domingo, 8 de abril de 2012

O aplauso do estupro

Era um chofer de praça. Não sei se de origem italiana ou se ele próprio era italiano. Um dia foi preso. Por que, nem Deus sabe. Não fizera absolutamente nada. Era uma das raras inocências do nosso tempo. Sua vida tinha este movimento doce e casto: — da casa para o trabalho, do trabalho para a casa. Foi preso, repito, porque uma batida está acima da Justiça e da Iniqüidade.

E atiraram o chofer no fundo de um xadrez. Mas antes levou uns cachações. No seu espanto, começou a chorar.

Sim, ele, chefe de família, marido de uma santa senhora, pai de sete filhos, ele chorava. Mas uivaram: — "Engole o choro! Engole o choro!". O chofer de praça cerrou os dentes, trancou os lábios e acabou engolindo o choro. Um último bofetão e entrou no xadrez.

Lá estava uma meia dúzia de marginais. Ao vê-lo, um deles dá o berro triunfal: — "Carne fresca!". E o recém-chegado via aquelas caras, e tinha o olho enorme de pavor. O riso estava crescendo. Gritou: — "Socorro! Socorro!". Do lado de fora, o guarda nem olhou.

Uma hora depois, a Assistência encostava no distrito. Lá saiu o português, isto é, o italiano, de maca. A caminho do pronto-socorro, repetia: — "Não quero ver a minha patroa! Nem meus filhos!". Pausa, e vinha o resto: — "Não quero ver ninguém!". Sua idéia fixa era "não ver ninguém", nunca mais ver ninguém.

Ficou no corredor, esperando o primeiro médico vago. E quando apareceu um avental de mangas curtas, gemeu o apelo: — "Doutor, não me salve! Não me salve!".

Claro que o médico o salvou.

Passou no hospital oito dias (não sei, exatamente. Vá lá: — oito dias). Já na manhã seguinte, saiu a manchete, não sei se na Luta, no Dia, ou em ambos: — "Currado no xadrez".

Parece que o jornal falava em sete marginais. Ah, esquecia-me de dizer que não recebeu a mulher, que aparecera com dois garotos. Mandou o recado: — "Vai embora! Vai embora!".

O chofer de praça queria sair do hospital e desaparecer. Teve a idéia de ir para não sei onde e até de mudar de nome. Chamava-se não sei se Lucas (agora me lembro: — o pai é que era italiano). Mas um médico, recém-formado, deu-lhe conselhos. Disse que nem ele, nem a mulher, nem os filhos tinham culpa de nada. Portanto, devia voltar, sim, para casa. Ele dizia, de olhos baixos (não tinha coragem de olhar para ninguém):

— "Minha mulher vai mudar, meus filhos vão mudar". Achava que até o caçula havia de olhá-lo de outra maneira. E arquejava, sem encarar o médico:

— "Minha mulher não vai esquecer. Eu sei que ela não vai esquecer!".

Mas o doutor tanto insistiu que, por fim, disse: — "Vou pra casa, sim". E acrescentou, de olhos baixos, sempre de olhos baixos: — "O senhor me salvou".

No fim dos oito dias, saiu. Na porta do hospital, teve uma última dúvida. Por fim, decidiu-se: — "Vou". E foi.

Entra em casa. Ao vê-lo, a mulher começa a chorar. Os filhos têm medo. Ele está dizendo baixo e vai num crescendo: — "Não olhem pra mim. Não olhem pra mim". O menor veio atracar-se ao pai, mas levou um safanão.

E o chofer corre para o quarto e tranca-se lá. Vai abrir a gavetinha e apanhar a arma. Mete uma bala na cabeça.

Eis o que queria dizer: — também a Tchecoslováquia foi currada. De repente, nas barbas da platéia mundial, não sei quantos exércitos a estupraram. Foi invadida por todos os lados. Humilhada, ofendida, pisada. Bem. Cabe então a pergunta: — e que vão fazer os estudantes? E os intelectuais? E os grã-finos? E a "classe teatral"? E, sem querer, penso na Hungria. Quando os russos a massacraram, existia a UNE.

Hoje, todo mundo chora a sua clandestinidade. Tem-se a impressão de que o Brasil não anda porque fecharam a UNE. Mas insisto: — que fez a famosa e tão pranteada UNE quando a Hungria foi invadida? Não fez nada, exatamente nada, e repito: — não exalou um pio. Um mísero pio, nada.

Boiando nas verbas fáceis como uma vitória-régia, ela ignorou o assassinato de um povo. Os húngaros foram fisicamente esmagados. Os tanques passaram por cima de crianças, mulheres, velhos. E nenhuma manifestação da UNE. Hoje, temos até uma musiquinha de protesto. Mas só contra o americano. O compositor põe umas rimas no ódio aos Estados Unidos e se dá por satisfeito.

Aí está a nossa má-fé cínica e inédita: — o nosso ódio não toma conhecimento da Rússia. Amantes espirituais de Guevara (e de ambos os sexos) são numerosíssimos. Houve um tempo em que era Stalin. E, então, eu via, aqui, por toda a parte, "amantes espirituais" de Stalin. Eram jornalistas, intelectuais, poetas, romancistas.

Lembro-me de um comunista que me dizia, na redação de O Globo: — "Hitler é mais revolucionário do que a Inglaterra". Isso antes da invasão da Rússia. Outros punham nas paredes retratos de Stalin. Era uma pederastia idealizada, utópica e fotográfica.

Nos últimos tempos, temos visto as passeatas. Perguntem a um dos que marcham: — "Você é o quê?". Ele dirá: — "Socialista". Não de modelo sueco. Ninguém está interessado na Suécia e no seu socialismo não stalinista, não homicida, não sanguinário. O sujeito da passeata é socialista chinês, ou russo, ou cubano. Mas o russo, ou chinês, é a invasão da Hungria, da Tchecoslováquia, da Polônia, na guerra. E, por isso, vimos nossos jovens marchando com cartazes de "Muerte".

Desde quando o brasileiro odeia em espanhol, mata em espanhol? (E a China é o socialismo na sua forma stalinista mais bestial e assassina). Sempre que há as passeatas, picham as nossas paredes com vivas a Cuba, ao Vietcong, a Guevara. Ao Brasil, não. Mas que é Cuba? É uma Paquetá. E não invade, não faz imperialismo porque é frágil, impotente, indefesa como Paquetá.

E os nossos intelectuais de "passeata", de "manifestos"? Que farão eles? Gostaria de vê-los passeando em favor da Tchecoslováquia e contra a Rússia. Por toda a Cortina de Ferro, o crime contra a inteligência é uma descarada rotina. E deve haver uma relação entre os intelectuais e a inteligência. O diabo é que eles só usam o gesto, a ênfase, o palavrão, contra os Estados Unidos. São os que mais odeiam os americanos.

Mesmo os mais desinteressados do ato político, do pensamento político, do crime político, mesmo esses, dizia eu, fingem-se de antiamericanos. Nunca me esqueço de Érico Veríssimo. Tem tão escassa informação política que é capaz de pensar que somos governados ainda por d. Pedro II. E o nosso Érico achou-se na obrigação de vir a público meter o pau nos Estados Unidos. No Brasil, o intelectual tem de xingar a grande nação para sobreviver.

Mas os estudantes que têm retratos de Mao Tsé-tung, Lenin, Guevara, não vão fazer nada. As sacadas, que são aéreas barricadas, também nada. E os intelectuais? Esses são socialistas, do tipo que mata, fere, degrada, curra e desumaniza. Um povo foi violentado como o chofer de praça.

Portanto, por obrigação de coerência, e em nome do socialismo, os intelectuais devem aplaudir o estupro.

[23/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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