-agredido baixou a cabeça, lívido de pusilanimidade. Sentou-se no seu canto e lá ficou, numa solidão de comício de 1° de Maio.

Eis o que eu queria dizer: — entendo, como ninguém, as posições da CLASSE. Ótimo que cada ator, ou atriz, ou diretor, tenha uma ênfase de 14 de Julho, de tomada da Bastilha, de Hino Nacional. A política é a grande linguagem do nosso tempo. E cada qual, para sobreviver, simplesmente existir, precisa ter um toque ideológico. Tudo isso é certo e eu concordo.

Mas estão acontecendo coisas que justificam, a meu ver, uma relativa perplexidade.

Não sei se vocês conhecem o caso de Norma Bengell. O que aconteceu com a famosa atriz tem mais suspense e mistério do que qualquer Hitchcock. Os jornais já comentaram, a TV cobriu, o rádio deu. Vamos aos fatos.

Um jornalista norte-americano resolveu assistir à peça de Norma Bengell. Ouviu dizer que se tratava de atriz notável, um valor internacional, e quis ver. Foi à bilheteria, adquiriu e pagou os ingressos, deixou uma propina e foi à vida. Na hora própria, ou melhor, com meia hora de antecedência, estava na porta do teatro. Soube, então, que não havia espetáculo. Deixou passar três ou quatro dias e voltou à bilheteria. Perguntou, com sotaque: — "Há espetáculo?". Havia. E, novamente, comprou os ingressos, pagou e deixou uma propina. Mais tarde, e antes de sair de casa, telefonou para o teatro. Fez a honrada pergunta: — "Há espetáculo?". Havia. Lá se mandou ele com todos os convidados. Chega e sabe: — não havia espetáculo. A partir de então, passou a desconfiar que há qualquer coisa de errado, não só no teatro, como no próprio Brasil.

Deixou passar mais uns cinco dias. E volta à bilheteria. Pergunta: — "Há espetáculo?". Havia. Pela terceira vez, comprou os ingressos, deu a propina e partiu. Dez minutos antes de abrir o pano, liga para a bilheteria e pergunta: — "Há espetáculo?". Resposta: — "Há". O desgraçado pergunta: — "Posso ir?". E do outro lado: — "Pode vir". O americano junta os convidados e chega ao teatro em cima da hora. E o apunhalam com a notícia: — não havia espetáculo. Desta vez, o que era simples e difusa angústia tornou-se pânico total. O homem e os convidados começaram a achar que o Brasil está louco.

Mas não desistiu. Deixou passar mais dois dias. Ei-lo de volta ao bilheteiro. Desta vez, os convidados o acompanharam, todos mortalmente interessados naquele suspense insuportável. Cada um perguntou: — "Há espetáculo?". A resposta foi uma só: — "Sim, senhor".

Desta feita ninguém foi para casa. Todos se reuniram num boteco próximo e lá ficaram, esperando a hora de subir o pano. Um processo de angústia instalara-se no grupo. E, quando chegou o momento, lá foram eles. Ou por outra: — primeiro, foi um voluntário fazer um reconhecimento. Informaram que havia o espetáculo.

Voltou com a grande notícia: — "Há espetáculo". Todos se juntaram, numa euforia feroz, e foram para a porta do teatro. Não havia espetáculo, simplesmente não havia espetáculo. Não era mais possível nenhuma dúvida ou sofisma. Aqueles sujeitos se convenceram e, para sempre, do seguinte: — não haveria espetáculo nunca mais, nunca mais.

Daqui a duzentos anos, na hora de subir o pano, virá um funcionário avisar: — "Não há espetáculo". O tal americano está convencido de que os nossos atores, as nossas atrizes, não representam, de que os nossos diretores não dirigem, de que os nossos cenógrafos não fazem cenários.

E talvez seja esta a santa verdade. Dizia-se que o Brasil é um país racional. Já não sei, e tenho as minhas dúvidas.

Os atores não representam, e também o romancista não faz romance, nem o poeta, poesia, nem o pintor, pintura, nem o cineasta, filme. Sim, as coisas que devem ser feitas, ninguém as faz. Cabe então a pergunta: — e por quê? Primeiro, porque tanto o teatro, o romance, a poesia, a pintura ou a música vivem de umas tantas ou quantas individualidades fortes, crispadas, miguelangelescas.

E hoje o artista prefere ser ninguém, isto é, ele morre em classes, assembléias, discursos e passeatas.

O artista é um cadáver.

[14/7/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A multidão afrodisíaca

Nunca me esqueço de uma conversa que tive, há tempos, com o Plínio Marcos, o autor mais representado do Brasil. Hoje, é difícil, senão impossível, descobrir um teatro que não tenha o seu nome, na frente, como uma manchete.

Mas eis o que me disse o Plínio Marcos: — "Eu queria representar no Maracanã, para 200 mil pessoas!". (Digo Maracanã, e com que remorso o digo. O Maracanã é muito mais Mário Filho do que Maracanã).

Mas ao ouvir falar em 200 mil pessoas, concordo: — "Boa platéia, boa platéia!". Era uma noite fria. O hálito do mar gelava os edifícios. E, então, o nosso dramaturgo exaltou-se de vez. Sonhava aos berros: — "A minha peça seria a partida principal. E o Fla-Flu, a preliminar".

A hipótese o fascinou. Soluçava: — "O Fla-Flu como preliminar da minha peça!".

Uma semana depois, vou a um sarau de grã-finos.

Súbito, um dos presentes, já bêbedo, começou a falar em morte e, em seguida, na própria morte. Dizia o pau-d'água de luxo que não há ninguém mais exibicionista do que o defunto. O morto quer platéia. E o ideal seria que a nossa morte fosse preliminar do Fla-Flu. E o sujeito, em vez de morrer para meia dúzia de familiares e vizinhos, teria um velório de 200 mil pessoas.

Foi aí que percebi, subitamente, toda a verdade. A nossa utopia mais fascinante é a platéia do Fla-Flu, de Flamengo x Vasco. Sim, o homem moderno gostaria de ser épico, sublime, obsceno e romântico para multidões gigantescas.

E já me ocorre uma objeção contra a preliminar do Fla-Flu. Ei-la: — não há sacadas no Estádio Mário Filho. A superioridade das últimas passeatas sobre as massas do futebol está, exatamente, nas sacadas. Se não entendem o que estou dizendo, passo a explicar.

Hoje, não há mais terça-feira gorda e, repito, a terça-feira gorda morreu até o último vestígio. Mas houve um tempo em que os préstitos paravam a cidade. As pessoas alugavam sacadas para ver as grandes sociedades. Ao passo que, em nosso tempo, as sacadas deixaram de ter uma função estritamente contemplativa e assumiram o seu destino histórico (desculpem esse tom de editorial do Jornal do Brasil).

Sim, as sacadas foram, nas recentes passeatas, a grande revelação. Vocês se lembram. Embaixo, o grande desfile estudantil. Imagino que tenha sido uma surpresa até para os jovens. E, de repente, sem aviso prévio, as sacadas passaram a ter uma ação política, ideológica, libertária como as barricadas. Elas começaram a pensar, a ousar idéias, gestos, frases, sentimentos, berros.

Instantaneamente, todos perceberam que as sacadas eram barricadas aéreas, aladas, superpostas. Lá de cima, chovia papel picado, e mais, listas telefônicas, processos, cadeiras. À distância, tinha-se a impressão visual de que o papel picado era neve de Papai Noel. Nunca me esqueço de um décimo andar que começou a nevar cinzeiros e até baldes.

De mais a mais, as sacadas aplaudem como as frisas e os camarotes da ópera. E os que passam cá embaixo simplesmente passam, e não fazem mais nada senão passar — têm uma sensação de ópera sem lustre, sem torrinhas, sem libreto e sem cafezinhos nos entreatos.

E, de repente, a sacada passou a ter um papel decisivo nas passeatas. É uma excitação a mais, uma espécie de afrodisíaco ideológico, sei lá. Ou por outra: — não se trata bem de ideologia. A sacada traz um tremendo apelo à nossa vaidade. Pode parecer um sentimento menor, quase vil. Nem tanto, nem tanto. A vaidade está inserida na complexidade dos santos, dos heróis, dos mártires.

São centenas, milhares de sacadas que pendem sobre nós e atiram sobre nós listas telefônicas. Visualizem a cena: — o sujeito vem passando. E, súbito, cai-lhe no crânio, baixando do 12o andar, um cinzeiro. O sujeito há de sentir-se perfeitamente sublime.

Mas falo, falo e não digo o essencial. Hoje, queria pingar duas palavras sobre a inteligência nas passeatas.

Reparem: — qualquer um pode falhar, menos o intelectual.

Não houve chuva em nenhuma marcha. Mas, fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto e lá estaria ele, firme, inarredável, inexpugnável. Mas escrevi "intelectual" e cabe uma especificação: — falo do escritor, do romancista, do ensaísta e, numa palavra, daquele que depende sempre de um leitor.

Não se pode pluralizar o leitor. Mesmo o best-seller de 500 mil exemplares é lido por um, fatalmente por um. Por outro lado, o leitor é o ausente, o invisível, o intangível. Portanto, o romancista tem uma inconsolável nostalgia de massas.

Vimos que, no sarau de grã-finos, um pau-d'água queria fazer, da própria morte, a preliminar do Fla-Flu. Duzentas mil pessoas haviam de recolher o seu último suspiro. O dramaturgo Plínio Marcos gostaria de representar no ex-Maracanã para as mesmas 200 mil pessoas. E ninguém escapa à fascinação numérica da multidão.

Mas o escritor não tem possibilidade nenhuma de massas. Bem que gostaria de ser lido, no Estádio Mário Filho, por 200 mil pessoas ao mesmo tempo.

Ora, a passeata o desagrava de sua humilhante solidão. Fui com Raul Brandão, o pintor de igrejas e grã-finas, ver o desfile. E, súbito, o Raul crispa a mão no meu braço: — "Olha lá! Ali". Virei-me, e confesso o meu deslumbramento. Primeiro, vi a tabuleta: — "Intelectuais". Sempre tive a impressão injusta, a impressão iníqua de que há, na cidade, uns sete intelectuais. Ou nove. Vá lá, dez. E eis que, no espaço reservado à "Inteligência", se concentrava uma multidão nunca vista. Jamais me ocorrera a hipótese paranóica de que o Brasil tivesse tantos intelectuais.

Por um momento, eu e o Raul Brandão ficamos só olhando, esbugalhados de assombro. E admiramos a disciplina daqueles finos espíritos. Ninguém se mexia. Todos quietinhos, como se estivessem engradados.

Não larguei mais os intelectuais. O Raul Brandão tremia: — "Viste como o Brasil é inteligente?".

De fato, a evidência numérica estava a demonstrar que somos uma potência espiritual de primeiríssima. Já começava a marcha. Eu e o Raul Brandão fomos ao lado de um romancista. Caminhamos até à rua do Ouvidor de olho no romancista. E em outros romancistas, e ensaístas, e poetas, e cronistas, e sociólogos (cada vez me convencia mais da insuportável inteligência do Brasil).

Cada intelectual marchava como se fosse, no mínimo, um Proust, um Joyce.

Volto ao primeiro romancista. Livrara-se da tirania, numericamente humilhante, de um único leitor. Tinha sua platéia de Fla-Flu. E estava magnetizado pelas sacadas. Um catálogo de telefone, atirado de um 13° andar, podia rachar-lhe o crânio. Morreria feliz. E como transpirava de glória e de esforço físico.

Vi o suor pingando e, repito, o suor chorando na sua cara gorda.

[12/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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domingo, 30 de outubro de 2011

O bom padre

Como qualquer autor, vivo ou morto, tenho três ou quatro personagens obrigatórios. E um deles é o havaiano de filme. Hoje, não há mais louro no Brasil. Todo mundo é moreno. E quando falta uma praia, há sempre um sol à mão. Vem o sol e lambe e bronzeia e lustra qualquer um.

Somos 80 milhões de havaianos e de havaianas. Dirão que há garotas de cabelo dourados. Não importa. No Brasil atual, mesmo as louras são morenas.

Que abismo entre as gerações românticas e os novos tempos! Na época do Dumas filho, o certo, o correto e, mesmo, o obrigatório era a palidez diáfana e intensa. Nos velhos folhetins, ao menor pretexto, os personagens cobriam-se de uma "palidez mortal". Aqui mesmo, o nosso Bilac ouvia estrelas "pálido de espanto". (Hoje, o mesmo Bilac ouviria as mesmas estrelas "moreno de espanto").

E nem a morte mudava a cor de ninguém. Só o cadáver preto era azul. Ao passo que o branco, vivo ou morto, tinha a mesmíssima lividez.

O que é mesmo que eu estava dizendo? Já sei. Dizia eu que somos todos havaianos. Todos, menos um. E, de fato, há um brasileiro que se constitui em uma exceção escandalosa.

O único não moreno. Eis o seu nome: — Nelsinho Motta.

Daqui a oitenta anos, sua alma subirá aos céus, num carro azul de glórias, como Elias e como o pai de Augusto dos Anjos. E, lá, os anjos e os santos perguntarão ao Nelsinho: — "Você nunca foi à praia? E nunca tomou banho de mar?".

Alçando a fronte, dirá o colega e patrício: — "Nunca tomei banho de sol, nunca tomei banho de mar". E assim é e assim será, eternamente. Nelsinho Motta é a única palidez que se conhece na vida real. Eu próprio já o chamei, certa vez, de Alfredo, da Traviata. Mudei de opinião. É muito mais Werther do que Alfredo. E tão Werther que, ao vê-lo, tenho vontade de perguntar-lhe: — "Quando é o suicídio?".

Mas disse eu que o colega era o caso único de palidez que se conhece no Brasil de nossos dias. E, novamente, tenho que fazer uma exceção. Conheci, três ou quatro noites atrás, uma outra palidez, e não menos diáfana. Imaginem vocês que fui a um sarau de grã-finos na Gávea. Sim, Gávea. Entre parênteses, direi que qualquer sarau desse tipo lembra muito um pesadelo humorístico.

Se não me entendem, explico. Humorístico porque uma reunião grã-fina se assemelha a todas as reuniões grã-finas passadas, presentes e futuras. Entro lá e penso: — "Vai acontecer tudo outra vez". E, de fato, são os mesmos decotes, as mesmas sandálias, e os mesmos cabelos, e perfumes, e frases, e jóias etc. etc. Fecho o parêntese.

Assim que me viu, a dona da casa veio para mim, radiante. Estendeu não uma, mas as duas mãos. Perguntou: — "Como vai esse reacionário?".

Numa época em que ninguém se ruboriza, eu fiquei, e o confesso, vermelhíssimo.

Digo: — "Vai-se vivendo". E já a dona da casa (uma havaiana) me puxava: — "Vem cá, vem cá. Alguém quer te conhecer".

Demos alguns passos e encontramos a pessoa. Era uma outra grã-fina e, como a anfitriã, uma falsa bonita. Diga-se de passagem que todas as presentes eram falsamente lindas.

A dona da casa me apresenta: — "Aqui, o maior reacionário do Brasil". Digo: — "Não mereço tanto". E, então, ela se volta para a amiga: — "Aqui, Fulana". Pausa teatral e completa: — "A amante espiritual de Guevara". Sou dos que se espantam de vez em quando. Achei aquilo meio forte (bobagem minha).

Mas a amiga fixa em mim o seu olhar límpido e triste. Queria dizer simplesmente que era "amante espiritual" de Guevara: — "Com muita honra". Deliciada, a anfitriã insistia: — "Não é brincadeira. Sério, sério". E disse mais: — "Com o consentimento do marido. Quer ver? Um momentinho".

Afastou-se um minuto. A outra não tirava os olhos de mim. Houve um momento em que, para dar passagem ao garçom, chegou tanto o rosto que senti o frêmito de suas narinas. Voltava a dona da casa com o marido da amiga. (O marido era só testa. Não tinha mais nada. Só testa). A anfitriã fala: — "Diz pra ele. Sua mulher é o quê?".

A testa respondeu, em tom monotonamente informativo: — "A amante espiritual do Guevara". Silêncio.

Eu não sei se devo rir, sorrir ou ficar sério. Mas ninguém, ali, achava graça. Era um fato ou, para ser mais explícito, um adultério como outro qualquer. E, depois, saiu a dona da casa com o marido alheio. Foi aí que ela me disse: — "O senhor, que é jornalista, sabe de uma sessão que...".

Interrompe-se; e continua: — "Sou católica, mas... Sabe de uma sessão espírita, onde eu possa comunicar-me com Guevara?".

Fiz um suspense. Começo: — "Bem. De momento, não me lembro de nenhuma. Só pensando". E cada vez me convencia mais de que era uma falsa bonita. Finalmente, sem uma palavra, ela me deixou ali, e ia, ereta, a fronte alta, os olhos sem luz, misteriosa como uma sonâmbula.

Todavia, a noite não esgotara ainda o seu repertório de singularidades. Em seguida, vi a anfitriã arremessar-se (e quase o garçom a atropela). Dizia: — "Padre Fulano! Padre Fulano!".

Espiei a figura que acabava de chegar. Falei no Nelsinho Motta. E o padre era outro pálido e, quero mesmo crer, mais pálido do que o Nelsinho. Nunca pisara numa praia. Talvez a palidez fosse a sua única concessão ao misticismo. Primeiro, a dona da casa; e, em seguida, outras o envolveram, quase o raptaram.

Esquecia-me de dizer: — não usava batina. Colarinho, gravata, terno, como qualquer um. "Padre moderno", notou alguém. Resistia às havaianas que o cercavam: — "Estou de passagem. Deixei o automóvel na porta. Vim aqui". Uma voz feminina pedia pelo amor de Deus: — "Fica só quinze minutos".

Ele acabou perdendo a paciência: — "Um momento, um momento!''. Como era confessor de várias, inclusive da "amante espiritual" de Guevara, tinha autoridade e se dispôs a exercê-la. Berrou: — "Silêncio!". E, assim, emudeceu todos os cochichos. Sentiu que havia acústica para sua mensagem.

Disse forte, disse alto: — "Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igreja!". Suspense. Repetiu: — "Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja!". Pessoas de outras salas vinham espiar, espavoridas. Mas o padre já se despedia, com um aceno geral: — "Até logo, até logo. O táxi está esperando. Tabela 2!". Como era tabela 2, deixaram-no partir.

Só depois eu soube que, antes dele, um outro sacerdote fora a um programa de estudantes na televisão. Começara exatamente assim: — "Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igreja". Mas não são os únicos. Outros e outros estão repetindo, com patética e rutilante humildade: — "Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja".

Pergunto se é uma palavra de ordem. E a sensação dos fiéis é de que se trata de um vil passado, de vinte séculos de lepra espiritual.
[2/7/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O negro azul

Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia.

Quero que me entendam. Disse "angústia", mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível. Paro de bater à máquina e puxo um cigarro.

Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá.

Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê.

Voltei para a redação e aquilo não me saía da cabeça. "Falta alguma coisa", repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que era. Paciência. Quero trabalhar e não posso.

De repente, há um clarão interior: — as polainas! Eu sentia, exatamente, a falta das polainas. Não em mim, que nunca as usei, mas nos outros. Olhem em torno, baixem a vista. As polainas desapareceram da cidade, do país. São antigas, espectrais, como o guarda-chuva de Paulo de Frontin. Será que alguém as usa?

Esqueço o trabalho e me concentro. Eis a pergunta que me faço: — "Qual foi o último sujeito que eu vi de polainas?".

Um deles foi o dr. Jacarandá. Outro: o cidadão Pingô. Mas o último, exatamente o último que vi de polainas foi um preto, oficial de Justiça. Sempre digo que nunca se viu, neste país, um negro de casaca. É verdade. Os nossos patrícios de cor já usaram tudo e, se quiserem, até folha de parreira, menos casaca.

Estou para fazer uma tragédia racial, cujo título é o seguinte: — O negro azul. Morava o "negro azul" num pardieiro, em Del Castilho. De manhã, entrava ele na fila do banheiro coletivo. Até que, um dia, às dez horas da manhã, todos o viram sair de casaca. Casaca e cartola. Não tomou um táxi, um ônibus, um bonde ou taioba. Levou a casaca a passear pelas ruas e a pé. O desfile começou às dez da manhã e só parou à meia-noite. Exatamente à meia-noite, atirou-se debaixo de um ônibus. Ninguém soube jamais que a casaca era o seu protesto contra o Brasil.

Volto ao oficial de Justiça. Fisicamente enorme, era um negro plástico, lustroso, ornamental. E tinha uma voz de Paul Robeson, as ventas de Paul Robeson, os beiços de Paul Robeson. Vou eu passando pela rua Senador Furtado (ou seria Senador Pompeu).

E, súbito, vejo adiante um ajuntamento. O brasileiro se incorpora a qualquer grupo de mais de cinco pessoas. De mais a mais, temos a fascinação do escândalo. E eu, da esquina, já ouvia o berreiro tremendo, gritos de mulher etc. etc.

Tantos anos depois, ainda vejo o Paul Robeson em todo o esplendor de sua figura e de suas polainas. Vocalmente, tinha a potência de um barítono, ou baixo cantante, desses que exigem a acústica de uma catedral, a cúpula de uma catedral. Enchia a rua, o bairro, com o seu clamor: — "Eu tenho razão! Eu tenho razão!". Lá estavam elas, as polainas.

O homem andava de um lado para outro. Bem vi que as polainas o desagravavam da frustração da casaca.

Soltava a voz: — "Eu tenho razão! Eu tenho razão!".

Em três ou quatro minutos, vim a conhecer a história toda. Aquilo era um despejo. O crioulão de polainas estava ali como oficial de Justiça. Outros crioulões, e um branco sarará, iam e vinham, trazendo os móveis e empilhando tudo na calçada.

Quanto à mulher dos gritos (e continuava gritando), era viúva e mãe de cinco ou seis filhos. Há uns três meses o marido morrera tuberculoso e deixara, para a mulher, além das dívidas, a própria doença.

Cabe então a pergunta: — e de onde vinha a magnífica, a estupenda, a ululante razão do oficial? Ei-la: — a viúva não pagava o aluguel há um ano. E, portanto, ele podia abrir sua razão de par em par, como uma manchete. Outrora, o brasileiro reagia muito contra a violência, mesmo justa, mesmo legal. Sempre um ou outro gritava: — "Não pode, não pode!". Mas ninguém insinuou um vago pio em favor da viúva e dos filhos. De vez em quando vinha a tosse afogar a sua fúria. Ela se torcia e destorcia em náuseas medonhas. Houve um momento em que, depois do acesso, cuspiu na palma da própria mão e espiou o sangue. A vista do vermelho distraiu-a do despejo.

Arquejou, sem desespero, apenas informativa: — "O falecido me chama". Não chorou mais, ou por outra: — continuou chorando, mas sem gritar. E as polainas eram mais insolentes do que esporas.

Eis o que eu queria dizer: — vem daí, desse pequeno e ilustrativo episódio, o meu horror às pessoas que têm razão e a proclamam com o impudor da manchete. Dirá o leitor que qualquer um pode ter razão. Nem todos, nem todos. Eu diria mesmo que só algumas almas seletíssimas, alguns espíritos de rara delicadeza podem tê-la. Lembro-me de outro episódio também perfeitamente cabível. Foi uma briga de mulheres.

Uma senhora insultou outra. Por que, não me lembro. E o marido da ofendida foi tomar satisfações. A culpada estava esperando criança. Mas o Fulano tinha razão; e porque a tinha derrubou-a a bofetões e mais: — pisou-lhe a barriga, chutou-lhe a gravidez. Correto. Tinha razão.

Nas almas menos nobres, a razão pode subir à cabeça em forma de vil embriaguês. E os piores sentimentos, e as crueldades mais secretas e inconfessas, e todos os demônios do orgulho são liberados. Tudo que sei da vida ensina que a razão pode perder a nossa alma e repito: — pode destruí-la.

Fiz a volta imensa para chegar à juventude. Vocês me entendem. Falo dessa figura impessoal, sem cara, sem nome, que é "o jovem". Eis o seu drama: — mesmo sem razão, ele a tem. É uma razão que não lhe custa um esforço, um mérito, um sacrifício, uma conquista. Tem razão porque é jovem. Não sei se vocês leram um recente artigo do dr. Alceu. Vale a pena. (Claro que não estou falando de razão em cada caso concreto e específico. Refiro o problema vital que se está criando com uma desfaçatez inédita). Todo o artigo do dr. Alceu é muito curioso. Mas em dado momento descobre o notável pensador a "razão da idade". É fantástico.

A razão da idade muda todas as relações e todos os valores. Nem importa o que faça "o jovem". Incendeia a França. Tem dezessete, dezoito, 22 anos. E basta. Arranca os paralelepípedos e vira os carros. Pode fazê-lo porque tem no bolso a triunfal certidão de idade. Se nasceu no ano X, tudo lhe é permitido. Estão aí o jornal, o rádio, a TV para justificá-lo, para absolvê-lo. Há uma "Moral da Idade", assim como há uma "Igreja da Idade".

Conheço sacerdotes que só confessam "o jovem". Todos põem na mão do jovem, como uma bomba, a razão absoluta. O mundo deixou de ser dos "mais velhos".

Mas pergunto: — que fará "o jovem" com sua onipotência? A razão da idade pode destruir o mundo.

[1/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Velho mito

Imaginem vocês a Irlanda de 1919 ou 20. Havia lá, numa cidadezinha obscura, um prefeito igualmente obscuro.

Não se notava entre ele e os demais nenhuma forte e crespa dessemelhança. Absolutamente. Não era pior nem melhor do que milhões de irlandeses, vivos ou mortos. E tinha essa mediocridade de virtudes e defeitos que exigimos do bom marido e do exemplar funcionário.

Até que, um dia, esse burocrata apagado resolve fazer um protesto contra a Inglaterra. Hoje, todo mundo protesta. Há sujeitos que acordam indignados e não sabem contra quem, nem por quê. Naquele tempo, não.

Depois de uma guerra, o mundo estava exausto do próprio ódio. Havia um tédio da violência e da paixão. Mas o homem resolveu desafiar todo o império inglês. Anunciou a greve de fome e a começou.

Claro que, em nosso tempo, as técnicas de comunicação têm uma eficácia e uma instantaneidade prodigiosas. Faz-se um gênio ou idiota, um santo ou herói em quinze minutos de fulminante promoção.

Em 1920 ou 21, porém, uma notícia ainda levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina. Assim mesmo, o mundo soube, já no dia seguinte, que alguém estava morrendo pela liberdade. (Não existe, hoje, palavra mais vã, mais sem caráter, e, direi mesmo, mais pulha do que "liberdade". Como a corromperam em todos os idiomas!) Sim, o martírio do vago funcionário irlandês teve uma platéia mundial.

Dia após dia, o prefeito ia morrendo, ia agonizando nas manchetes. A Inglaterra fez o diabo para salvá-lo. Mas aquele santo nacional não se corrompeu. A morte amadurecia no seu coração atormentado e puro. Mas falei em "platéia mundial" e preciso acrescentar que eu, garoto de seis anos, de pé no chão, fui um dos espectadores. Na minha rua, em Aldeia Campista, os moradores apostavam na sua vida e na sua morte.

E quando, finalmente, ele morreu, e morreu de fome e de sede, houve uma misteriosa irritação. Quero crer que, em Aldeia Campista, o patriota irlandês só foi amado por mim. E amado porque eu era um menino, um pobre ser ainda incorrupto.

Mais tarde, compreenderia que o santo, ou herói, ou mártir, ofende e humilha os demais. Na própria Irlanda, agonizou só e morreu só. A solidão do seu gesto, até hoje, ainda me fere de espanto. Foi talvez o último herói do século. Não sei se exatamente o último. Vá lá — "o último".

Em nosso tempo, só conhecemos o heroísmo coletivo. Na guerra, não se viu uma Joana D'Arc. A heroína era Varsóvia, Roterdã, Londres ou Hiroshima. E, depois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício, uma assembléia, uma unanimidade. Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão.

Um camelô de caneta-tinteiro é mais ouvido do que os profetas antigos. E, quando está só, o homem começa a babar de pusilanimidade. As maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de onipotência.

Hoje, o prefeito irlandês seria uma rigorosa impossibilidade. Não teria sentido a sua feroz solidão. Sentiríamos falta, no episódio, da assembléia, do comício, da massa. E daí porque há, em nosso tempo, o ódio ao herói. Não existe figura mais indesejável, antiga, inválida, espectral.

Ainda há pouco, viu-se a França levantar-se contra De Gaulle. Lembro-me de uma fotografia das greves francesas. É uma rua de paralelepípedos arrancados. É como se até os paralelepípedos estivessem contra o herói. Disse eu, linhas atrás, que o prefeito irlandês, em sua inútil greve de fome, fora o último caso de heroísmo solitário. Faço a correção: — existe também De Gaulle.

Outro dia, uma estagiária do Jornal do Brasil veio perguntar-me: — "Qual a sua opinião sobre De Gaulle?". Eu poderia ter dito: — "De Gaulle é o passado". E estaria certo. O herói é o passado.

Mas como ia dizendo: — o país se levantou contra o mito. Estudantes levavam cartazes assim: — "De Gaulle assassino", "Fora De Gaulle" etc. etc. E o prodigioso é que a França foi a pátria dos heróis. Mas não se iludam. A própria França é o passado.

Diante de nós está a anti-França. No momento em que o país se matava em greves, De Gaulle fez um pronunciamento. Disse: — "Eu sou a Revolução". Mas vejam a obstinação com que ele se diz "eu". Usa uma linguagem morta, até o último vestígio. Ao se apresentar como o último "eu" do século, De Gaulle pôs entre ele e o seu povo toda uma distância irreversível.

Dirá alguém que os paralelepípedos foram repostos, que não há mais carros virados e que apagaram o incêndio da Bolsa. Por outro lado, os operários que seqüestraram os gerentes já os devolveram. Tudo isso é certo. Mas nada impede que De Gaulle seja o puro e irremediável passado. O herói está só e cada vez mais só. Sei que o resultado das eleições parece uma ressurreição. De Gaulle ganha por toda a parte. Mas é preciso ver o que há de aparente, de ilusório, de efêmero em tal vitória. São os cem dias napoleônicos.

O que se passou entre ele e o seu povo é uma incompatibilidade irremediável, fatal.

A França das assembléias, das maiorias, das unanimidades, não aceita mais o herói solitário e formidável.

De Gaulle não sabe que está morto, e faz discursos.

[27/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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domingo, 23 de outubro de 2011

O irmão adquirido

Tempos atrás, o Walter Clark telefonou-me. Foi sumário: — "Preciso de ti". Ainda perguntei: — "Qual é o drama?". Fez suspense, fez mistério: — "Só pessoalmente". E já se despedia: — "Te espero. Vem já".

Meia hora depois, entro no seu gabinete, ali, na TV Globo. Tenho que esperar, porque ele despachava alguém. E, então, para fazer hora, vou espiar os quadros do meu amigo.

Walter Clark gosta de pintura e, pior, entende de pintura. Ao passo que eu, como o Otto Lara Resende, sou um idiota plástico. Certa vez, aconteceu uma, que considero antológica. Estávamos, eu e o Otto, na casa do Hélio Pellegrino. E paramos, um momento, diante de um Volpi. Veio o Hélio e jurou que o Volpi era "melhor que Portinari". Uma abjeta pusilanimidade crítica tapou-nos a boca. Mas, assim que o anfitrião virou as costas; ciciei para o Otto e o Otto ciciou para mim: — "Abominável Volpi! Horrendo Volpi!". Essa sinceridade cochichada lavou-nos a alma.

E, justamente, o escritório do Walter Clark está cheio de belas cópias de Cézanne, Gauguin, Degas, Monet etc. etc.

Aqui há um jóquei, ali uma bailarina, acolá uma mulata e, mais adiante, um clown. Falta-me entusiasmo visual. Para mim e o Otto, a boa pintura é como um texto chinês de cabeça para baixo. Súbito, ouço o Walter balbuciar, de puro assombro: — "Você veio da Hungria só para me tomar dinheiro?". Era verdade. O sujeito que lá estava viera, sim, de Budapeste, pedir-lhe setenta contos emprestados.

Walter quis um abatimento para cinqüenta. O patriota húngaro não transigiu: — "Setenta". E daí não saía. Walter subiu para sessenta. E ninguém percebeu que os papéis já se invertiam. O pedinte agora era o meu amigo. Sim, era ele que crispava as mãos numa súplica abjeta. O outro estava quase ofendido e quase enojado.

Houve um momento em que, nauseado, ergueu-se: — "Ou setenta ou nada". Então, batido, o Walter encheu o cheque dos setenta. O sujeito olha o papel, verifica a quantia, a data e a assinatura. E vai-se embora sem agradecer e sem se despedir.

Só então o Walter me chama. E confesso: — pasmei para o esplendor dos seus suspensórios. Não sei se me entendem. O meu amigo usa, hoje, os suspensórios dos gângsteres de Chicago, na Grande Depressão. São, por assim dizer, suspensórios paisagísticos, com figurinhas de flores, bezerros, vaquinhas, bodes, arvoredos, corações flechados.

Essas tatuagens encantadas fascinam, não só os visitantes da TV Globo, como os funcionários da casa. Eu diria que a única vaidade física do Walter Clark está nos suspensórios.

Começamos a conversar e ele foi direto ao assunto: — "Bola um programa de televisão. Coisa interessante. Pra você fazer com o Otto e o Hélio".

Seria um programa sem limite de tempo. E, todas as noites, ou mais precisamente, no fim da noite, eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino passaríamos em revista, e com a maior imodéstia, os grandes problemas do Brasil e do mundo.

Prometi ao Walter: — "Vou pensar".

Fui para casa e não me saíam da cabeça as vaquinhas desenhadas nos suspensórios. Quebrava a cabeça e não me ocorria uma idéia, um título, nada. Até que, de repente, fez-se luz. Imaginei um programa que se chamasse assim: — Os falsos canalhas. Repeti para mim mesmo: — Os falsos canalhas. Uma das vantagens do título era fazer mistério, fazer suspense. De resto, "canalha" era uma das palavras mais fortes, mais densas, mais patéticas da língua.

Quando liguei para o Walter, propondo o título, ele fez espanto: "Por que falsos canalhas?". Tratei de explicar. Todos os países e todos os idiomas têm uma seletíssima elite de "canalhas aparentes". Darei um exemplo. Imaginem um político, ou um poeta, ou um artista, ou um ministro, ou um funcionário. Parecem esculpidos em ignomínia.

Lembro-me de um rapaz que conheci, uma flor de rapaz. E todos o apontavam e cochichavam: — "Pulha da pior espécie!". Mas ninguém sabia de um gesto seu menos correto, de uma ação menos digna, de um sentimento menos nobre. Até que, uma tarde, eu próprio o vi passar, de braço, com a esposa linda.

Estava aí o mistério de sua reputação: — a mulher bonita.

E, de fato, não custa chamar de "escroque", de "gatuno", de "crápula", aquele que tem, em casa, uma Ava Gardner. O fato é que os "falsos canalhas" existem, por toda a parte. E o triste é quando o sujeito morre sem reabilitação.

Todos pensam, inclusive a própria família, que o morto foi realmente um pulha. Há sempre alguém, no dia de Finados, com vontade de lhe cuspir na cova.

Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu irmão Mário Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exatamente a pessoa: — Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista etc. etc.

Eu já o conhecia de nome e de vista. Vira-o, uma madrugada, nos Três Patetas, tomando café. Não sei se café ou sei lá. Não, não: Estava em pé, nos Três Patetas, junto ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apresentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa, e não um artista. Um cachimbo.

Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava: — que sujeito indesejável, irrespirável e cínico.

Eis a palavra: — cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo abjeto e total. E não entendia por que Mário se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: — "O Cony! O Cony!". Em suma: — com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: — era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na primeira pausa, aproveitei para me despedir.

Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade.

Mas sentia uma angústia intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.

E quantas vezes, depois disso, Mário me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mário ia ser, e para sempre, amigo do canalha.

Até que, uma madrugada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: — Mário acabara de morrer. Corri para vê-lo.

Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia seguinte, uma chopada com o Hélio  Pellegrino. Debrucei-me sobre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.

Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mário, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: — "Como foi isso? Como foi isso?". O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando por entre mesas e cadeiras — tão órfão de Mário.

Foi aí e só então que entendi a amizade que os unia.

O irreal, o absurdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afundou o rosto nas duas mãos, chorou alto, chorou forte.

E, naquele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre.

Era, sim, o falso canalha.

[25/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Contra a violência

Apanho o jornal e vejo o telegrama: — Hollywood declara guerra à violência. São atores, atrizes, diretores, roteiristas.

É uma unanimidade, mais uma unanimidade. Assim somos nós, todos nós.

O nosso gesto, o nosso ódio e o nosso grito — já não precisam nascer na solidão. O homem quer ser irresponsável.

Na hora do protesto, da ira, todos providenciam uma urgente unanimidade. Ninguém está só. Matamos e morremos em grupos, em hordas, em maiorias, em assembléias, em comícios.

No manifesto de Hollywood, o que existe, precisamente, é o pânico da responsabilidade nítida, indivisível, total. Não há um nome, uma cara. Cada qual se esconde debaixo da unanimidade como de uma cama. Todos são contra a violência, a crueldade, o sadismo, o terror. Vejam e pasmem: — daqui, para o futuro, Hollywood só fará filmes com bons sentimentos.

Não tenho nada a objetar. É uma reação linda, embora tardia. Mata-se demais no cinema, morre-se demais, trai-se demais, odeia-se demais. E há, na tela, um erotismo difuso, volatilizado, atmosférico. A platéia respira voluptuosidade. E tudo nos é transmitido em forma de perversão.

Portanto, parece muito cabível e sábia a correção ética que se propõe.

Até aqui, Hollywood viveu, inversamente, dos maus sentimentos. Com que técnica e com que arte, com que fotografia e com que direção, soube ela tecer as mais lindas fantasias sobre as nossas abjeções!

Para não ir mais longe, aí está Belle de jour (1), Quem o veja percebe esta verdade absoluta: — o "grande diretor" não pode ter essa mediocridade de virtudes e defeitos que se exige de um marido burguês. Para pôr de pé um personagem sádico, cruel, voluptuoso, ele terá de ser de um sadismo, ou de uma voluptuosidade, ou de uma crueldade profunda. E assim o intérprete, e assim o fotógrafo, e assim o autor dos diálogos. Um filme como Belle de jour exige toda uma equipe de possessos. Aquela esposa alucinatória é o próprio Buñuel. Sim, ela é ele.

Diria eu que a humana sordidez tem sido o ganha-pão dos que, hoje, tentam uma árdua, frenética e antieconômica purificação. Se não existisse no homem o lado podre, se não existisse no fundo de cada qual a lama inconfessa e encantada, também não existiria a indústria cinematográfica.

Ah, o cinema nos compromete desde meninos! Bem me lembro dos mitos que Hollywood teceu para as crianças. Um deles foi Tom Mix. Outro, Rolleaux; outro ainda, William S. Hart. Pois Tom Mix subia no cavalo e dava tiros em todas as direções. Matava, e como matava! Era assassino por todas as crianças da platéia.

E, de repente, a unanimidade resolve acabar com o terror. Uma das primeiras vítimas de tal providência é um velho conhecido nosso: — o vampiro. Aí está uma figura fundamental do cinema. Tenho um tio que passa anos sem ver um filme. Diz ele que o cinema, como o jornal, mente muito. Mas não perde um filme de vampiro.

Certa vez, soube que estava levando um em Vigário Geral. Atravessou a cidade e foi lá. Por que será que esse tio, e outros tios, e outras tias — têm um tal delírio pelos vampiros? Deve ser uma fascinação mundial. A indústria cinematográfica não seria o que é, o império que é, se não tivesse, no seu passado, presente e futuro, as bilheterias do vampiro.

Abro um breve parêntese. Ainda ontem estive com o Palhares, o canalha. Sim, "o que não respeita nem as cunhadas". E o Palhares me dizia, com um agudo sentimento de frustração: — "Nunca houve um vampiro no Brasil". O canalha chama isso de "lapso", que se deve atribuir ao subdesenvolvimento. E, de fato, o sujeito aqui nasce com os pendores mais imprevisíveis.

Conheci um que era um "barbeiro de necrotério" nato. Teve as melhores ofertas. Certa vez, um vizinho ofereceu-lhe sociedade numa barbearia. Ponto ótimo, aluguel muito em conta. Repeliu a hipótese com a mais intransigente repugnância. Só queria escanhoar cadáver. Nada o impediria de exercer esta função e de cumprir este destino. Pois bem.

O Brasil teve bastante imaginação para dar um barbeiro de necrotério. E nunca pôs no mundo um drácula. Fecho o parêntese.

Voltemos a Hollywood. O que se propõe, no manifesto citado, é da mais pura e deslavada alienação. Nada mais idiota do que fazer filmes sem violência para uma platéia de violentos.

Todas as violências nos fascinam. Sempre foi assim, e agora mais do que violência. O cinema trabalha para o mundo que matou Bob Kennedy, chorou Bob Kennedy e, 48 horas depois, esqueceu Bob Kennedy. O esquecimento veio antes de que murchassem as flores do seu caixão.

O sujeito entra num cinema e leva a sua tensão exterminadora. Ele odeia e quer ver seu ódio na tela. De vez em quando, a Manchete publica um cadáver do Vietnã. Não se sabe se o morto é de lá ou de cá. Pode ser um herói e pode ser um bandido. O cadáver morreu odiando e continua odiando. Lá está seu gesto retorcido de ódio.

E assim a fúria do homem continua para além da vida e para além da morte.

E que pobre utopia um cinema sem violência, sadismo, terror e medo! Seria a morte da própria indústria cinematográfica. Hollywood desabaria como uma cúpula de palitos.

Uma destas noites, passei num sarau de grã-finos. E uma bela senhora dizia, com um maravilhoso impudor: — "Eu era a própria belle de jour. Fiz psicanálise e não adiantou. Continuei belle de jour do mesmo jeito. Até que fui ver o filme e houve o milagre. A heroína fez por mim, sonhou comigo. Saí do cinema purificada. Era uma menina tão pura, tão sem sexo. Nem alma tinha".

Assim, o ser humano vai para o cinema lavar as suas abjeções.

Já estou acabando e queria apenas acrescentar: — Hollywood devia fazer precisamente o contrário do que exige a sua tola unanimidade. Mais do que nunca, deve fabricar os filmes hediondos. O homem precisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver a face da nossa crueldade. Ou o cinema nos ofende e nos humilha ou, então, deve morrer.

E, sempre que o cinema apresenta a sordidez em dimensão gigantesca, cada qual sente o eterno, o sagrado, que existem no mais vil dos seres.

[24/6/1968]

(1) Belle de Jour - lançado no Brasil como A bela da tarde - é uma co-produção franco-italiana, não sendo portanto um filme hollywoodiano. [Nota Guinefort]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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