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terça-feira, 2 de abril de 2013

Nos alcantilados da vida

Nesta cidade onde o Chefe do Serviço de Engarrafamento de Trânsito faz o possível para que todos conservem a direita, é muito perigoso dirigir alcoolizado. Dirá aí a senhora que ainda há pouco recebeu telefonema da costureira e mandou dizer que tinha ido almoçar com titia, que dirigir alcoolizado em qualquer cidade é perigoso.

De fato, a distinta tem razão. Mas, acontece que aqui, dirigir — de qualquer maneira, com a cara cheia ou não — é perigoso; logo, dirigir alcoolizado é mais perigoso do que nos outros lugares. Nós temos chofer particular e não precisamos nos preocupar com isso, mas — como somos guia espiritual de vocês — não custa dar alguns conselhos.

Como, minha senhora? quem é o nosso chofer particular? É um sujeito malcriado que só vendo. Chama-se Motorista de Praça. Mas... dizíamos, dirigir com pressão de cachaça ou similares é muito rebarbativo, razão pela qual temos que render homenagem àqueles que, em saindo do botequim meio sobre o baratinado, deixam seus respectivos carros onde estiverem e tomam um táxi que, se dirigido por bêbedo, é problema da Inspetoria e o passageiro morre sem qualquer responsabilidade.

Já vimos muito playboy sair do "Sacha's" caneado e meter uma segunda no MG, crente que está impressionando a turba. Já vimos também muito sujeito dito sério entrar pelo cano graças à mesma mania. Por isso ficamos muito impressionados ontem, quando o nosso coleguinha entornador de uísque Adolfo Gusmão nos contou a história do grã-fino, seu amigo, que foi à boite com o filho e, à saída, entrou no carro com o rapaz e perguntou:

— Você não acha que nós estamos muito triscados para dirigir?

O filho achou que não, que, se fossem devagar, não havia perigo. O pai concordou logo, os dois entraram no carro e saíram em frente. Não tinham corrido um quilômetro, quando o pai disse pro filho:

— Meu filho, se você continuar correndo assim eu salto.

O filho, então, fez ver ao pai que seria uma temeridade saltar.

— Por quê? — perguntou o gã-fino.

— Porque quem está dirigindo é o senhor — respondeu o playboy.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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Revolucionário de festival

Repito que o grande momento do Festival foi o ódio de Geraldo Vandré. Era o talento ferido. E as vaidades do autor estavam mais eriçadas do que as cerdas bravas do javali. Pouco antes, ao executar o seu número, era o vencedor total. Vocês se lembram dos comícios do Brigadeiro. A massa gritava: — "Já ganhou, já ganhou!". Também domingo os fiéis de Vandré berraram: — "Já ganhou, já ganhou!".

E, finalmente, quando saiu o resultado, o autor de "Caminhando" foi o maior espanto da terra. Apunhalado por um segundo lugar — um torpe segundo lugar — quase desabou, fisicamente. E, em seguida, rompeu de suas entranhas um ódio que bem merecia estar inserido nas obras completas de William Shakespeare. O leitor, que é um simples, há de pedir um sinal exterior e concreto de sua ira. Não houve tal exteriorização. O ódio de Vandré permaneceu dentro de Vandré.

Mas dizia eu, na confissão de ontem, que as caras não mentem. E a jovem cara crispada de Vandré não fazia nenhum mistério. Bem sei que, da boca para fora, ele pedia aos seus devotos: — "Aplaudam Tom e Chico, como se fosse eu!". Mas a vaia explodiu. Ou por outra: — não sei se era mesmo vaia. Hoje, o povo aplaude como se vaiasse e vaia como se aplaudisse.

Contei o caso da universitária que, em São Paulo, arrancou os sapatos e batia com os saltos um no outro. Ninguém sabe, até hoje, se estava contra ou a favor. Outros assoviam, vaiando ou aplaudindo. E há os que fazem castanholas com a boca. No Maracanãzinho, sujeitos sapateavam como bailarinas de Sevilha.

Cabe então a pergunta: — e foi mesmo injustiça?

Admitamos que sim. Faz de conta que o segundo lugar é pior do que a lanterna. E que "Sabiá" não merecia nem a lanterna. Admitamos tudo isso. Mas, se houve injustiça, Vandré deve ser festejado e não chorado. Seus partidários devem recolher todos os palavrões. E, de fato, não há nada mais promocional do que a injustiça. O "injustiçado" assume uma dimensão inesperada e gigantesca. Quando passa, é lambido com a vista. Só uma coisa me espanta: — é que não tenham carregado o Vandré na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.

Todavia, já uma dúvida se insinua no meu espírito. "Para não dizer que não falei de flores" é uma bela canção. Não há dúvida. Bela canção. Mas ainda ontem dizia-me um amigo:

— "Sou contra 'A Marselhesa'! Não topei 'A Marselhesa!'".

Custei a entender que ele falava, justamente, da música de Vandré. E, sem o saber, o meu amigo deu-me a pista exata. Era uma deslavada "Marselhesa". Agora mesmo, ao bater estas notas, vejo toda a cena. Vandré está fazendo a música do Festival. Evidentemente, quer partir para o social, o político, o épico, o homérico, ou sei lá. O Chico, ou o Tom, pode encerrar-se no lirismo íntimo. Mas um rapsodo como o Vandré sonha com a grande comunicação. E, então, quis fazer "A Marselhesa". Eis aí, em rápidas pinceladas, o que foi a concepção, o que foi a execução de sua obra. Perdeu noites, na fremente elaboração. Mas quando acabou a sua "Marselhesa" — saiu-lhe a anti-"Marselhesa". Aí está, como eu dizia, o defeito.

Lenin falou no "ópio do povo". O que o Vandré fez é o que há de mais ópio, de mais sedativo, repousante, embalador, suavíssimo. É o tipo de música que o sujeito deve ouvir na rede, abanando-se com a Revista do Rádio. Quase uma berceuse. E o próprio Vandré a canta em surdina, como se estivesse fazendo o povo dormir.

Repito que nunca se viu uma "Marselhesa" tão pouco "Marselhesa", tão anti-"Marselhesa". Dirá alguém: — "E a letra?". De fato, há a letra. Mas é óbvio que o nosso "injustiçado" fez o libreto para a ópera errada. Há, sim, entre a música e o canto, o feio e cavo abismo das incompatibilidades totais. É só prestar atenção.

Uma coisa não tem nada a ver com outra. E já me parece certo o seguinte: — a sua música é o que há de mais impróprio, de mais ineficaz para resolver as cóleras, sim, as cóleras que dormem nas entranhas populares.

Todavia, o nosso Vandré não foi um caso único. E, súbito, explode na vida brasileira uma nova figura: — o "revolucionário de Festival". Vocês entenderam? Trata-se do herói sem risco. Claro que outros países, e os outros idiomas, também o têm. Foi assim na nova e jovem "Revolução Francesa". Milhões de franceses entraram no movimento. Pois bem. E não morreu ninguém. Não houve um morto e, ouso mesmo dizê-lo, não houve um ferido. Na França, morre-se muito de atropelamento. Mas como os estudantes viraram todos os carros, a "revolução" não teve nem os atropelados dos dias úteis. Eis o óbvio ululante: — o "revolucionário de Festival" não mata, nem morre. Põe entre a sua pessoa e o perigo uma sábia distância.

Por exemplo: — o Roldão. Fez outra "Marselhesa" que se chama "América, América". Vejam vocês: — temos, ali, nas nossas barbas cínicas, Magé. Todos conhecemos Magé. Magé, repito, está diante de nós, fisicamente próxima. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Lá, de vez em quando, uma ratazana devora um recém-nascido. E vem o Roldão, com seu bigode boliviano, a falar de "América, América". Eis a verdade a um só tempo deplorável e patusca: — o "revolucionário de Festival" não toma conhecimento do Brasil.

Aqui mesmo, nesta coluna, contei um episódio que me pareceu uma obra-prima de alienação. Era uma passeata. E um rapaz empunhava este cartaz: — "Muerte" etc. etc. Adiante, outro: "Independiencia o muerte". E, de repente, graças às nossas esquerdas, o brasileiro se põe a odiar, a matar, a morrer em castelhano.

Eis a pergunta que, em casa, vendo o Festival, eu me fazia: — "Por que o nosso Roldão não vai cantar guarânia, ou bolero, ou tango?". Talvez, um dia, alguém se lembre de medir a distância que há entre as nossas esquerdas e esse pobre-diabo colossal, que é o Brasil. Ninguém apontará um "revolucionário de Festival" que mencione, ainda que de passagem, ainda que de raspão, esta mísera terra.

Vejamos o Vandré. Nem o Brasil, nem o brasileiro entram na sua berceuse.


[2/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995.

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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Queremos ver sangue

Sim, companheiros, o direito da gente se divertir é sagrado e devia, inclusive, figurar na Constituição. É verdade que, mesmo com garantias constitucionais, a diversão de cada um não estaria assegurada. A Constituição prevê, mas nem sempre garante.

Veja-se por exemplo, o Título V, capítulo primeiro, artigo 145, parágrafo único da chamada Carta Magna. Foi Tia Zulmira que nos chamou a atenção para ele. E lá está: "O trabalho é obrigação social e a todos é assegurado o direito de um trabalho que possibilite existência digna." Leram bem?

Pois Tia Zulmira também leu e chegou à conclusão de que existem centenas de pessoas anticonstitucionais pela aí. Segundo a veneranda senhora, basta abrir a porta de uma boite às 4 da matina que a gente vê um montão de grã--fino badalando lá dentro; assim como basta olhar a praia num dia de sol que a gente percebe centenas de pessoas que, deitadas na areia de barriga pra cima, não pensam em levantar e ir até o palácio, reclamar do Executivo o direito de trabalhar que o tal artigo 145 da Constituição lhes garante.

A veneranda senhora estava um pouco revoltada com essa gente, mas explicamos a ela que são todos amigos do Governo e que ficam sem trabalhar para não prejudicar o Executivo e obrigá-lo a ser constitucional em tudo. Mas voltemos ao divertimento, que é coisa mais amena.

Dizíamos que, mais do que um direito, o divertimento é uma necessidade e é essa premência em esquecer os indefectíveis aborrecimentos de todos os dias que cria os mais estranhos processos de distração. Stanislaw é homem de muito saber, mas confessa que não sabe se o divertimento varia em relação à mentalidade do indivíduo.

Se assim é, dois velhinhos que conhecemos destroem todas as teses a esse respeito. Cidadãos pacatíssimos, desses que não se revoltam nem assistindo o programa de televisão do Jaci Campos, eles se divertem com... crimes.

Diariamente compram nas bancas quantos jornais sensacionalistas estejam à venda e vão para casa ler e comentar. É de vê-los, companheiros, sentadinhos nas poltronas da sala, a falar sobre crimes. Cada manchete é um prato novo: "Atirou-se para a morte a jovem infelicitada" — e o que leu exclama: "Bacana!" — Olha este aqui — mostra o outro, sem conter a excitação — e lê alto: — "Lavou com sangue a honra da amásia"... Ôba! E lá vão, de desgraça em desgraça, saboreando o noticiário: "Achado macabro na Barra da Tijuca"; "Ingeriu lisol em forte dose"; "Esfaqueou o vizinho por causa da cachorra"; "O tarado de Parada de Lucas outra vez em evidência"; "A meretriz anavalhou o marítimo"; "Furtou o cego e espancou o paralítico"; "A vedeta cortou outra vez os pulsos".

Tudo isso para eles é muito divertido. Sabem de todos os crimes e desgraças, torcem pela captura ou evasão deste ou daquele criminoso e têm idéias próprias sobre as ocorrências policiais, criticando entre si a ação das delegacias. E estão de tal forma acostumados à leitura da "Luta Democrática" que, noutro dia, quando a netinha de um deles perguntou o que vinha a ser formicida, o avô respondeu:

— Formicida é um preparado ótimo para matar domésticas.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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terça-feira, 26 de março de 2013

O pelado na arte plástica

O Papa João XXIII decidiu que serão (se já não foram) vestidos os anjos de mármore da basílica vaticana. Os jornais europeus — que vivem a citar Stanislaw — fazem muitos comentários a respeito e alguns deles estranham a medida, dando outros detalhes sobre como serão "vestidos" os anjos. Dizem que Sua Santidade ordenou que fossem "vestidos" com reboco.

Tia Zulmira — na sua infinita sapiência — garante-nos que não é a primeira vez que um Papa manda vestir os nus. Em 1555 (o Brasil, portanto, era um garoto) Paulo IV mandou pintar roupinhas no "Último Julgamento", de Miguel Ângelo, trabalho que foi feito pelo alfaiate-pintor Ricciarelli.

Em 1595, o Cardeal Farnèse mandou "disfarçar" a estátua da Justiça (uma Justiça nua como a verdade, é lógico) que existia (e ainda existe) no mausoléu do Papa Paulo III.

E Tia Zulmira garante que Pio IX, mais recentemente, se contentou em adornar com folhas de zinco os mármores "imodestos" do Vaticano. Conta ainda a prendada senhora que, depois que puseram folhinhas de parreira de zinco nos anjos do Palácio, em dias de vento, as folhinhas balançavam e os anjos faziam uma barulheira danada.

Eis, portanto, que o Papa João XXIII, na sua infinita bondade, não foi inédito, mas um seguidor. E isto quem diz não é aqui o bestalhão, mas a célebre Tia Zulmira. Aliás, Stanislaw lembra que não é de hoje que existe essa controvérsia a respeito de nus. A censura no mundo inteiro sempre implicou com os nus.

No teatro rebolado, por exemplo, o nu é permitido desde que a mulher fique estática no palco. Mexeu, multou! Agora, não nos perguntem por quê. Na verdade, mulher despida não é arte... é artimanha. Pelo menos num palco do teatro rebolado. Na moldura de uma cama — como costuma dizer o poeta, não é arte... é artifício. E na moldura de um quadro, mulher nua, ou mesmo homem (que nos perdoem a citação de mau-gosto), ou ainda anjo, só deixa de ser arte quando prevarica o artista.

A Igreja, no entanto, reconhecendo a arte e o artista, por mais artista que seja o distinto, não acredita em respeito ao belo.

A humanidade é cheia de truques e está sempre de olho. Quem vê anjo e pensa
maldades está muito mais pro lado da Colônia Juliano Moreira do que pro lado do Vaticano. O Papa, no entanto, não quis saber disso. E mandou castigar reboco em tudo que foi anjo da Basílica de São Pedro. Fez bem, uai!

Stanislaw sempre se lembra de um grã-fino novo-rico que comprou uma porção de quadros de mulher nua, porque ouviu dizer que "o nu" era chique. Comprou e espalhou pelas paredes de sua imensa sala de visitas. Mas — certa vez — quando estávamos só nós dois ali, tomando um penúltimo, confessou:

— Eu só comprei esses quadros porque minha mulher me chateou e todos esses calhordas que vêm aos nossos coquetéis vivem elogiando. Mas, para lhe dizer a verdade, desde que eles estão pendurados na parede, eu me sinto um pouco vivendo em pensão alegre. Era um dos poucos granfas que era sincero.

Tão sincero que jamais se referiu aos quadros para chamá-los de "nus". Sempre que se referia a eles, chamava-os de pelados.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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A ira de Geraldo Vandré

Os que são velhos, como eu, conheceram os estertores das gerações românticas. Havia então uma permanente nostalgia do patético e do sublime. Morrer de amor, ou por amor, era uma honra; morrer simplesmente, sem amor, nem ódio, morrer de paratifo ou até de asma, era outra honra. E quando passava um enterro de virgem, com o caixão de arminho, as mocinhas dos sobrados invejavam a morta e gostariam de estar no imaculado caixão. Bom tempo, em que a morte era mais promocional do que a vida.

Mas quem conta episódios admiráveis da vida romântica é o Eça. Num dos seus livros, não sei se Os Maias, há uma cena deliciosa. Imaginem um rapaz vestido de negro e pálido como um santo. É uma festa. Ele está, na janela, maravilhosamente só. E ali, olhando a noite, que já vai para a madrugada, cheira uma flor, talvez camélia. Muito olhado pelas damas, exalava uma nobre e inconsolável melancolia. E, súbito, vem a dona da casa e pergunta:

— "Não dança?".

O rapaz ergue a fronte diáfana e responde:

— "Como posso eu dançar, se a Polônia sofre?".

Nesse rapaz que, junto à janela, beija uma camélia; e não pode sorrir porque a Polônia sofre, nesse rapaz está todo um Portugal, toda uma Europa. Outro que tem o mesmo valor social, humano, histórico, é o nosso Geraldo Vandré.

Quem não o conhece? Com o seu sucesso no Festival da Canção, o nosso Vandré tornou-se uma súbita figura nacional. Abram os jornais, as revistas, ouçam os rádios, vejam as TVs. A fulminante celebridade de Vandré é de uma evidência estarrecedora. E mais: — de domingo para cá, sempre que três brasileiros se juntam, o assunto obrigatório, fatal, é a vil injustiça que lhe fizeram.

Vandré concorria ao Festival com a sua "Pra não dizer que não falei de flores". Segundo se diz, ele devia tirar o primeiro lugar. Vai o júri e dá-lhe um mísero e franciscano segundo lugar. Antes, porém, de passar no Maracanãzinho, preciso dizer quem é e como é Vandré. Vamos lá.

Dias atrás, um amigo meu cruza com o compositor e diz-lhe:

— "Boa noite".

Ora, a um cumprimento responde-se com outro cumprimento. É o mínimo e o máximo que se pode fazer. O Vandré, porém, está bem acima de um automatismo tão crasso e tão ignaro. Assim saudado, ele se arremessa para o meu amigo, como se fosse agredi-lo. Agarra-o pelos dois braços, sacode-o; diz-lhe, embargado:

— "Como pode você me dar boa-noite se o mundo está em guerra?".

O outro tomou o maior susto:

— "Eu não tive intenção! Eu não tive intenção!".

E, realmente, o meu amigo não tivera nenhuma intenção, senão a de lhe dar boa-noite. E o Vandré, em arrancos:

— "Você não vê que estão morrendo no Vietnã?".

O autor do imprudente "boa-noite" quase correu, fisicamente, do Vandré.

Pode parecer talvez que eu esteja fazendo um exagero caricatural. Por sua vez, os idiotas da objetividade dirão que o Vietnã está lá e o compositor aqui. Mas saibam que, no caso do Vandré, a distância não influi nas leis da emoção ou da indignação. Ele reage como se o Vietnã fosse ali na esquina; e como se o chão que ele pisa estivesse juncado de vietcongs defuntos.

Narrei o episódio para caracterizar o artista: — será nosso contemporâneo apenas nos ternos, gravatas e sapatos; mas por dentro tem a estrutura das gerações românticas. Já os familiares e conhecidos evitam cumprimentá-lo, porque o Vietnã sofre. Dito isto, passo ao Maracanãzinho.

Domingo, ia ser escolhida a música brasileira para o Festival Internacional da Canção. Não sei por que, meteu-se na cabeça de muitos, inclusive do próprio Vandré, que sua letra e sua música iam ser as ganhadoras fatais.

Vocês entendem a minha perplexidade? Informa o senso comum que qualquer competição, seja o prêmio Nobel ou de cuspe à distância, tem os seus imponderáveis. A começar pelos juizes. São quinze sujeitos e temos de admitir a "verdade de cada um", verdade que foi, como se sabe, o ganha-pão de Pirandello. Todavia, Vandré e seus partidários, que eram numerosos e ululantes,
estavam maravilhosamente certos da vitória.

Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram "Sabiá", de Chico e Tom. Ao nosso Vandré coube o segundo lugar. Outro qualquer estaria soltando os foguetes da vaidade, e telefonando para casa:

— "Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo lugar!".

Seria uma glória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não tem as reações de qualquer um. Assim como não admite que o cumprimentem, também não aceita um reles segundo lugar. O resultado doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia. Estava falsamente derrotado. Na verdade, merecera uma colocação nobilíssima. Não tinha que sofrer como se o segundo lugar fosse a mais hedionda das lanternas.

Os que estavam lá, no Maracanãzinho, viram muito pouco. Havia entre a platéia e o palco uma deplorável distância visual. Ao passo que o vídeo amplia a cara, o gesto, o espanto. Eu, em casa, com a televisão ligada, vi tudo e com prodigiosa nitidez. E, sobretudo, vi a bela, forte, crispada e jovem cara de Vandré. Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, o segundo colocado. Os presentes não puderam sentir o seu patético, mas o telespectador, sim.

Para nós, de casa, a cara de Vandré tomou a expressão cruel, vingativa, de certas máscaras cesarianas. Lia-se tudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelos seus fiéis, Vandré perguntou, de si para si:

— "Abro ou não o verbo?".

Seria o comício. Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto no bolso. Mas os tempos parnasianos já passaram. Hoje, ferozmente politizado, ele tem sempre, à mão, um comício. Outrora soneto, hoje comício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, com perfeita visibilidade: — por um lado, o comício fascinava Vandré como um abismo; por outro
lado, era amigo do Chico e do Tom.

Mas eis o que eu queria dizer: — um concorrente frustrado só devia aparecer de máscara, como nos vel hos carnavais. Apenas o primeiro colocado teria o direito de fotografar-se de rosto nu. Então o Vandré cometeu o erro de saudar os concorrentes vitoriosos. Só ele e Deus sabem o esforço braçal que lhe custou essa concessão às boas maneiras.

Mas um artista não pode ser convencional. Sei que, por um instante, quase partiu para o comício. Foi quando começou:

— "Nem tudo é festival!".

Disse isso e não foi além. Assim traiu a própria ira, traiu o próprio ressentimento. Ninguém pôs uma máscara compassiva no ódio tão forte, ingênuo e impotente.

Outro momento inesquecível: — a cara de Tom Jobim.

Ao saber-se premiado teve espasmos triunfais de víbora moribunda. Somos uma pátria de cavas depressões; e a cara de Tom Jobim, na vitória, devia ser exibida por todo o Brasil.

Como é trágica a euforia do subdesenvolvido premiado. O nosso Tom foi aos Estados Unidos, fez músicas para Sinatra, é uma glória internacional. Só faltou atirar beijos como uma menina de préstito carnavalesco. Um americano embolsa um prêmio com um tédio sarcástico. O francês recebe um favor como se estivesse fazendo um favor ao favor.

E o nosso Tom, ao impacto do triunfo, quase foi para a tenda de oxigênio.

[1/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:
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segunda-feira, 25 de março de 2013

O noivo organizado

Aconteceu em São Paulo. Um camarada chamado João Augusto de Melo, ao encontrar na rua sua ex-noiva Leonor Conceição de Paula, abotoou a distinta e perguntou onde é que estavam os Cr$ 2192,00 que lhe devia.

A ex-noiva, ainda que inibida pela truculenta cobrança, respondeu que não devia coisa nenhuma, muito menos 2 192 cruzeiros, que lembra preço de paletó da "Ducal".

— Não devo coisa nenhuma — reclamou Conceição.

E João, que não estava disposto a discutir, tacou-lhe a mão nas bochechas, bolacheando-a fartamente, até a intervenção de outros paulistas que passavam por perto e que, mesmo não podendo parar, resolveram entrar para desapartar.

Aí veio um guarda (lá em São Paulo tem guarda) e levou o casal de ex-noivos para a delegacia. E então a dívida foi esclarecida. O rapaz informou ao comissário que fora noivo de Conceição durante três anos. Durante o noivado tivera o cuidado de tomar nota de todos os gastos que fizera com ela ou por causa dela. No dia em que desmancharam o noivado, dividiu o total por dois e se sentiu com direito a ser reembolsado na metade das despesas. E para provar que era um sujeito organizado, mostrou à autoridade a cópia da carta que enviara a Conceição, carta esta, que transcrevemos aqui, em seus trechos principais.

Diz assim: "Primeira vez que saímos juntos — 1 café 1,50. Cinema Alhambra — 25,00. Cinema Dom Pedro (duas vezes) — 30,00 Condução, nas vezes que fui ver você e gastei por sua causa — 30,00. Uma vez que jantamos juntos logo que você chegou do interior — 300,00. Duas vezes Cinema Ópera — 50,00. Duas vezes que paguei Cinzano no bar — 20,00. Uma vez Cine Anchieta — 25,00. Uma vez Cinema Oásis — 30,00.

Uma vez que fomos juntos à "Boite Asteca" — 700,00. Gastos com você no Bar Áurea — 280,00. Metade da despesa de táxi (Baile da Moóca) — 50,00. Um presente para sua mãe — 16,00. Dinheiro que lhe dei, quando você foi ao Paraná — 100,00. Três pratos — 30,00. Dias dos Namorados (uma blusa) — 315,00. Uma xícara que dei para você — 10,00. "Despesas" que fiz com você (não especificadas) — 400,00. Total que você me devo — 2192,00. (ass): .— João Augusto de Melo, ex-noivo."

Esta é a relação que está na cópia da carta que João cansou de enviar a Conceição, sem que a dita se mancasse. E João (ex-noivo, como ele mesmo se catalogou), deve ter ficado indignado com o pouco caso de Conceição para saldar a dívida. Sim, porque João é um "pão-duro" desgraçado.

Em três anos de namoro, pagou Cinzano uma vez, deu de presente uma blusa, uma xícara e três pratos.Isto sem contar o presente de 16 mangos que deu pra mãe lá dela. Que diabo de presente teria sido esse, tão preço de queima total para entrega das chaves? João não diz. Não diz porque é um ex-noivo discreto, predicado que deixa antever naquela marotíssima "Despesa" (entre aspas) não especificada.

Conceição não quis explicar ao comissário, qual era a "despesa" não especificada. Mas está na cara, né João? Foi quarto de hotel suspeito e você, mais "pão-duro" do que discreto, castigou na relação. E está com toda razão. Pois se vocês foram juntos, por que é que ela não vai pagar também, é ou não é?

Cobra mesmo João. Cobra mesmo, ex-noivo organizado.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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terça-feira, 12 de março de 2013

Herói e mártir

Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa.

E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóias caras. E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás.

Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles (2).

Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — "Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino".

Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã.

O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — "Que diálogo! Que diálogo!".

Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia: — "A mulher brasileira não chega aos pés da francesa". O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi.

E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — "o Brasil é um país de quinta ordem". E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — "O brasileiro não sabe fazer uma frase".

A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França.

Quando o táxi passou pelo relógio da Glória, eu pensava em D'Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — "Por quê? Por quê?". Fisicamente, D'Annunzio era o antifauno — pequenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D'Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.

Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase.

Vejam a última "Revolução Francesa". Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a já insuportável "É proibido proibir". Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo.

Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa francesa. "É proibido proibir", mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da "jovem irracionalidade" varreu a França.

Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro "não sabe fazer uma frase". Dirá um patriota de penacho: — "Mas é injusto! Injusto!". Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.

Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês se Pedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia.

Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosidade, de praia, de Antonio's — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.

E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de uma inveracidade total. O brasileiro sente como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.

Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o "É proibido proibir". Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.

Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera.

É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.

(2) Personagem criado por E. W. Hornung, Raffles é um aristocrata inglês arruinado que, para manter-se condizente com a sua condição social, torna-se um sofisticado ladrão. [Nota Guinefort]
[28/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Lição de nudismo

Nasceu o primeiro menino nudista! Deu-se que uma dama de pouca roupa, habitante da Ilha do Sol, ilha onde reina a popular Luz Del Fuego, conheceu, no mesmo local, um cavalheiro, chamado Ladário Brito, que se veste na Sem-Cal. A jovem, cujo nome é Cleide, se apaixonou-se (vê aí onde fica melhor colocado o oblíquo, Osvaldo) pelo Ladário e, já vai pra mais de um ano, a dupla casou.

Agora — noticiam os jornais — vem de nascer o primeiro menino nudista. Sim, porque, mesmo depois de casados, Ladário e Cleide continuaram firmes como sócios do Clube Naturalista do Brasil, com sede na acima citada Ilha do Sol.

A mãe do primeiro menino nudista é quem dá entrevista à imprensa saudável, explicando que a criança, se tivesse nascido menina, ia se chamar Lua mas felizmente — nasceu menino e será batizado com o nome de Sol, coitadinho. De qualquer maneira, Sol é melhor do que Lua, pois tem luz própria, ainda que não seja Del Fuego.

Dona Cleide Brito está contentíssima com o nascer do Sol e já declarou que o seu júbilo é enorme. Tão grande que até parece que o Sol nasceu pra todos. Ela foi muito fotografada logo após o Nascente e os jornais abriram espaço para dar um lugar ao Sol, razão pela qual também apareceram nas reportagens diversas fotos do menino.

Nós — embora achando que nudismo é como brincadeira, isto é, tem hora — não podemos deixar de cumprimentar o casal e muito principalmente a jovem mãe que deu.à luz o Sol. Apenas gostaríamos de corrigir um equívoco de Dona Cleide, no que tange à sua declaração de que seu filho é o primeiro menino nudista nascido nesta cidade.

Para não cometer um erro, andamos mesmo a consultar entendidos no assunto, acabando por recorrer à Tia Zulmira, como sempre fazemos em caso de dúvida. Pedimos à sábia ermitã da Boca do Mato para nos informar se não é precipitação de Dona Cleide reclamar para seu filho o título de primeiro menino nudista.

A experiente parenta nem pestanejou para responder que, de fato, há aí um erro que a sócia do Clube Naturalista cometeu, com relação a prioridades nudistas do garoto. E acrescentou, não sem antes meter um pouco de malícia:

— Salvo um ou outro cocoroca que já nasceu de touca, todo menino, quando nasce, é nudista.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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segunda-feira, 11 de março de 2013

Dia do Papai

A jovem senhora, realmente muito bonita, estava na boca de uns e outros. A Candinha já morara em seu assunto. Madame, de fato, tinha sido educada no ambiente sadio do Vogue, fora mais ou menos modelo de casa de modas e tinha até feito sua experiência no chamado teatro rebolado. Depois conheceu o otário, aliás, o marido, e casara. Tivera um filhinho mais ou menos louro, embora o acima citado fosse mais ou menos moreno.

Na época, Primo Altamirando — muito do mau caráter — chegou a comentar:

— Tava lá Mane Sinhô. (1)

O menino cresceu até ficar de bom tamanho, a distinta até que andava mais pra calma do que pra assanhada, e o murmúrio foi diminuindo até parar. O marido não tomava conhecimento, mesmo porque, conforme diz o ditado: "os maridos e os Diários Associados são os últimos a saber".

Veio, então, o "Dia do Papai". Chamaram o garoto, deram um embrulho a ele (quem'deu foi a vovó, coitada, sempre tão amiga de datas), e explicaram :

— Isto é um presente, porque hoje é o "Dia do Papai". Você pega esse presente e guarda. Logo mais você entrega ao seu pai.

O garoto, que adorava ouvir conversa, fez que sim com a cabeça e disse que tava legal, que depois entregava o presente ao Papai. A avó ainda deu um beijinho nele antes de sair, crente que tudo ia acontecer como ela previa. Depois veio o fim da tarde, a mãe do garoto — a que tinha sido até candidata a Rainha de um baile aí — chegou do dentista, o marido dela chegou logo em seguida e aí caiu a noite.

O menininho então lembrou-se da recomendação da avó. Tinha que pegar o embrulho do presente e entregar ao Papai. Foi lá dentro, apanhou o embrulho no armário, botou debaixo do braço e saiu pra rua. Entrou na casa ao lado, tocou a campainha e, quando o vizinho apareceu, entregou-lhe o embrulho.
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(1) Tava lá Mane Sinhô. — Trecho da canção "Uma Casa de Caboclo", que vem logo depois daquele pedaço em que o cantor diz que numa casa de caboclo um é pouco, dois é bom, três é demais. O terceiro, no verso, era Mane Sinhô.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A volta do Dia da Sinceridade

Vocês queiram perdoar, sim? Queiram perdoar, mas vamos continuar imaginando coisas sobre o "Dia da Sinceridade", cujo bolamos em momento dos mais inspirados, escudados que estávamos na certeza de que dias como o "Dia das Progenitoras", "Dia da Reconciliação", "Dia do Papai" e outros de some-nos não tinham a menor importância do ponto de vista cívico, e, sim, do ponto de vista comercial.

Com aquela disposição de que sempre nos munimos, quando se trata de auxiliar o próximo a ter idéias mais felizes, bolamos o "Dia da Sinceridade", que não tem o mínimo cunho comercial e — muito pelo contrário — ajuda os leitores que aderirem a burilar o caráter, elemento da personalidade de cada um que — segundo Tia Zulmira — está para a consciência do indivíduo assim como a gomalina está para a cabeleira do Al Neto.

O "Dia da Sinceridade" lavará a alma de muita gente, mesmo essa gente inibida que passa o dia mentindo para conservar os honorários, tais como garotas-propaganda, locutores de rádio, ministros de Estado, vendedores ambulantes e cronistas mundanos. Isto para somente citarmos classes mais ou menos definidas dentro do panorama da insinceridade nacional e — por que não? — internacional.

No "Dia da Sinceridade", talvez para evitar futuros aborrecimentos, não seria conveniente visitar parentes, mas seria de boa monta entrar na Câmara dos Deputados e conversar um pouco com o deputado em quem votamos. Seria de bom alvitre também ligar o rádio para a Rádio Mundial e ouvir as pregações do Irmão Alziro Zarur.

Somos de opinião que um dia assim viria descomplexar (ou será extracomplexar? Verifique aí, Osvaldo) diversas classes trabalhadoras, como, por exemplo, a classe dos que vendem calçados. Isto é um exemplo, conforme vocês podem notar, trazido assim a esmo, só para melhor esclarecer a massa ignara.

Os vendedores de sapatos que, conforme tão bem assinalou o poeta Vinícius de Moraes, parecem Madalenas arrependidas pedindo perdão pelos sapatos, já que se ajoelham na frente do freguês para experimentá-los (não os fregueses, mas os sapatos), vivem na insinceridade. No entanto, vitoriosa a idéia do "Dia da Sinceridade", mesmo em sua postura costumeira, e talvez por causa dela, diriam para a dama elegante que insiste em comprar o sapato de couro de camelo: — Madame, não vai nessa. Esse camelo nasceu cavalo.

O modelo é uma fábrica de calos e o sapato entorta mais que boca de cantor de tango. A senhora compradora não se espantaria, pois era o dia supracitado, e agradeceria com um sorriso, não sem antes botar na mão do vendedor uma nota de duzentas pratas, aconselhando:

— Vá a um dentista, nego. Daqui de cima é que se tem uma idéia panorâmica de suas cáries.

O vendedor faria uma reverência, já de pé, e antes que a freguesa fosse embora, perguntaria risonho:

— A senhora não quer examinar a nossa coleção de ferraduras?

Grande dia, companheiros, o "Dia da Sinceridade".
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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O Dia da Sinceridade

Quem não tem o que fazer deu agora para inventar "dia". Um vereador — cujo nome esquecemos — propôs a oficialização do "Dia do Acidentado", explicando que, nesse dia, todos iriam aos hospitais visitar os doentes passíveis de visitas e perturbar os doentes que não podem receber visitas. A idéia, que ao vereador deve ter parecido luminosa, não foi sequer levada a sério pelos seus coleguinhas edis. Felizmente.

Já nossa amiguinha Graciette Santana quer o "Dia da Progenitora", como se já não bastasse o "Dia da Genitora", onde as progenitoras já estão incluídas porque a condição primordial para a mulher ser progenitora é ser genitora anteriormente, detalhe que — queremos crer — escapou à Dona Graciette. Lamentável.

Outro que lançou "dia": Antônio Maria. Prenhe de boas intenções, o Arcebispo do Sacha's quer o "Dia da Reconciliação", conforme ele mesmo expôs em bem traçadas linhas. Será o dia em que cavalheiros mais ou menos em crise de amizade com outros tantos cavalheiros farão as pazes em lugar público; dia em que ferrenhos desafetos se abraçarão para legalizar o fim da briga etc. etc.

E como é bom demais para abençoar os outros, o próprio inventor do "Dia da Reconciliação" irá para o interior na data dos reencontros, para não ter que fazer as pazes com ninguém. Ele não confia nos inimigos, infelizmente.

Já a flor dos Ponte Pretas, que também se sentia meio jogado fora, resolveu criar um diazinho, para ficar atualizado e não ser passado para trás. Por isso mesmo imaginou o "Dia da Sinceridade", dia que — temos certeza — contaria com a adesão incondicional de todos, mesmo com a adesão do vereador, da Irmã Graciette da Emissora "Jesus Está Chamando" e do Antônio Maria.

No "Dia da Sinceridade" aconteceriam coisas surpreendentes. Você ligava a televisão e veria uma garota-propaganda com um sabonete na mão, dizendo que o dito não faz espuma, tem um perfume muito do rebarbativo e o preço é extorsivo.

Depois outros anúncios sinceros, seguidos de entrevistas sinceras, ocasião em que os arnaldos nogueiras do vídeo anunciariam assim seus convidados: está aqui ao nosso lado um dos maiores ficeleiros do PSD, que vai explicar a negociata que fez ontem no Ministério da Fazenda. Os jornais também seriam sinceros, principalmente os da imprensa sadia, cujos teriam um dia de reabilitação, pelo menos.

Jogadores de futebol fariam declarações importantes, explicando que detestam o clube a que pertencem, que farão tudo pela vitória porque o bicho é melhor quando vencem, mas que o adversário tem um time melhor e, por isso mesmo, vão tacar o pé no inimigo para intimidá-lo. E acrescentarão: a chave é essa, o técnico que se dane, pois quem vence jogo é jogador e não técnico.

Revistas especializadas diriam o que acham de Emilinha, contariam como fazem reportagem com Cauby; cronistas mundanos falariam de suas listas de "dez mais" com completa isenção de ânimo; candidatos a eleições colocariam na rua faixas com dizeres que espelhassem seus sentimentos cívicos e nos petits comitês, os que vivem nos riversides da vida, trocariam idéias entre si e sobre si, sem qualquer futuro ressentimento.

Nesse tão saudável "Dia da Sinceridade", por nós imaginado, Stanislaw passaria despercebido e, para culminar a comemoração, haveria discurso do Presidente na "Voz do Brasil". Credo!
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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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O único De Gaulle

Uma das maiores festas populares do velho Rio era o "grande enterro". Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil que passou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, de Pinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso, sem nenhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha, radiante, enterrar o "grande homem".

Claro que ninguém chorava o defunto oficial. E, por todo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Os moleques, trepados nos postes e nas árvores, avisavam: — "Evém! Evém!".

Mas eu disse que ninguém chorava o "grande homem" e já retifico: — as velhinhas choravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do Rio Branco.

Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverência, que era o chapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante da morte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse.

Mas eu estava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi o maior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o "grande homem" até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que mais me fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceito cardíaco, não sei se justo ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumam fazer a restrição pressaga: — "Você está muito gordo".

No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homem de Estado, do senador. E, naquele dia, ninguém ficou em casa, ninguém, e só as velhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis o que eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro parecido. Cabe então a pergunta: — e por quê?

Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve um momento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dos velhos enterros do Brasil.

Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc. etc. Havia lá um escultor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais de Inês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confessou que não vira, jamais, um "grande enterro".

Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos "grandes homens". Houve a dúvida: — "Vivos ou mortos?".

Convencionou-se que só interessavam os vivos. E começou uma busca frenética. No fim de uma hora os nomes lembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo de angústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — "Será que, no Brasil, ninguém é grande homem?". Até que, cerca das quatro da manhã, chegou-se à síntese desesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto. O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — "O Brasil não tem um grande homem para
enterrar".

Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, numa carona amiga. O dono do carro ainda gemia, numa irada frustração: — "É impossível que o Brasil não tenha um grande homem". Nenhum povo pode viver sem o grande homem. Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — "Quem sabe se não há, por aí, um gênio inédito?". Protesto do dono da carona: — "A primeira virtude do grande homem é não ser inédito".

Quando saltei do carro, na porta de casa, já tínhamos renunciado ao grande homem brasileiro. E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com o problema na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passeatas, justamente a mais concorrida, a dos "100 mil".

Estavam, ali, eretas as nossas elites. Eram estudantes, poetas, romancistas, professores, sacerdotes, arquitetos, médicos, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, cineastas.

Do alto de uma sacada, um observador podia imaginar: — "São os que pensam". E, de fato, era o Brasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro Raul Brandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — "Vai haver o  O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se juntam para nada. Imaginei que ia começar, ali, a "Grande Revolução".

Até que se ouviu a palavra de ordem: — "Vamos sentar". A docilidade foi total. E as nossas elites sentadas eram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inversa: — "Levantar". Tal e qual no anúncio do "senta e levanta". Ninguém queria tomar o poder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil se deram por satisfeitos e cada qual foi para casa.

Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim, que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito mais obscuro do que um cachorro atropelado?

Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — "O importante, no Brasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homem comum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto". Arquejava de uma fúria sagrada contra as elites.

Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não só no Brasil. Também no mundo. Recentemente, vimos a nova "Revolução Francesa". Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12 milhões de operários entraram em
greve.

Estudantes chamavam De Gaulle de "o assassino". O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, ninguém. E por quê? Simplesmente porque, entre milhões, não havia um único e escasso grande homem. A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velho De Gaulle, único grande homem francês.

Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um artigo confessional de Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua "morte". Durante a "jovem revolução", o famoso ator, com um oportunismo muito pusilânime, tratou de adular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelos jovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partir daquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte alçada, completou: — "Barrault morreu". Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina.

Quinze dias depois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator, falso grande homem, teve o seu prêmio. Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais ou menos isto: — "Rua! Rua!". E o artigo do  "morto" vem plangente de uma funda e inconsolável nostalgia do salário.

Seja como for, a "jovem revolução" ensinou-nos que a França é uma paisagem sem franceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.

[27/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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domingo, 3 de fevereiro de 2013

Do inquirir os querelantes

Não, isso também já é enveredar pelo perigoso terreno da galhofa — se é que vocês me permitem usar esta expressão de Tia Zulmira. Esse negócio de se arranjar uma comissão de inquérito para apurar o que estão fazendo as comissões de inquérito é muito chato. Desculpem, mas vamos mais uma vez usar a sábia parenta.

A velha e experiente Tia Zulmira, quando soube que se cogitou, de brincadeirinha, é claro, de uma comissão de inquérito para as comissões de inquérito da Câmara sentenciou:

— Há um dado momento em que se deve confiar, pra não piorar! Ora, a velha é fogo e sabe o que diz.

Ensinou bailado a Nijinsky, relatividade a Einstein, psicanálise a Freud, automobilismo a Juan Fangio, foi técnica de basquete dos "Globe Trotters", deu aula de tourada a Dominguín, explicou a Charlie Chaplin como se faz cinema e, na rebarba, ainda temperou a vacina para o Dr. Jonas Salk. Logo, não está aí para blablablá.

Se ela diz que, num dado momento, mexer a panela é pior que deixar no fogo lento, é porque esta é a melhor maneira de se proceder. Vivida como é, a excelente macróbia esteve a conversar conosco sobre esse círculo vicioso que, às vezes, causa a desconfiança excessiva. Lembrou então o que aconteceu com os pais de Primo Altamirando, menino que cedo foi viver com a tia, porque o casal foi à garra.

Deu-se — contou-nos ela — que Mirinho quando garoto já prometia que um dia seria isto que é hoje, razão pela qual seus pais resolveram arranjar uma babá de toda confiança para vigiar o agora abominável parente. Contrataram uma babá inglesa (até hoje ninguém sabe explicar por que certos casais acham que babá, pra ser de confiança, tem que ser inglesa)... mas — dizíamos — contrataram uma babá inglesa e estavam muito satisfeitos, até o dia em que acharam que era preciso ver se a babá era mesmo de confiança.

Então — porque era um antigo conhecido da família — chamaram o velho Crisanto (já falecido) para vigiar a babá.

Crisanto ia se desincumbindo satisfatoriamente do mister e nada teria acontecido se Altamiro, pai de Altamirando, não tivesse a idéia de conversar com a mulher a respeito da missão de Crisanto. Quem lhes podia garantir que o distinto estava mesmo vigiando a babá que vigiava Mirinho?

É... ninguém podia, pois ninguém vigiava o homem. E foi por isso que — usando da velha teoria de quem quer vai, quem não quer manda — Altamiro, pai de Altamirando, passou a sair para vigiar Crisanto, que vigiava a babá, que vigiava o menino.

Tudo ia muito bem, até o dia em que a mãe da criança resolveu espiar pra ver se o marido estava mesmo controlando o velho Crisanto. E qual não foi sua surpresa, ao descobrir Crisanto ninando Mirinho e Altamiro ninando a babá!

É... Tia Zulmira tem razão: num dado momento, deve-se confiar, para não piorar!

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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domingo, 27 de janeiro de 2013

A menina que suava em cores

Tínhamos escrito um bem documentado artigo sobre a menina Vera Lúcia, a tal mineirinha que sua colorido. 0 trabalho era muito bem documentado e de grande importância para o estudo do fenômeno que ora preocupa a imprensa carioca e deixa um pouco off side a ciência de um modo geral. Isto porque, sendo um artigo de Stanislaw, já era obra de valor, valor este que aumentava, ao levar-se em conta que somos um dos que mais fizeram mulher suar pela aí.

É lógico que suor colorido para nós também é bossa nova, ainda que não sejamos supersticiosos a ponto de achar que Vera Lúcia é milagrosa. Isto não.

Que nos recordemos assim, a grosso modo, só Primo Altamirando é que, certa vez, começou a suar colorido. Aliás, não era bem colorido. Ele começou a suar numa cor só: o preto — mas Tia Zulmira, com um pouco de água e um pedaço de sabão, acabou com o milagre.
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sábado, 19 de janeiro de 2013

O dedo

Foi em São Paulo num ônibus. Havia um dedo; aliás, como é natural em coletivos, havia diversos dedos. Em coletivos, comumente, acontece mão-boba, quanto mais dedo.

Não. Não era um dedo-bobo, nem pode ser comparado com os demais dedos que viajavam no Santa Clara—Paissandu, da Empresa Vila Paulista Ltda., porque estes estavam em seus respectivos lugares, nas mãos de seus donos, enquanto que o dedo citado estava sozinho, no chão do ônibus, apontando sabe lá Deus para onde.
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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os centauros

Caetano Veloso - 1968
Fala-se em "Poder Jovem", na "Jovem Revolução" e um padre de passeata, em seu veemente sermão, chamou Nossa Senhora de "a mãe do Jovem Salvador". Vejam: — é tão importante ser jovem que já se providenciou uma idade promocional para Jesus. Há também os que proclamam a razão da idade. Nada tenho a objetar. Que seja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, e que façam o mundo à sua imagem e semelhança.

A meu ver, porém, chegou a hora de se falar também da "jovem obtusidade". Que ela existe como uma realidade concreta, que se pode apalpar, farejar, não há dúvida. Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constatação visual. Se me pedirem fatos, eu direi: — "Vamos aos fatos".

Sábado, fiquei em casa. Fazia um frio cadavérico. Tenho um amigo que se refere ao frio em termos de "julgamento moral". Quando a aragem vai gelando os edifícios e as esquinas, ele põe-se a esbravejar:

— "Ah, frio canalha! Ah, frio indecente!".

Para a sua indignação, o frio era "torpe", era "obsceno", era "sórdido".

Sábado, tive também vontade de xingar o frio dessa forma direta, pessoal e crudelíssima. Fiquei vendo televisão, com três suéteres. Ia passar o teipe do Festival da Canção. Não sei se não teria preferido um bangue-bangue.

Mas, vamos lá. Começa o festival com uma panorâmica da platéia. Verificou-se, ao primeiro olhar, que todo mundo lá era jovem. Só rapazes, só mocinhas. É apavorante. No passado ocorria o inverso: — o Brasil era uma paisagem de velhos. Nos bondes, só os velhos vinham sentados; os jovens ficavam de fora, pendurados no balaústre. E as senhoras grávidas pediam para o filho já nascer setuagenário e de guarda-chuva, como o personagem de Gogol.

Hoje, o velho tem vergonha de o ser. O padre de passeata precisa fazer uma plástica em Jesus e remoçá-lo (talvez assim o Salvador se salve, sobreviva etc. etc.). Mas, como ia dizendo: — não havia na platéia um sujeito de meia-idade, uma viúva, ou, como quer a gíria perversa, um coroa. Uma platéia sem coroa e ocupada por uma mocidade ululante e salubérrima. Imaginei que estaria, ali, a melhor juventude paulista.

E era de um óbvio escandaloso a politização dos presentes. Sempre que uma letra fazia uma insinuação política, ou tinha um arroubo ideológico, ou rosnava para os Estados Unidos — a audiência vinha abaixo. Que pasionarias eram as meninas! Lembro-me de uma que assim se manifestava: — tirando os sapatos e batendo com os saltos, um no outro. Ninguém sabia se estava aplaudindo ou vaiando.

Ah, os rapazes, os rapazes! Cavalgavam as cadeiras e atiravam patadas como rútilos centauros.

Mas todas essas impressões paisagísticas são secundárias, irrelevantes. De um altíssimo patético foi a aparição do sr. Caetano Veloso. Ah, esquecia-me de Vandré. Seus versos tinham o seguinte título, de uma malícia ou, melhor dizendo, de uma ironia finíssima: — "Pra não dizer que não falei de flores". E, realmente, para nosso pasmo, ele faz um artigo de fundo contra as flores. Até hoje ainda não sei o que é que o nosso libertário propõe.

Vejamos algumas hipóteses: — quererá ele dizer que a "Grande Revolução" vai acabar com as flores? Ou que só a burguesia mais reacionária aprecia as rosas e, por carambola, a beleza? E que o revolucionário é tão obtuso, tão bestial, tão abjeto que não pode ver uma flor sem chutá-la?

Sim, há várias metáforas no editorial do Vandré e todas absolutamente inescrutáveis. Só uma coisa é certa: — sem que o próprio autor o perceba, tais metáforas são absolutamente contra-revolucionárias.

Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia.

A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar.

Mas os jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha solenidade nazista: — a queima de livros. Imaginei que, a qualquer momento, a guarda vermelha ia subir ao palco para queimar o próprio Caetano Veloso. Não me admiraria nada que, no futuro, os nossos jovens socialistas queimem poetas no meio da rua.

Mas estou aqui fazendo uma defesa inútil de Caetano Veloso. Ninguém reage melhor do que ele mesmo. Quis cantar e esmagaram seu canto. A massa coral repetia, em furiosa cadência, uma obscenidade espantosa. Era o massacre de um artista, um desesperado artista que se propunha a cantar o "É proibido proibir".

A canção era a flor que o nosso Vandré quer expulsar do seu horrendo paraíso socialista. Já nenhum telespectador suportava mais a humilhação, que se transferia para as casas. (E a jovem massa insistia no refrão torpe).

Súbito, os brios de Caetano Veloso se eriçaram mais que as cerdas bravas do javali. Ele começou a falar. Era um contra 1500. E um que dizia a sua feroz mensagem nos trajes mais impróprios para o seu rompante.

Sim, estava de peruca, plumas, batom, salto alto etc. E disse as verdades que estavam mudas, sim, as verdades que precisavam ser ditas — urgentes, inadiáveis e santas verdades. Ainda bem que milhões de telespectadores as ouviram. Se bem me lembro, eis as suas palavras:

— "É isso a juventude? E vocês são políticos? Querem o poder! Vocês não sabem nada, não entendem nada! Analfabetos em política e arte! Se entendem de política como entendem de música, desgraçado Brasil!".

Não me lembro de tudo. Houve um momento em que Caetano Veloso comparou, e com exemplar justiça, as duas vergonhas: — a vaia obscena e a invasão do Teatro Ruth Escobar.

Naquela ocasião, depois do espetáculo de Roda viva, uns quarenta bandidos espancaram o elenco. Havia uma atriz grávida, que gritou: — "Estou grávida!". Levou um chute na barriga. Foi pisada como uma flor do nosso Vandré.

E dizia Caetano Veloso:

— "Vocês não são melhores! São iguaizinhos!".

Os idiotas da objetividade hão de perguntar:

— "E a peruca? E as plumas? E o batom? E o salto alto?".

Eu responderia que qualquer um pode ter uma indignação à Zola. Quando morreu o autor de Germinal, disse alguém, à beira do túmulo:

— "Zola foi um momento da consciência humana".

No teipe de sábado tivemos, pela fúria de Caetano Veloso, um momento da consciência brasileira. E vimos como a sua implacável lucidez acuou e bateu a "jovem obtusidade".

[26/9/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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El arzobispo de la revolución

Quando era crítico teatral, Paulo Francis disse certa vez: — "O hospital é mais importante do que o teatro". Não me lembro se escreveu exatamente assim, mas o sentido era este. E o articulista tinha a ênfase, a certeza de quem anuncia uma verdade inapelável e eterna.

Ao acabar o texto, voltei à frase e a reli: — "O hospital é mais importante do que o teatro".

Fiz para mim mesmo a pergunta: — "Será?".

Já me pareceu imprudente que se comparassem funções e finalidades diferentes. Para que serve um teatro e para que serve um hospital? Por outro lado, não vejo como um crítico de teatro, no gozo de plena saúde, possa preferir uma boa rede hospitalar às obras completas de William Shakespeare.

De mais a mais, o teatro era, na pior das hipóteses, o seu ganha-pão. Imaginem um médico que, de repente, no meio de uma operação, começasse a berrar: — "Viva o teatro e abaixo o hospital!".

A mim, parecem gêmeas as duas contradições: — de um lado, o crítico que prefere o hospital; de outro lado, o cirurgião que prefere o teatro. É óbvio que a importância das coisas depende de nós.

Se somos doentes, o hospital está acima de tudo e de todos; caso contrário, um filme de mocinho, ou uma Vida de Cristo ali no República, ou uma burleta de Freire Júnior, é uma delícia total. Mas volto ao Paulo Francis.

Alguém que lesse o artigo citado havia de pensar: — "Bem. Esse crítico deve estar no fundo da cama, moribundo, já com a dispnéia pré-agônica. E, por isso, prefere o hospital". Engano. Repito que, ao escrever aquilo, Paulo Francis nadava em saúde. E por que o disse?

O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós, intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plástico.

Ah,as nossas posturas ideológicas, literárias, éticas etc. etc. Agimos e reagimos de acordo com os fatos do mundo. Se há o Vietnã nós somos vietcongs; mas se a Rússia invade a Tchecoslováquia, vestimos a pose tcheca mais agressiva. E as variações do nosso histrionismo chegam ao infinito.

Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo estivesse fazendo apenas uma pose.

Bem. Fiz as divagações acima para chegar ao nosso d. Hélder. Está aqui na minha mesa um jornal colombiano. É um tablóide que... Um momento. Antes de prosseguir, preciso dizer duas palavras.

Domingo, na TV Globo, o Augusto Melo Pinto chamou-me num canto e cochichou:

— "Você precisa parar com o d. Hélder".

Faço um espanto: — "Por quê?".

E ele: — "Você está insistindo demais". Pausa e completa: — "Você acaba fazendo de d. Hélder uma vítima".

Disse-lhe da boca para fora: — "Você tem razão, Gugu". E paramos por aí. Mas eis a verdade: — o meu amigo não tem nenhuma razão. Gugu inverte as posições. Se há uma vítima, entre mim e d. Hélder, sou eu.

Outrora, Victor Hugo vivia bramando: — "Ele! Sempre ele!". Falava de Napoleão, o Grande, que não lhe saía da cabeça. Com todo o universo nas suas barbas a inspirá-lo, Hugo só via na sua frente o imperador. Bem sei que não sou Hugo, nem d. Hélder, Bonaparte. Mas eu podia gemer como o autor de Os miseráveis: — "Ele! Sempre ele!". Realmente, sou um território solidamente ocupado pelo querido padre.

Dia após dia, noite após noite, ele obstrui, engarrafa todos os meus caminhos de cronista. É, sem nenhum favor, uma presença obsessiva, sim, uma presença devoradora.

Ainda ontem, aconteceu-me uma impressionante. Tarde da noite, estava eu acordado. Ai de mim, ai de mim! Sofro de insônias. Graças a Deus, me dou bem com as minhas insônias e repito: — nós nos suportamos com uma paciência recíproca e quase doce. Mas não conseguia dormir e levantei-me. Fui procurar uma leitura. Procura daqui, dali e acabei apanhando um número de Manchete.

E quem havia de brotar, da imagem e do texto? O nosso arcebispo. Quatro páginas de d. Hélder! E, súbito, minha insônia foi ocupada pela sua figura e pela sua mensagem. Primeiro, entretive-me em vê-lo; em seguida passei à leitura. E há um momento em que o arcebispo diz, por outras palavras, o seguinte: — o mundo pensa que o importante é uma possível guerra entre Leste e Oeste. E d. Hélder acha uma graça compassiva em nossa infinita obtusidade.

Se a Rússia e os Estados Unidos se engalfinharem; se as bombas de cobalto caírem nos nossos telhados ou, diretamente, em nossas cabeças; se a OTAN começar a disparar foguetes como um Tom Mix atômico — ninguém se assuste. O perigo não está aí. Não. O perigo está no subdesenvolvimento.

Leio a fala de d. Hélder e a releio. Eis a minha impressão: — esse desdém pelas armas atômicas não me parece original. Sim, não me parece inédito.

E, súbito, um nome e, mais do que um nome, uma barriga me ocorre: — Mao Tsé-tung. Certa vez, Mao Tsé-tung chamou liricamente a bomba atômica de "tigre de papel". Foi uma imagem engenhosa e até delicada. E vem d. Hélder e, pela Manchete, diz, por outras palavras, a mesmíssima coisa.

O homem pode esquecer o seu pueril terror atômico. Quem o diz é o arcebispo e ele sabe o que diz.

Mas objetará o leitor: — e aquela ilha em que a criança é cancerosa antes de nascer? Exato, exato. Vejam bem o milagre: — ainda não nasceu e já tem o câncer. O leitor, que é um piegas, perguntará por essas crianças. Mas ninguém se aflija, ninguém se preocupe. A guerra nuclear não importa.

Eis o que eu não disse ao Gugu: — como esquecer uma figura que diz coisas tão corajosas, inteligentes, exatas, coisas que só ele, ou Mao Tsé-tung, ousaria dizer? Sabemos que o ser humano não diz tudo.

Jorge Amado tem uma personagem que vive puxando barbantes imaginários que a enrolam. Os nossos limites morais, espirituais, humanos, ou que outro nome tenham, os nossos limites são esses barbantes. Há coisas que o homem não diz, e há coisas que o homem não faz. Mas deixemos os atos e fiquemos nas palavras. O que me espanta é a coragem que leva d. Hélder a dizer tanto. Há um élan demoníaco nessa capacidade de falar demais. Continuemos, continuemos.

No dia seguinte, veio o "Marinheiro Sueco" trazer-me, em mão, um jornal colombiano. E, novamente, agora em castelhano, aparecia d. Hélder. Ele começava na manchete: — "EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN". Em seguida, outra manchete, com a declaração do arzobispo: — "ES MÁS IMPORTANTE FORMAR UN SINDICATO DO QUE CONSTRUIR UN TEMPLO".

Eis o que eu gostaria de notar: — na "Grande Revolução", os russos substituíam, nos vitrais, o rosto da Virgem Maria por um focinho de vaca. Jesus tinha a cara de boi, com as ventas enormes. Mas a "Grande Revolução" se fez contra Deus, contra a Virgem, contra o Sobrenatural etc. etc. e, como se verificaria em seguida, contra o Homem. Portanto, ela podia incluir Jesus, os santos, num elenco misto de bois e vacas.

Mas um católico não pode agredir a Igreja com esta manchete: — "Es Más Importante Formar un Sindicato que Construir un Templo". E se o nosso Hélder o diz, estejamos certos:

— é um ex-católico e, pior, um anticatólico.

[25/9/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A vaca

Não foi muito longe não, foi na Avenida das Bandeiras — que é ali beirando a variante. Personagem : Uma vaca! A dita personagem vinha caminhando pela beira da Avenida das Bandeiras, com aquela dignidade que só as vacas têm, quando — súbito — resolveu atravessar para o outro lado. E vocês sabem como vaca é. Cismou e atravessou mesmo.

Vinha um caminhão disparado e não teve tempo de frear. Aí foi aquele acidente horrível. O caminhão pegou a vaca pelo meio e encaçapou-a legal, matando ali mesmo. O noticiário não explica se a coitada ficou em decúbito dorsal ou decúbito ventral, mas que morreu, lá isso morreu.

O caminhão deu no pé e nem prestou atenção; caminhão mata gente e não pára, vai travar por causa de vaca!

Aconteceu, porém, o que ninguém esperava. Um — com desculpa da má palavra — pedestre que a tudo assistira, em vez de ficar na moita e resolver o seu problema sozinho, saiu gritando pela aí:

— Tem uma vaca morta na estrada! Tem uma vaca morta na estrada!

No grito, a turma ouviu e só pensou em chã-de-dentro, alcatra, mocotó, filé. Alguns, mais requintados, na voz de vaca morta, passaram a entrever dobradinhas à moda do Porto, iscas de fígado à lisboeta, rabada com polenta, filé à Osvaldo Aranha (ou mesmo filé ao outro... Chateaubriand). Enfim, foi aquela ignorância.

O povo muniu-se de facas, machadinhas, canivetes e até tesouras de unhas para retalhar a falecida, na ânsia de melhorar o ragu. Os mais fortes conseguiram o lado bom da vaca, onde mora o mignon. Os mais fracos, ainda que intimidados, pegaram o miolo (miolo de vaca é como o de cronista menor, não tem muito proveito), outros franzinos levaram os rins, e assim por diante.

Dizem técnicos em talho que do boi só não se aproveita o suspiro, porque até a sua vergonha serve para adubar canteiros. Pois com a vaca atropelada foi pior.

Depois que acabou o pega, os que não tiveram vez chegaram de mansinho e repartiram os ossos, porque uma sopa razoável, hoje em dia", está custando mais caro do que prato feito reforçado em botequim de operário.

Dizem que o Sindicato dos Urubus vai protestar junto ao Dr. J. Karne e impetrar mandado de segurança.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O velho processo

Diz que na Itália está uma fofoca danada. Depois de tantos anos, volta a Igreja a ser contra a ciência, achando que o progresso desta é uma ofensa ao Altíssimo. É uma briga velha, que fez muito sábio da antigüidade virar churrasco na mão do padre.

Agora é por causa do cientista italiano que conseguiu fecundar um óvulo humano em tubo de ensaios. A "Pretapress", num de seus despachos desta semana, já noticiou o fato. O órgão do Vaticano "Osservatore delia Domenica" espinafrou o cientista Dianeli Petrucci, que foi quem conseguiu isolar o óvulo e fazer nele uma inseminação artificial, acusando o distinto de trair as Leis que o Criador colocou na natureza em geral e no homem em particular.

E com grande sucesso — acrescentamos nós, que nada temos com a briga e estamos aqui somente para relatar. Se entramos na coisa foi sem querer, como Pilatos no "Credo" ou Al Neto na imprensa.

Dianeli Petrucci, logo que foram publicadas as espinafrações ao seu trabalho de laboratório, onde, inclusive, dizia-se que o  embrião humano pode ter alma desde o momento de sua concepção, concedeu entrevista aos jornalistas que foram ouvir sua opinião a respeito das restrições, todos doidos para uma fofoca. O cientista decepcionou os repórteres, ao explicar que não tomaria conhecimento de nada e continuaria o seu trabalho.

Agora, você aí, sente o drama, vá! Já tinham inventado a tal de inseminação artificial, que era um desperdício bárbaro, e eis que neste momento um sábio trabalha com afinco para firmar a geração de chocadeira, digna substituição da atual geração Mustafá, que tem pai e mãe mas ninguém diz. Parecem todos de chocadeira também.

O que nos consolou nisto tudo foi a opinião do abominável Primo Altamirando. O nefando parente é um chato, mas tem um certo equilíbrio nas suas observações.

Quando lhe mostramos o noticiário sobre o que está se passando na Itália, ele leu com ar desinteressado e depois perguntou:

— Que é que tem isso?

— Que é que tem? — repetimos. — Ora, Mirinho. A humanidade é preguiçosa. Se esse italiano descobre um método de fabricar crianças em laboratório, vai ser chato.

Altamirando deu uma gargalhada e nos acalmou com esta oportuna observação:

— Não seja trouxa, rapaz. Por mais eficaz que seja o método novo de fazer criança, a turma jamais abandonará o processo antigo.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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domingo, 6 de janeiro de 2013

Os brindes

Primeiro foi aquela loja de vender discos lá de Porto Alegre que, na ânsia de passar adiante os LPs encalhados, anunciou o oferecimento de um quilo de feijão para o comprador de cada disco LP candidato eterno à prateleira.

Assim, o povo, que andava doido atrás da semente de faseolácea (é feijão numa apresentação mais puxada para o científico... queiram perdoar), não se incomodou de levar pra casa discos de Pedro Raimundo, Mário Mascarenhas, Dilu Melo etc. etc, contanto que lhe entregassem, em mão, o seu saquinho de feijão.

Agora é um contínuo de repartição que, desesperançado do abono e na certeza de que é difícil arranjar outro emprego nos dias que correm, fez da carestia um bico e está ganhando seu dinheirinho. O distinto levanta de madrugada, vai pra fila da carne e aguarda a sua vez. Como é dos primeiros na fila, consegue um quilo razoavelmente medido, quilo de carne este que leva para a repartição e rifa, na base de 10 pratas o bilhetinho de 001 a 100.

No fim da tarde, com os colegas todos torcendo em volta, faz o sorteio. O premiado leva um quilo de carne pra casa por 10 cruzeiros — preço ao alcance de todas as bolsas — enquanto o contínuo-açougueiro-banqueiro fica com uma abóbora de mil, pelo expediente.

Bem diz Tia Zulmira — prenhe de saber e transbordante de experiência — "quem se vira, se inspira". É um fato. A loja de discos aproveitou a falta de feijão para se livrar de discos encalhados, o contínuo aproveita a "carnestia" (como tão bem apelidou Primo Altamirando a falta de carne), para ganhar umpouco mais do que o salário ralo.

E a coisa vai pegando, como Deus é servido. Clubes da ZN estão organizando "biriba" aos sábados, para os sócios. Os prêmios lá estão, para quem quiser ver. Ao vencedor, três quilos de filé mignon, ao segundo colocado, três quilos de feijão ao terceiro, um quilo de feijão e outro de alcatra.

A ZS, por enquanto, vai se mantendo a fingir uma dignidade guaia, organizando no Country Club e demais clubes grã-finos seus concursos de "buraco", "biriba" ou "bridge", ofertando aos vencedores inúteis medalhas de ouro, prata ou bronze, que não servem para alimentar mais do que a vaidade.

Mas isto é por enquanto. Chegará o momento em que o alimento do estômago falará mais alto do que o alimento da vaidade, e a grã-finada larga pra lá essa besteira de medalha e adere aos prêmios já em uso na Zona Norte da cidade (residência da saudade — como quer o grande poeta urbano Orestes Barbosa). E nós veremos no Country um pai industrial torcendo para entrar um coringa no jogo da filha, para que ela faça canastra e ganhe um florido buquê de couve-flor.

Sim, irmãos, humânitas precisa comer, como diria o coleguinha Brás Cubas: ao vencedor, as batatas.
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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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