Este
relato é verdadeiro e cercado por muitas circunstâncias que podem
induzir qualquer homem sensato a acreditar nele. Foi enviado por um
cavalheiro, um juiz da paz em Maidstone, no Kent, e pessoa de muita
inteligência, a um amigo seu em Londres, tal como está aqui redigido.
O texto é certificado por uma
dama parente do citado juiz da paz e que é pessoa de mente sóbria e de
grande compreensão, a qual vive em Canterbury, a umas poucas portas da
casa em que mora a senhora Bargrave, nomeada no relato. O juiz da paz
acredita que sua parente é de espírito tão atilado que nunca se deixaria
enganar por qualquer fraude. Ela própria garantiu-lhe positivamente que
a questão toda tal como aqui relatada e redigida constitui a verdade, e
a mesma coisa que ela ouviu aproximadamente nas mesmas palavras da boca
da mesma senhora Bargrave, a qual, ela sabe, não tinha razão para
inventar e divulgar tal história, nem desejo de forjar e contar uma
mentira, sendo uma mulher muito honesta e virtuosa, e toda a sua vida um
exemplo de piedade.
O proveito que podemos tirar
desse documento é ter em mente que há uma vida por vir depois desta e um
Deus justo que retribuirá à cada um segundo os atos feitos com este
corpo atual; devemos, portanto, refletir no que tem sido a nossa vida;
não esquecer de que o tempo de que dispomos é curto e incerto e que, se
quisermos escapar à punição reservada aos ímpios e alcançar a recompensa
dos que procedem bem, que é a vida eterna, temos de, no tempo que nos
resta, voltar a Deus por um rápido arrependimento, deixando de co¬meter o
mal e aprendendo a fazer o bem. partindo em busca de Deus, se com
felicidade Ele possa ser de nós encontrado, e de levar tais vidas no
futuro que Lhe possam ser agradáveis.
Isto que vou contar é tão raro
em todas as suas circunstâncias, e fundado em tão boa autoridade, que
toda a minha leitura e as minhas conversas nada me forneceram de
semelhante. E coisa apta a satisfazer o investigador mais destro e
exigente.
A senhora Bargrave é a pessoa a
quem a senhora Veal apareceu depois de falecer. Ela é minha amiga
íntima, e posso atestar-lhe a probidade, por estes últimos quinze ou
dezesseis anos, por meu próprio conhecimento. E posso confirmar a
reputação de honestidade de que gozou desde sua mocidade até o momento
em que a conheci, o que é necessário; porque, em função do relato que
fez da aparição da senhora Veal, ela é objeto de calúnia por parte de
algumas pessoas que são amigas do irmão da mencionada senhora Veal, às
quais o relato da aparição parece uma ofensa, e fazem o que podem para
acabar com a reputação da senhora Bargrave e para ridicularizar a
história que conta.
Mas, dadas as circunstâncias do
que se passou e a boa disposição da senhora Bargrave, não obstante os
maus-tratos inéditos a que foi sujeita por um marido muito cruel, não há
em sua fisionomia o menor sinal de desalento. Nem eu a ouvi pronunciar
uma expressão de desespero ou de queixa, nem mesmo quando submetida às
barbaridades do marido, de que eu fui testemunha, assim como várias
outras pessoas cuja reputação não se pode pôr em dúvida.
É preciso que vocês saibam que a
senhora Veal era uma moça solteira e nobre de cerca de trinta anos de
idade e, por alguns anos, vinha sofrendo de ataques que nela se
manifestavam porque ela interrompia o que estava dizendo com alguma
extravagância abrupta. Ela era sustentada pelo único irmão que tinha, e
tomava conta da casa deste último em Dover. Era uma mulher muito
religiosa, e o irmão um homem sóbrio, ao que tudo demonstrava, mas agora
ele faz o que pode para reduzir a pedaços esta história.
A senhora Veal era intimamente
ligada à senhora Bargrave desde a infância. Naquela época, as condições
em que vivia a senhora Veal eram ruins. O pai não tomava cuidado das
crianças como devia, o que as expunha a privações, e também a senhora
Bargrave vivia naqueles tempos com um pai cruel, embora não lhe
faltassem nem comida nem roupa, coisas que fal¬tavam à senhora Veal.
Estava, portanto, dentro das possibilidades da senhora Bargrave ajudar a
senhora Veal de várias maneiras, o que esta última muito apreciava.
Muitas vezes, ela dizia:
- Senhora Bargrave, a senhora
não é apenas a melhor, mas é a única amiga que tenho no mundo e nenhuma
circunstância na vida dissolverá jamais tal amizade.
Elas lamentavam juntas a fortuna
adversa e liam o livro de Drelincourt sobre a morte e outros livros
bons. E assim, como duas amigas cristãs, elas se con¬fortavam
reciprocamente.
Algum tempo depois, os amigos do
senhor Veal arranjaram-lhe um lugar na Alfândega de Dover, o que fez
com que a senhora Veal, a pouco e pouco, se desprendesse da intimidade
com a senhora Bargrave, embora nunca houvesse entre as duas, alguma
coisa como uma briga. Mas, gradualmente, surgiu entre elas uma
indiferença, até que, por fim, a senhora Bargrave passara dois anos e
meio sem ver a amiga, embora por cerca de um ano a senhora Bargrave
tivesse estado ausente de Dover e houvesse passado os últimos seis meses
em Canterbury morando em casa própria.
Em tal casa, em 8 de setembro
último, 1705, ela estava sentada sozinha na manhã, meditando sobre sua
vida desafortunada e buscando argumentos que a inclinassem à resignação
devida à Providência, embora sua situação parecesse difícil. "E", pensou
ela, "eu fui ajudada até agora e não duvido de que ainda o serei e
estou certa de que minhas aflições terminarão quando for mais
apropriado" e, depois de tais pensamentos, tomou de sua obra de costura,
coisa que ela mal acabara de fazer quando ouviu bater à porta.
Levantou-se para ver quem era e deu com a senhora Veal, que estava de
roupa de montaria. Naquele exato momento, o relógio bateu doze
badaladas.
-Madame - disse a senhora Bargrave -, estou surpreendida em vê-la. Por tanto tempo estivemos separadas!
Mas disse-lhe que ficava feliz
em voltar a vê-la, e fez menção de dela se aproximar, com o que
concordou a senhora Veal, até que os lábios das duas quase se tocaram.
E então a senhora Veal passou a mão pelos olhos e disse:
-Não me sinto muito bem.
Disse à senhora Bargrave que partiria sozinha numa viagem e tivera um grande desejo de visitá-la antes de seguir.
-Mas - ponderou a senhora
Bargrave - como é que a senhora parte em viagem sozinha? Isso
espanta-me, porque sei que seu irmão lhe é tão aficionado.
-Ora - disse a senhora Veal -,
enganei meu irmão e vim sozinha, tal era o meu desejo de ver a senhora,
antes de partir em viagem.
Assim a senhora Bargrave seguiu
com ela para outro aposento e a senhora Veal sentou-se numa cadeira de
braços, exatamente onde a senhora Bargrave estivera sentada quando
ouvira a senhora Veal bater à porta.
Então disse a senhora Veal:
-Minha querida amiga, eu vim
renovar nossa amizade antiga, e peço seu perdão por me ter apartado. E,
se puder perdoar-me, a senhora é uma das melhores mulheres.
-Ora - disse a senhora Bargrave -, não mencio¬ne uma tal coisa. Isso nunca me preocupou. Posso facilmente perdoá-la.
-Que pensou a senhora de mim? - perguntou a senhora Veal.
-Pensei - respondeu a senhora
Bargrave - que a senhora era como o resto do mundo e que a prosperidade a
tinha feito esquecer a nossa ligação.
Então a senhora Veal lembrou à
senhora Bargrave os muitos serviços amistosos que esta lhe tinha
prestado no passado e muito das conversas que, uma com a outra, tinham
mantido no tempo de adversidade; lembrou-lhe os livros que liam e, em
particular, o conforto que recebiam da meditação do ensaio de
Drelincourt sobre a morte, que ela classificou como o melhor dos livros
sobre o assunto. Também mencionou os livros que o doutor Sherlock e dois
autores holandeses traduzidos escreveram sobre a morte e vários outros.
Mas disse que Drelincourt possuía a visão mais clara da morte e de
nossa futura condição, entre todos os que tinham tratado do assunto.
Então pergun¬tou à senhora Bargrave se ela dispunha de um exemplar da
obra de Drelincourt.
-Sim - disse a senhora Bargrave.
-Traga-o - pediu a senhora Veal.
E então a senhora Bargrave subiu ao andar de cima e trouxe o livro.
-Querida senhora Bargrave -
afirmou a senhora Veal se os olhos da fé estivessem abertos como os
olhos do corpo, veríamos numerosos anjos a nosso redor, para
guardar-nos. As idéias que temos do céu não são nada perto do que é,
como diz Drelincourt. Portanto, suporte com paciência seus sofrimentos e
acredite que o Todo-Poderoso a tem em particular consideração e que as
tribulações que a afligem são marcas do favor de Deus. E quando essas
tribulações tiverem alcançado o objetivo pelo qual foram manda¬das elas
lhe serão retiradas. E acredite-me, minha querida amiga, acredite no que
lhe digo: um minuto de futura felicidade a recompensará infinitamente
de todos os seus sofrimentos; pois nunca poderei acreditar - (nesse
ponto, a senhora Veal bateu com a mão no joelho com grande veemência, a
mesma veemência que marcou tudo o que dizia) - que Deus suportará que a
senhora passe todos os seus dias em aflição; mas esteja certa de que
seus males a deixarão, ou a senhora os deixará dentro em breve.
Falou de uma maneira tão celestial e patética que a senhora Bargrave chorou várias vezes, tanto aquilo tudo a impressionou.
Então
a senhora Veal mencionou o livro do doutor Hoerneck sobre o ascetismo,
no fim do qual ele faz um relato da vida dos cristãos primitivos. Ela
recomendou tais modelos para nossa imitação, e disse que as conversas
deles não eram como as de hoje em dia.
-Pois agora — disse ela — só há
conversas vãs e superficiais, muito diferentes das que mantinham. Eles
falavam para edificação recíproca e para que aumen¬tasse mutuamente a
fé; assim não eram como nós somos, e nós não somos como eram. Mas –
acrescentou - poderíamos fazer como faziam. Havia entre eles uma amizade
cordial, mas onde acharemos tal maravilha hoje em dia?
-É de fato difícil - respondeu a senhora Bargrave - encontrar um verdadeiro amigo nos dias que correm.
-O senhor Norris - disse a
senhora Veal - escreveu um bonito livro de versos intitulado amizade na
perfeição, livro que eu admiro enormemente. A senhora conhece o livro?
-Não - disse a senhora Bargrave -, mas publiquei os meus próprios versos.
-A senhora publicou? - perguntou a senhora Veal. - Então, vá buscá-los.
A senhora Bargrave buscou os
versos no an¬dar de cima e os ofereceu à senhora Veal, para que os
lesse, mas esta os recusou e disse que olhar para baixo lhe daria dor de
cabeça; pediu então à senho¬ra Bargrave que lesse os versos, coisa que
esta última fez.
Quando admiravam "Amizade", a senhora Veal disse:
-Querida senhora Bargrave, eu a amarei para sempre.
Nos versos usam-se por duas vezes as palavras "pertencentes aos Campos Elíseos".
Disse a senhora Veal: - Esses poetas têm tais nomes para o céu!
Passava muitas vezes a mão pelos olhos e dizia:
-Não acha a senhora que estou muito afetada por meus ataques?
-Não - respondeu a senhora Bargrave -, acho que está com tão boa aparência quanto jamais a vi.
Depois de toda essa conversação,
em que a aparição pronunciou palavras de uma qualidade muito superior
às que a senhora Bargrave disse que poderia usar, e que consistiu em
muito mais do que aquilo de que se podia lembrar (não se deve pensar que
seria possível reter inteiramente uma conversa que durou uma hora e
três quartos, embora a senhora Bargrave declare que se lembra da maior
parte do que trataram), ela pediu à senhora Bargrave que escrevesse, em
seu nome, uma carta a seu irmão, dizendo-lhe que desse anéis a tais e
tais pessoas, e que havia uma bolsa com ouro no escritório dela, e que
ela lhe pedia que desse duas peças de ouro ao primo Watson.
Como falava muito e com pressa, a
senhora Bargrave entendeu que lhe vinha um dos ataques a que era
sujeita, e colocou-se assim numa cadeira bem diante dos joelhos dela,
para impedir que caísse ao chão, se sobreviesse o ataque. Pois a cadeira
de braços, pensou a senhora Bargrave, impediria que a senhora Veal
caísse para qualquer dos lados. E, tentando divertir a senhora Veal,
tomou de uma das mangas do vestido desta e elogiou o tecido. A senhora
Veal disse-lhe que era de seda lavada, e feita recentemente.
Não obstante isso, a senhora
Veal insistiu em seu pedido, e disse à senhora Bargrave que não devia
recusar-lhe o favor; e queria que contasse ao irmão toda a conversa,
quando tivesse uma oportunidade para tanto.
-Querida senhora Veal -
respondeu a senhora Bargrave isso parece tão fora de propósito que não
posso dizer como cumprir o seu desejo. E que história mortificante será a
nossa conversa para um jovem!
-Bem! - disse a senhora Veal - não quero que recuse.
-Parece-me muito melhor - ponderou a senhora Bargrave - que a senhora mesma o faça.
-Não - respondeu a senhora Veal
embora isso lhe pareça agora fora de propósito, a senhora compreenderá a
razão por que o peço mais tarde.
A senhora Bargrave, então, para
satisfazer a insistência com que lhe era feito o pedido, dispunha-se a
buscar caneta e tinta, mas a senhora Veal disse-lhe:
-Não faça nada agora. Faça-o quando eu me for. Mas faça-o com certeza.
Isso foi uma das últimas coisas que lhe requereu ao despedir-se. E a senhora Bargrave prometeu o que lhe era solicitado.
Então, a senhora Veal pediu notícias da filha da senhora Bargrave. Esta respondeu que a filha não estava em casa.
-Mas se a senhora quiser vê-la - acrescentou a senhora Bargrave - eu a mandarei chamar.
-Faça isso - disse a senhora Veal.
Ao que a senhora Bargrave deixou a visitante e foi ter com um vizinho para que este chamasse a jovem senhorita Bargrave.
Quando
a senhora Bargrave regressava, a senhora Veal estava do lado de fora da
porta, na rua, diante do mercado de animais do sábado (que é dia de tal
mercado) e parecia prestes a partir logo que a senhora Bargrave
chegou-lhe perto.
Esta perguntou-lhe por que
estava com tanta pressa. Respondeu a senhora Veal que devia partir,
embora talvez não seguisse viagem antes de segunda-feira; e disse à
senhora Bargrave que estimaria voltar a vê-la na casa do primo Watson
antes de seguir viagem para onde ia. Então a senhora Veal disse que se
despediria, e andou para longe da senhora Bargrave à vista desta última,
até que uma volta da rua não a dei¬xou mais ver, o que se deu
exatamente à uma hora e quarenta e cinco minutos da tarde.
A senhora Veal morreu no dia 7
de setembro ao meio-dia, de seus ataques, e, antes de morrer, não dispôs
de mais do que quatro horas de consciência. Nesse período, ela recebeu
os sacramentos. No dia que se seguiu ao da aparição da senhora Veal, dia
esse que foi um domingo, a senhora Bargrave sofreu muito de um
resfriado e de uma dor de garganta, e não saiu de casa. Mas, na manhã de
segunda-feira, ela mandou uma pessoa perguntar em casa do comandante
Watson se a senhora Veal estava lá.
As pessoas da casa ficaram intrigadas com a pergunta da senhora Bargrave
e mandaram-lhe dizer que a senhora Veal não estava lá, nem era
esperada. Diante dessa resposta, a senhora Bargrave disse à empregada
que esta certamente se enganara de nome, ou fizera alguma tolice.
E, embora estivesse doente,
colocou o chapéu e foi ela própria à casa do comandante Watson, embora
não conhecesse ninguém da família, para ver se a senhora Veal estava ou
não lá. Eles disseram que muito os intrigava a pergunta, pois a senhora
Veal não estivera na cidade; tinham certeza de que, se houvesse estado,
tê-los-ia procurado.
-Estou certa - disse a senhora Bargrave - de que passou comigo no sábado quase duas horas.
Responderam-lhe que era impossível, pois eles teriam visto a senhora Veal, desde que esta houvesse vindo à cidade.
O
comandante Watson chegou quando discutiam e disse que a senhora Veal
estava certamente morta, e que se estava gravando o seu nome para
colocar a inscrição no caixão. Isso muito surpreendeu a senhora
Bargrave, que foi ver imediatamente o gravador e verificou que a notícia
procedia.
Então ela relatou toda a
história ao comandante Watson e família, e o vestido que a senhora Veal
usara, e que riscas, que cores tinha, e que a senhora Veal lhe havia
contado que era lavado.
Então, a senhora Watson exclamou:
-A senhora certamente a viu, pois ninguém sabia, além da senhora Veal e de mim, que o vestido era lavado.
A senhora Watson acrescentou que a descrição do vestido era exata.
-Pois - disse ela - eu ajudei a fazê-lo, eu própria.
A senhora Watson fez a notícia
correr pela cidade, e sustentou a demonstração da verdade do que dizia a
senhora Bargrave quanto à aparição da senhora Veal.
E o comandante Watson levou
imediatamente dois cavalheiros à senhora Bargrave para ouvir-lhe o
relato do acontecimento da própria boca.
E então a história espalhou-se
com tal rapidez que cavalheiros e pessoas de qualidade, a parte
judiciosa e cética do mundo, vieram vê-la em grupos, o que se tornou
para ela uma tal carga que foi forçada a recolher-se; pois, em geral,
acreditavam no que ela dizia, e viam claramente que a senhora Bargrave
não era uma hipocondríaca, pois sempre aparecia com um aspecto tão
satisfeito e agradável que conquistou a estima de todas as pessoas de
posição, e pensa-se que é um grande favor obter o relato da boca da
própria senhora mencionada.
Eu deveria ter contado a vocês,
antes, que a senhora Veal disse à senhora Bargrave que esperava a irmã e
o cunhado, vindos de Londres para visitá-la.
Respondeu a senhora Bargrave: - Como se dá que a senhora arranjou tal programa tão fora de ordem?
-Não podia ser de outra forma - afirmou-lhe a senhora Veal.
E a irmã dela e o cunhado chegaram a Dover, justo no momento em que a senhora Veal expirava.
A senhora Bargrave perguntou-lhe se queria tomar chá.
Respondeu a senhora Veal: - Não
me seria desagradável. Mas garanto que aquele louco (com o que se
referia ao senhor Bargrave) quebrou todos os seus utensílios de chá.
-Não obstante - disse a senhora Bargrave -, tirarei alguma coisa em que possa tomar chá.
A senhora Veal, no entanto, recusou a bebida e disse:
- Não tem importância. Deixe isso.
Todo o tempo que permaneci com a
senhora Bargrave, tempo que somou algumas horas, ela rememorou outros
ditos da senhora Veal. E esta disse mais uma coisa material à senhora
Bargrave, a saber, que o velho senhor Breton concedeu à senhora Veal dez
libras por ano, o que constituía um segredo, e desconhecido para a
senhora Bargrave até que a senhora Veal o contou.
A história da senhora Bargrave
nunca varia, o que intriga aqueles que põem em dúvida a verdade do
relato, ou não querem reconhecê-la. Uma empregada num quintal vizinho à
casa da senhora Bargrave ouviu-a falar com alguém no momento em que a
senhora Veal estava com ela. A senhora Bargrave foi ter com seu vizinho
de porta logo depois de despedir-se da senhora Veal, contou a tal
vizinho a conversa maravilhosa que mantivera com uma velha amiga. O
livro de Drelincourti sobre a morte tem sido, desde que isso aconteceu,
comprado extraordinariamente. E deve ser observado que, não obstante
todo o cansaço e aborrecimento que a senhora Bargrave sofreu por causa
dessa aparição, ela nunca recebeu o valor de um centavo por causa do
relato, nem suportou que sua filha recebesse qualquer coisa de qualquer
pessoa, o que de¬monstra que não tem interesse algum nessa história.
Mas o senhor Veal faz o que pode
para abafar o assunto, e diz que está pronto a ver a senhora Bargrave,
mas, contudo, é uma questão de fato que esteve com o comandante Watson
desde que lhe morreu a irmã, mas nunca se aproximou da senhora Bargrave.
E alguns dos amigos dele dizem que ela é uma grande mentirosa, e que
ela tinha conhecimento da pensão de dez libras por ano, concedida pelo
senhor Breton. Mas a pessoa que afirma isso tem a reputação de um
mentiroso no¬tório entre pessoas que sei serem de caráter ilibado. O
senhor Veal é demasiado cavalheiro para dizer que ela mente, mas se
limita a dizer que ela ficou louca em virtude dos maus-tratos que sofreu
de parte do marido. Mas a senhora Bargrave não necessita de mais do que
se apresentar porque, com sua presença, ela refuta essa acusação de
loucura. O senhor Veal diz que perguntou à irmã, no leito de morte, se
queria fazer alguma disposição testamentária, ela respondeu que não.
Agora, as coisas que a senhora
Veal, em sua aparição, queria doar eram tão desprovidas de importância,
não havendo nenhum propósito de fazer justiça com a doação, que o
projeto daquela senhora me parece consistir em habilitar a senhora
Bargrave a de¬monstrar a verdade da aparição, confirmando ao mun¬do a
realidade do que vira e ouvira, e garantindo a sua reputação no meio das
pessoas razoáveis e compreensivas da humanidade.
Além disso, o senhor Veal
confessa que havia uma bolsa de ouro, mas que ela não foi achada na
escrivaninha da senhora Veal e sim no estojo dos pentes. Isso não parece
provável, pois a senhora Watson diz que a senhora Veal tomava tal
cuidado com a chave de sua escrivaninha que não a confiava a ninguém. Se
era assim, não há dúvida de que não colocaria seu ouro fora da
escrivaninha. E o fato de que a senhora Veal passava com freqüência a
mão pelos olhos e perguntava à senhora Bargrave se os ataques que ela
sofria não a haviam afetado, parece-me tudo feito de propósito para
relembrar os ataques à senhora Bargrave, para prepará-la a não julgar
estranho que ela própria não escrevesse ao irmão para que ele
distribuísse os anéis e o ouro, coisa que parecia tanto com o pedido de
uma pessoa prestes a falecer. E esse foi o efeito produzido na senhora
Bargrave, a quem tudo pareceu resultado dos ataques, e foi um dos muitos
exemplos de seu enorme amor pela senhora Bargrave, e cuidado com ela,
para que não temesse, o que transparece em toda a maneira de conduzir-se
a aparição, particularmente em que veio ter com a senhora Bargrave
durante o dia, quando esta estava sozinha, e evitou a saudação; e também
na maneira de partir, para impedir uma segunda tentativa de saudação,
de proximidade, de beijos.
Não posso descobrir por que
motivo o senhor Veal julga que este relato é uma ofensa (como fica
evidente pelo fato de que tenta abafá-lo), pois, em geral, as pessoas
julgam que a senhora Veal é um bom espírito, dado o teor celestial de
sua conversação. Seus dois grandes objetivos foram reconfortar a senhora
Bargrave em suas aflições e pedir-lhe perdão pela quebra de amizade,
com uma conversa pia feita para encorajar a amiga. Supor que a senhora
Bargrave possa ter inventado uma tal história do meio-dia de sexta-feira
até o meio-dia de sábado (desde que se acredite que ela soube de
imediato da morte da senhora Veal), sem confundir circunstâncias e sem
ter interesse algum na coisa, implica julgá-la mais inteligente, com
mais sorte e mais velhaca também do que passará pela cabeça de uma
pessoa qualquer.
Perguntei-lhe se ouviu um som quando bateu com a mão no joelho da senhora Veal. Ela diz que disso não se recorda, e acrescenta:
- Parecia ser tão substancial
quanto eu, que com ela falava; e é tão possível persuadir-me de que é
sua aparição que fala comigo como persuadir-me que eu não vi a senhora
Veal realmente, pois eu não sofri qualquer medo. Eu a recebi como uma
amiga, e como tal dela me despedi. Eu não daria um centavo para fazer
com que qualquer pessoa acreditasse em mim. Não tenho qualquer interesse
nisso. O que isso me acarretará, e por um longo tempo, pelo que sei,
são problemas. E se a coisa não fosse divulgada casualmente, nunca teria
se tornado pública.
Mas agora ela diz que fará um
proveito íntimo do acontecido, e recolher-se-á o mais possível; e tem
cumprido esse propósito. Ela conta que um cavalheiro veio de uma
distância de trinta milhas para ouvir o relato, e que ela narrou a
história para uma sala cheia de gente. Vários cavalheiros escutaram a
história da própria boca da senhora Bargrave.
A coisa muito me impressionou, e
nela acredito tanto quanto na história mais bem fundamentada. E
parece-me estranho que tenhamos a tendência a negar a veracidade de
fatos porque não podemos resolver coisas de que não possuímos noções
certas ou demonstrativas.Em qualquer outro caso, a autoridade e a
sinceridade da senhora Bargrave teriam bastado para confirmar o que
contasse.
Daniel Defoe (1660-1731), o célebre autor de As aventuras de Robinson Crusoé
foi um dos mais prolíficos escritores que se conhece, com mais de 500
títulos publicados. Entre os inúmeros gêneros que abordou (religião,
política, sociologia, história, ficção, poesia) no seu jornal The Review
(que ele escrevia praticamente sozinho). Defoe acreditava
profundamente na reencarnação e escreveu Contos de Fantasmas baseado
em entrevistas ou relatos conhecidos. Segundo ele, os episódios aqui
relacionados – com exceção dos que estão agrupados sob o título de
"Falsos fantasmas" – são todos verdadeiros e, em alguns deles, ele
estaria disposta a ir em juízo, levando testemunhas e provas concretas.
"A aparição da senhora Veal" é um dos exemplos.