segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Água virtuosa...

Nhô Thomé está bem disposto. Hoje deu para bulir com os pretos, agradando os piazinhos que rodeiam o fogo em suas tripeças.

- Dito! – perguntou ele a um dos crioulinhos de seus doze anos – ocê sabe porque é que os home e as muié não tem a mesma cor?

- Nha- não.

- Puis eu vô contá; botem bem o sentido...

No escuro, deitado na rede, descanço, a ver as sombras bailando nas paredes, ao labaredear do fogo aos estalos, escutando a "história".

- Puis é. Nosso Sinhô, despois de criá tudas as coisa, garrô num pelote de barro e garrô damninhá, por não ter o que fazê. Damninhô, damninhô, e feis um home chamado Adão; deu um assopro e ele virô gente.

Despois Adão garrô a ficar esquisito: hora tava triste, ora tava assanhado, cantadô divirtido e contente. Deus pensô: "Tudas as coisa tem muié... Chamô Adão:

- Venha aqui!

Grudô e rancô u’a costela dele e feis Eva p’ra casá co’ele. Ante de Adão e Eva já tinha gente, mais não erum fios de Deus, porque eles não forum assoprado co Esprito Santo e quem soprô eles foi o Cuzarruim – e é purisso que hai gente rúim na terra; são os tar que não recebero o Esprito-Bão. – Mais isso ocês num intende.

Adão casô cum Eva e nascero os fio e crescero e acharo muié e casaro e o mundo umentô in quistan de pocos anno. Moravum tudo no mesmo sítio, um lugá como num hai de havê otro iguá; só no céo. O sítio chamava Paraízo. Naquele tempo tudos os home e muié erum preto...

Neste ponto Nhô Thomé descreveu a vida de então. Adão, depois do casamento, perdeu a alegria: tornou-se ajuizado, pois entendia que ser alegre e brincalhão como em solteiro não era próprio de homem casado... É um descrédito ser divertido e alegre.

A vida era fácil: frutas por toda a parte sazonavam o ano inteiro, ora esta, ora aquela, sem ser preciso plantar e tudo era "reiuno", não pertencendo a ninguém e a todos pertencendo.

- Ocês num vê que ninguém prantô fruitêra no mato? E ótras fruita? Ponhema, guabiroba, pitanga, jaracatiá, arixicú, vapacary, amora, cambucy, joá, jovéva, cabeça-de-negro, castanha-de-ioçá, figo-manso, caju, banana, coquinho...

- Mandioca tamém é fruita ? – interroga um dos pequenos.

- É... – responde bonachão e sossegado o velho.

- I batata-doce? – perguntou outro.

- Tamêm...

- I batata-roxa?

- Tamem... tamêm... Mais iscuitem!...

Despois o Cuzarruim botô veneno nu’a proção de culidade de fruita, p’ra judiá de nóis; mas Deus, que é muito bão, deferençô u’a das ôtra e criô os passarinho p’ra insiná nóis a quar que não fais mar. O Cuzarruim intãoce inxeu a cabeça de uns home e de u’as muiá, insinô p’re’eles os venenoso e eles viraro fiticêro, esses praga que custumum a botá as coisa-feita nos ôtro.

Eu, na rede, espero ansioso a explicação sobre as diversidades de cores nos homens, mas Nhô Thomé, como todos os contadores de histórias para crianças, parece "não ter fim".

- Mais, cumo ia dizeno, Nosso Sinhô garrô a repará: puis sa as fror, as arve, os alimar, os passarinho, a terra, o céo, tudo tinha cor deferente um dos ôtro, mórde o quê que os home e as muié só havéra de sê preto, tudo preto, sem graça, iguá, pareio, que inté injuava a vista?

Intãoce Deus mandô pubricá p’ro mundo intero, que era o Sítio, que quem fosse se lavá nu’a lagoa, ficava branco. Aquilo foi um corre-corre que Deus nos acuda!

Animou-se o pé-do-fogo! Curiosos os pretos arregalam os olhos e os mulatinhos ficam de "olhos compridos" no velho.

- Os mais ligêro, mais vivo, mais ladino, avuaro p’ra lá. Um bando de homes e muié, na correria, da desparada, p’ra chegá premêro, machucava e matava os que ascançava:

- Os premêro chegado ficaro arvo – são os alamão.

- Os seguinte acharo aua meio sujo – são os branco.

- Os ôtro acharo aua turva – são os moreno.

- Ôtros acharo aua escura, a lagoa tava secano – são os triguêro.

- Ôtros acharo um fiapico d’aua vermeia misturada cum táuá – são os cabocro.

- E os turco? – interrompeu o Dito.

- Isso mêmo... Isso... Eles garraro a brigá e gritá tudo no mermo tempo e é purisso que eles faum tudo trapaiado.

Não me seguro... Solto uma gargalhada gostosa!

- Uéi! Pensei que mecê tava drumino... Tô contano aqui u’as patacuada p’ros crioulinho...

- Continue, Nhô Thomé: estou gostando.

- Intãoce os turco sujaro demais o restico d’aua e levantô um tijuco mais escuro e a aua garrô minguá tanto, que os ôtro que chegaro naquele mingau, sahiro mulato, cumo ocês tão sahino.

- E os ôtro?

- Os ôtro, os priguiçoso, os bobo, os durminhoco que vivia cuchilano no pé-do-fogo e no sór e arguns que num tivero jeito de chegá mórde os da frente, esses quano chegaro acharo sú um tiquinho de umidade, que mar deu p’ra moiarem as sola dos pé e as parma da mão... Arreparem nas mão de Tia Pulicena e de suas mãe...

E os pequenos, de boca aberta, assustados, exclamam uns em seguida aos outros, olhando para as mãos de Tia Polycena que, bondosa e sorridente, as mostra.

- É meeeeemo!!!

- Os que ficaro preto num desanimaro e é purisso que preto num póde vê biquinha d’aua nem tornera, nem reberão, que não vá ligêro lavá as mão, a cara, o pescoço e os pé, que dão sempre na vista.

Depois, Nhô Thomé, chegando o "isqueiro" ao cigarro, tosse e termina, malicioso:

- Ocêis sabe mórde o que que ocês tão sahino tudo mulatinho? É que Chica, Zabé e Chistina custumum lavá rôpa lá no reberão craco do Manéco Portuguêis...

P’ra mim aquela aua é virtuosa...

- Aá... Maria credo! Sinhô tem cada lembrança! – bradou Tia Polycena, rindo, enquanto a Chica, a Zabé e a Christina correm para a cozinha. E, daqui da rede, depois de esplêndidas gargalhadas, ouço-as comentando:

- Sinhô tem cada uma! O moço tá lá na rede que num pode mais de tanto sirri...
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Fonte: Jangada Brasil - (Pires, Cornélio. Conversas ao pé do fogo).
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A criação do Alfabeto

Alfabeto fenício
Com tantos clientes, mercados e ofertas, os comerciantes fenícios só encontraram uma saída para os negócios não se enredarem em um emaranhado de mal-entendidos: registrar em placas de barro cada compra e cada venda.

Na prática, porém, a teoria era inviável: seria preciso passar uma vida inteira aprendendo os significados do complexo sistema de hieróglifos — as centenas de sinais gráficos criados pelos egípcios e usados pelos povos antigos que engatinhavam na arte da escrita. Mas, sempre dispostos a destruir obstáculos, os fenícios não descartaram a idéia e assim nasceu aquela que seria sua maior herança à humanidade: o alfabeto.

Não se tem, infelizmente, a menor idéia de como conseguiram simplificar o processo egípcio a ponto de chegar a um sistema que funcionava com apenas 22 sinais. Na verdade, pouco se sabia sobre a escrita fenícia até o pesquisador francês Pierre Montet descobrir, em 1923, em Biblos, cidade histórica do Líbano, o sarcófago do rei Ahiram — peça decorada com inscrições lidas da direita para a esquerda. Hoje o sarcófago está guardado no Museu Nacional de Beirute.

"Embora aquele texto seja o mais antigo, outras descobertas arqueológicas também são documentos valiosos sobre o alfabeto fenício", nota Haiganuch Sarian, coordenadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, onde, aliás, existe uma reprodução em gesso do famoso sarcófago, feita por volta do século XII a.C.

O fato é que ao se compararem diversas inscrições se constatou que as cidades fenícias podiam falar a mesma língua, mas não a escreviam da mesma maneira. Apesar das pequenas variações, quando em 1750 o inglês John Swinton, encarregado de conservar os arquivos da Universidade de Oxford, resolveu aproveitar os momentos de folga para debruçar-se sobre inscrições fenícias encontradas na Ilha de Chipre, a decifração foi relativamente rápida. É que tanto a língua como a escrita da Fenícia eram muito parecidas com o idioma hebraico. Assim, tornou-se possível traduzir toda a coleção disponível de textos funerários e registros comerciais deixados por aquele povo que, até onde se conhece, não se interessou em produzir nenhum tipo de literatura.

Os fenícios tampouco se interessaram em ensinar sua escrita aos compradores de suas mercadorias. Na verdade, foram os gregos que, ao colonizar cidades fenícias por volta do ano 800 a.C., tomaram a iniciativa de importar o alfabeto para o Ocidente, acrescentando-lhe uma novidade — as vogais. Mais tarde, os povos itálicos igualmente adaptariam aquele primeiro alfabeto, criando ramificações que estão na origem de todas as formas modernas de escrita.

Fonte: Superinteressante
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