Imaginem vocês a Irlanda de 1919 ou 20. Havia lá, numa cidadezinha obscura, um prefeito igualmente obscuro.
Não se notava entre ele e os demais nenhuma forte e crespa dessemelhança. Absolutamente. Não era pior nem melhor do que milhões de irlandeses, vivos ou mortos. E tinha essa mediocridade de virtudes e defeitos que exigimos do bom marido e do exemplar funcionário.
Até que, um dia, esse burocrata apagado resolve fazer um protesto contra a Inglaterra. Hoje, todo mundo protesta. Há sujeitos que acordam indignados e não sabem contra quem, nem por quê. Naquele tempo, não.
Depois de uma guerra, o mundo estava exausto do próprio ódio. Havia um tédio da violência e da paixão. Mas o homem resolveu desafiar todo o império inglês. Anunciou a greve de fome e a começou.
Claro que, em nosso tempo, as técnicas de comunicação têm uma eficácia e uma instantaneidade prodigiosas. Faz-se um gênio ou idiota, um santo ou herói em quinze minutos de fulminante promoção.
Em 1920 ou 21, porém, uma notícia ainda levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina. Assim mesmo, o mundo soube, já no dia seguinte, que alguém estava morrendo pela liberdade. (Não existe, hoje, palavra mais vã, mais sem caráter, e, direi mesmo, mais pulha do que "liberdade". Como a corromperam em todos os idiomas!) Sim, o martírio do vago funcionário irlandês teve uma platéia mundial.
Dia após dia, o prefeito ia morrendo, ia agonizando nas manchetes. A Inglaterra fez o diabo para salvá-lo. Mas aquele santo nacional não se corrompeu. A morte amadurecia no seu coração atormentado e puro. Mas falei em "platéia mundial" e preciso acrescentar que eu, garoto de seis anos, de pé no chão, fui um dos espectadores. Na minha rua, em Aldeia Campista, os moradores apostavam na sua vida e na sua morte.
E quando, finalmente, ele morreu, e morreu de fome e de sede, houve uma misteriosa irritação. Quero crer que, em Aldeia Campista, o patriota irlandês só foi amado por mim. E amado porque eu era um menino, um pobre ser ainda incorrupto.
Mais tarde, compreenderia que o santo, ou herói, ou mártir, ofende e humilha os demais. Na própria Irlanda, agonizou só e morreu só. A solidão do seu gesto, até hoje, ainda me fere de espanto. Foi talvez o último herói do século. Não sei se exatamente o último. Vá lá — "o último".
Em nosso tempo, só conhecemos o heroísmo coletivo. Na guerra, não se viu uma Joana D'Arc. A heroína era Varsóvia, Roterdã, Londres ou Hiroshima. E, depois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício, uma assembléia, uma unanimidade. Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão.
Um camelô de caneta-tinteiro é mais ouvido do que os profetas antigos. E, quando está só, o homem começa a babar de pusilanimidade. As maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de onipotência.
Hoje, o prefeito irlandês seria uma rigorosa impossibilidade. Não teria sentido a sua feroz solidão. Sentiríamos falta, no episódio, da assembléia, do comício, da massa. E daí porque há, em nosso tempo, o ódio ao herói. Não existe figura mais indesejável, antiga, inválida, espectral.
Ainda há pouco, viu-se a França levantar-se contra De Gaulle. Lembro-me de uma fotografia das greves francesas. É uma rua de paralelepípedos arrancados. É como se até os paralelepípedos estivessem contra o herói. Disse eu, linhas atrás, que o prefeito irlandês, em sua inútil greve de fome, fora o último caso de heroísmo solitário. Faço a correção: — existe também De Gaulle.
Outro dia, uma estagiária do Jornal do Brasil veio perguntar-me: — "Qual a sua opinião sobre De Gaulle?". Eu poderia ter dito: — "De Gaulle é o passado". E estaria certo. O herói é o passado.
Mas como ia dizendo: — o país se levantou contra o mito. Estudantes levavam cartazes assim: — "De Gaulle assassino", "Fora De Gaulle" etc. etc. E o prodigioso é que a França foi a pátria dos heróis. Mas não se iludam. A própria França é o passado.
Diante de nós está a anti-França. No momento em que o país se matava em greves, De Gaulle fez um pronunciamento. Disse: — "Eu sou a Revolução". Mas vejam a obstinação com que ele se diz "eu". Usa uma linguagem morta, até o último vestígio. Ao se apresentar como o último "eu" do século, De Gaulle pôs entre ele e o seu povo toda uma distância irreversível.
Dirá alguém que os paralelepípedos foram repostos, que não há mais carros virados e que apagaram o incêndio da Bolsa. Por outro lado, os operários que seqüestraram os gerentes já os devolveram. Tudo isso é certo. Mas nada impede que De Gaulle seja o puro e irremediável passado. O herói está só e cada vez mais só. Sei que o resultado das eleições parece uma ressurreição. De Gaulle ganha por toda a parte. Mas é preciso ver o que há de aparente, de ilusório, de efêmero em tal vitória. São os cem dias napoleônicos.
O que se passou entre ele e o seu povo é uma incompatibilidade irremediável, fatal.
A França das assembléias, das maiorias, das unanimidades, não aceita mais o herói solitário e formidável.
De Gaulle não sabe que está morto, e faz discursos.
[27/6/1968]
______________________________________________________________________A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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