sábado, 8 de outubro de 2011

Bravos, bravíssimos!

Eu me lembro do gráfico Arlindo, que foi, há trinta anos ou mais, chefe de oficina de O Globo. Jamais poderei esquecê-lo. Imaginem vocês que o velho Arlindo não bebia café na xícara, como qualquer um de nós. Não. Derramava o café no pires e bebia do próprio pires. E nada descreve a volúpia com que o fazia. Parecia um desses prazeres jamais concebidos.

Aquilo me impressionava muito. Eis o que me perguntava: — por que o pires e não a xícara?

Até que, na madrugada de ontem, resolvi fazer uma experiência. A úlcera começou a doer e fui apanhar leite na geladeira. E, como o velho e finado Arlindo, bebi um pires de leite. Por uma dessas ingenuidades fatais, eu estava esperando um efeito mágico.

Mas vejam vocês: — o pires não dá nenhum sabor encantado e repito: — o leite em pires, copo ou xícara é a mesma bebida hedionda.

E, então, meio frustrado, lá vou eu para a janela da madrugada. Súbito, começo a pensar no meu ex-inimigo Paulo Francis.

Já nos chamamos de "palhaços", de "analfabetos", de "burros". Lembro-me da estréia de minha peça Perdoa-me por me traíres.

Era, ali, no Municipal. Ao baixar o pano sobre o terceiro ato, a platéia explodiu. Metade vaiando, metade aplaudindo. O então vereador Wilson Leite Passos puxou um revólver e queria fuzilar o texto. (O patético, ou sublime, como queiram, é que eu representei. Foi, da minha parte, um gesto suicida. Eu sabia que era o pior ator do mundo, o pior. Mas como se tratava de uma peça desesperada, quis ser solidário com a obra, o produtor, o diretor e os artistas. E representei. O prodigioso é que a platéia falava mais do que o elenco. Na primeira fila estava uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Passou os três atos me chamando de "tarado". E outras senhoras, e outros cavalheiros, me xingavam, o tempo todo, em cena aberta).

E, no final, tive a vaia e tive a apoteose. Do palco, vi grã-finas subindo nas cadeiras, aos uivos, contra e a favor. E estava lá o Paulo Francis, com o Edmundo Moniz. Berrava para mim: — "Burro! Burro!". Contam-me que o Edmundo Moniz protestava: — "Não faça isso! Não faça isso!".

Nada me ofendeu, e digo mais: — achei a vaia estimulante. Nem me impressionou o vereador, de revólver, querendo dar tiros como um Tom Mix. Mas sofri quando o crítico me chamou de "burro".

Um mês depois, caí doente. Circulou que fora um derrame e que eu estava paralítico de um lado, sei lá. E, então, o Paulo Francis não pensou duas vezes: — foi para a redação e escreveu uma página crispada de ternura. Foi aí que, subitamente, descobri tudo. Era um pobre ser, de intensa, desesperada fragilidade. O meu caso clínico não foi trombose, nem eu estava hemiplégico. Seja como for, tive a visão de sua dilacerada, envergonhadíssima bondade. Era um falso cínico.

Mas ainda assim, passamos anos sem um cumprimento, sem um "olá", sem um aperto de mão. Até que, no aniversário do José Lino Grünewald, o anfitrião ofereceu-nos uma noite de ópera. Houve um desfile dos divos de velhas gerações. Foi uma rajada de carusos, de muros, lauri volpi, totti dal monte, schipa, tita rufo.

E, súbito, o Paulo Francis começa a falar comigo. O teatro dramático nos separou e o teatro lírico nos uniu. Eu, o Paulo Francis e o José Lino Grünewald somos loucos por ópera.

Foi esta a última vez que o vi. Depois do aniversário, ele desapareceu. E, pouco a pouco, a sua ausência foi adquirindo uma densidade, uma tensão insuportável. Houve um momento em que me ocorreu a seguinte e fascinante hipótese: — "O Paulo Francis entrou para um convento".

Imaginem: — o Paulo Francis franciscano, beneditino ou jesuíta. Ontem, porém, almoço com o José Lino Grünewald. E o meu amigo solta a notícia: — "O Paulo Francis chegou". Estava viajando.

Não era absurda a idéia do convento. Viajar é também uma forma de solidão. Pergunto ao José Lino: — "E que tal?".

O Paulo Francis andara pela Europa e dera um pulo aos Estados Unidos. Não sei de tudo que ele viu e ouviu. Só sei de duas coisas que o assombraram: — primeiro, a liberdade americana. Nos Estados Unidos, tudo se diz e tudo se faz. A liberdade estourou todos os limites. Outra coisa que o impressionou: a Alemanha Oriental. Na Alemanha Oriental, não entram nem Sartre, nem Le Monde. Segundo as autoridades comunistas, o povo, lá, ainda não está preparado para ler Le Monde.

Quanto a Sartre, não sei por que expulsaram os seus textos. Mas o que importa é o simples fato: — a Alemanha Oriental abomina Sartre. E, como uma ditadura analfabeta, há de perseguir outros autores, e livros, e idéias, e jornais.

Mas imagino que, ao desembarcar no Galeão, o Paulo Francis tenha feito a pergunta dramática: — "E aqui? E aqui?". Como se comportara o Brasil na sua ausência? Como agiram e reagiram os nossos intelectuais? E qual foi a ação das esquerdas? Se eu estivesse no aeroporto, contaria o histórico comício de 1º de maio, no campo de São Cristóvão.

Foi um ato longamente concebido do e amorosamente eecutado. Tratando-se do "Dia so Trabalhador", as esquerdas aproveitaram a data univeral para uma demonstração de força.

O d. Hélder fala muito em "conscientização". Outros exaltam "a maturidade política" do nosso povo. E há, por todo o Brasil, um furioso ímpeto libertário. Portanto, o comício do campo de São Cristóvão devia dar, segundo os cálculos mais modestos, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E, de fato, a partir das dez horas da manhã, hordas ululantes começavam a varar a cidade. Da Zona Sul, Norte e Centro, partiam multidões ventando fogo. E havia, também, uma tempestade de bandeiras. Um turista que por aqui passasse e visse esse vendaval humano havia de imaginar que começava, aqui, outra revolução francesa. D. Hélder diria que era a "conscientização". E era a "conscientização".

Só que houve um ligeiro desvio de itinerário. Em vez de ir para o campo de São Cristóvão, o povo rumava para o Estádio Mário Filho.

Imagino a perplexidade amarga do Paulo Francis: — "E o comício?".

Diria eu: — "Houve o comício". Insistiria o Paulo Francis: — "Não foi ninguém?".

Resposta: — "Foi. Compareceram os oradores". Se o Paulo Francis perguntasse — "E o público?" — eu responderia que os oradores eram oradores e público.

Faço uma idéia do imenso e divertido espanto do meu ex-inimigo. Desembarca no Brasil e sabe de um orador que faz o discurso e urra "bravos", "bravíssimo", para a própria retórica.

[9/5/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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