quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Teatro de Revista - Parte V

Aracy Cortes estréia sua própria companhia em 1931, na praça Tiradentes.
Praça Tiradentes e o teatro de revista

Centro nervoso dos teatros de revista do Rio de Janeiro, a Praça Tiradentes atraía compositores, músicos e cantores, à procura de emprego para seus talentos, nos muitos palcos iluminados, que faziam a cidade sonhar e cantar.

Nos anos 20 e 30, com a popularização do teatro, em particular as revistas, os “musicais”, o cenário teatral no Rio de Janeiro, antes sem oferecer nenhum conforto e com poucas opções de diversão melhorada, se vitaliza. As casas de espetáculo não somente se multiplicam pelos vários espaços centrais da cidade, como se vão adequando aos novos estratos sociais emergentes, principalmente as classes médias.

Dentro desse contexto, a Praça Tiradentes e seu entorno constituíram-se em um dos privilegiados locais para divulgação e circulação dos artistas – em especial, músicos, compositores e cantores – do período. Além de dos teatros João Caetano, Recreio, São José, Carlos Gomes, entre outros, onde se concentravam aqueles profissionais, bares e leiterias também representavam lugares de atração e de encontro para os que buscavam na praça uma oportunidade para exercer profissionalmente seus talentos.

Os mais procurados eram a Leiteria Dom Pedro II e o Café Carlos Gomes, onde hoje existe o Café Thalia, pontos de reunião de compositores como Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Wilson Batista, Henrique de Almeida, Roberto Martins, Bidê, Marçal, Jorge Faraj, Ataulfo Alves, Antonio Almeida e tantos outros.

Sabiam eles que, a qualquer momento, poderia surgir a chance de um trabalho ser aproveitado em uma das muitas revistas que eram encenadas nos teatros da praça. Custódio Mesquita, Ary Barroso, Sinhô, André Filho, Francisco Matoso já tinham se consagrado por ali e de repente a sorte poderia aparecer. No caso de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, jamais conseguiram participar das revistas, mas acabaram por se encontrar nos bares da praça e formar uma das mais importantes parcerias da música popular brasileira.

A maioria dos cantores e compositores “ainda do time de aspirantes” freqüentava a Praça Tiradentes, uma espécie de vestibular. Depois de famosos e ganhando dinheiro para pagar elegantes alfaiates, já bem-sucedidos, transferiam-se para o Café Nice ou para o Café Papagaio, ao lado da conceituada Confeitaria Colombo.

Enquanto isso não acontecia, a solução era enfrentar as xícaras de café com leite nos botequins da Praça Tiradentes, compor os sambas em suas mesas, com tampo de mármore e pé de ferro, e aguardar que o sucesso os viesse resgatar dali. Ou que o próprio teatro de revista se encarregasse de os fazer famosos.

Fonte: http://teatrobr.blogspot.com/
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terça-feira, 1 de novembro de 2011

A morte do Teatro

Hoje, a classe teatral é realmente uma classe. Ninguém anda só, ou por outra: — a única solidão que conheço, em nossa comunidade, sou eu mesmo. No meio dos meus colegas, eu me sinto só, e tão só, como um Robinson Crusoé sem radinho de pilha. Ao passo que os outros autores, e os atores, e as atrizes, e os contra-regras, e os maquinistas são A CLASSE.

Não vejam, porém, nas minhas palavras, nenhuma insinuação restritiva. Deus me livre. Diria mesmo que considero a minha solidão, não uma virtude, mas uma incapacidade. Bem que eu gostaria de ter um mínimo de vocação associativa. Gostaria de ser ninguém ou, por outra, ser apenas GRUPO, CLASSE, REUNIÃO, ASSEMBLÉIA, DISCURSO!

Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz Cacilda Becker. Ia cumprimentá-la, mas não me atrevi. Como tratá-la?

Outrora, eu diria: — "Olá, Cacilda", ou "Bom dia, Cacilda", ou "Tudo azul, Cacilda?".

Sim, houve um tempo em que Cacilda era Cacilda, simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenógrafo é um misterioso ser impessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim: — "Olá, Comissão", "Olá, Assembléia", "Olá, Passeata".

Dias atrás, ao sair de casa, encontro um ator patrício, à espera de condução. Ergueu o gesto e anunciou: — "Vou à passeata!". Disse eu não sei o que ou, melhor, não disse nada, e ele começou a falar. Juntou gente. Não era um ator, era um Discurso, era uma Comissão, era uma Assembléia.

Dizia "nós" e não "eu". E, de repente, entraram, de roldão, o Vietnã, Mao Tsé-tung e Guevara.

Com mais um pouco, ele sairia por aí virando carros, arrancando paralelepípedos e incendiando a Bolsa (tal como em Paris).

E daí a minha admiração pela CLASSE. Em outra ocasião, houve, em São Paulo, um "seminário de teatro". Era de teatro e, como dramaturgo, lá fui eu. Imaginei que íamos discutir representação, técnicas, décor, luz, textos etc. E, súbito, um alienado qualquer falou em dramaturgia. Quase o lincharam. Um latagão enfiou-lhe o dedo na cara, aos berros:

— "Pensa que nós estamos aqui pra discutir teatro?". O quase-agredido baixou a cabeça, lívido de pusilanimidade. Sentou-se no seu canto e lá ficou, numa solidão de comício de 1° de Maio.

Eis o que eu queria dizer: — entendo, como ninguém, as posições da CLASSE. Ótimo que cada ator, ou atriz, ou diretor, tenha uma ênfase de 14 de Julho, de tomada da Bastilha, de Hino Nacional. A política é a grande linguagem do nosso tempo. E cada qual, para sobreviver, simplesmente existir, precisa ter um toque ideológico. Tudo isso é certo e eu concordo.

Mas estão acontecendo coisas que justificam, a meu ver, uma relativa perplexidade.

Não sei se vocês conhecem o caso de Norma Bengell. O que aconteceu com a famosa atriz tem mais suspense e mistério do que qualquer Hitchcock. Os jornais já comentaram, a TV cobriu, o rádio deu. Vamos aos fatos.

Um jornalista norte-americano resolveu assistir à peça de Norma Bengell. Ouviu dizer que se tratava de atriz notável, um valor internacional, e quis ver. Foi à bilheteria, adquiriu e pagou os ingressos, deixou uma propina e foi à vida. Na hora própria, ou melhor, com meia hora de antecedência, estava na porta do teatro. Soube, então, que não havia espetáculo. Deixou passar três ou quatro dias e voltou à bilheteria. Perguntou, com sotaque: — "Há espetáculo?". Havia. E, novamente, comprou os ingressos, pagou e deixou uma propina. Mais tarde, e antes de sair de casa, telefonou para o teatro. Fez a honrada pergunta: — "Há espetáculo?". Havia. Lá se mandou ele com todos os convidados. Chega e sabe: — não havia espetáculo. A partir de então, passou a desconfiar que há qualquer coisa de errado, não só no teatro, como no próprio Brasil.

Deixou passar mais uns cinco dias. E volta à bilheteria. Pergunta: — "Há espetáculo?". Havia. Pela terceira vez, comprou os ingressos, deu a propina e partiu. Dez minutos antes de abrir o pano, liga para a bilheteria e pergunta: — "Há espetáculo?". Resposta: — "Há". O desgraçado pergunta: — "Posso ir?". E do outro lado: — "Pode vir". O americano junta os convidados e chega ao teatro em cima da hora. E o apunhalam com a notícia: — não havia espetáculo. Desta vez, o que era simples e difusa angústia tornou-se pânico total. O homem e os convidados começaram a achar que o Brasil está louco.

Mas não desistiu. Deixou passar mais dois dias. Ei-lo de volta ao bilheteiro. Desta vez, os convidados o acompanharam, todos mortalmente interessados naquele suspense insuportável. Cada um perguntou: — "Há espetáculo?". A resposta foi uma só: — "Sim, senhor".

Desta feita ninguém foi para casa. Todos se reuniram num boteco próximo e lá ficaram, esperando a hora de subir o pano. Um processo de angústia instalara-se no grupo. E, quando chegou o momento, lá foram eles. Ou por outra: — primeiro, foi um voluntário fazer um reconhecimento. Informaram que havia o espetáculo.

Voltou com a grande notícia: — "Há espetáculo". Todos se juntaram, numa euforia feroz, e foram para a porta do teatro. Não havia espetáculo, simplesmente não havia espetáculo. Não era mais possível nenhuma dúvida ou sofisma. Aqueles sujeitos se convenceram e, para sempre, do seguinte: — não haveria espetáculo nunca mais, nunca mais.

Daqui a duzentos anos, na hora de subir o pano, virá um funcionário avisar: — "Não há espetáculo". O tal americano está convencido de que os nossos atores, as nossas atrizes, não representam, de que os nossos diretores não dirigem, de que os nossos cenógrafos não fazem cenários.

E talvez seja esta a santa verdade. Dizia-se que o Brasil é um país racional. Já não sei, e tenho as minhas dúvidas.

Os atores não representam, e também o romancista não faz romance, nem o poeta, poesia, nem o pintor, pintura, nem o cineasta, filme. Sim, as coisas que devem ser feitas, ninguém as faz. Cabe então a pergunta: — e por quê? Primeiro, porque tanto o teatro, o romance, a poesia, a pintura ou a música vivem de umas tantas ou quantas individualidades fortes, crispadas, miguelangelescas.

E hoje o artista prefere ser ninguém, isto é, ele morre em classes, assembléias, discursos e passeatas.

O artista é um cadáver.

[14/7/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A multidão afrodisíaca

Nunca me esqueço de uma conversa que tive, há tempos, com o Plínio Marcos, o autor mais representado do Brasil. Hoje, é difícil, senão impossível, descobrir um teatro que não tenha o seu nome, na frente, como uma manchete.

Mas eis o que me disse o Plínio Marcos: — "Eu queria representar no Maracanã, para 200 mil pessoas!". (Digo Maracanã, e com que remorso o digo. O Maracanã é muito mais Mário Filho do que Maracanã).

Mas ao ouvir falar em 200 mil pessoas, concordo: — "Boa platéia, boa platéia!". Era uma noite fria. O hálito do mar gelava os edifícios. E, então, o nosso dramaturgo exaltou-se de vez. Sonhava aos berros: — "A minha peça seria a partida principal. E o Fla-Flu, a preliminar".

A hipótese o fascinou. Soluçava: — "O Fla-Flu como preliminar da minha peça!".

Uma semana depois, vou a um sarau de grã-finos.

Súbito, um dos presentes, já bêbedo, começou a falar em morte e, em seguida, na própria morte. Dizia o pau-d'água de luxo que não há ninguém mais exibicionista do que o defunto. O morto quer platéia. E o ideal seria que a nossa morte fosse preliminar do Fla-Flu. E o sujeito, em vez de morrer para meia dúzia de familiares e vizinhos, teria um velório de 200 mil pessoas.

Foi aí que percebi, subitamente, toda a verdade. A nossa utopia mais fascinante é a platéia do Fla-Flu, de Flamengo x Vasco. Sim, o homem moderno gostaria de ser épico, sublime, obsceno e romântico para multidões gigantescas.

E já me ocorre uma objeção contra a preliminar do Fla-Flu. Ei-la: — não há sacadas no Estádio Mário Filho. A superioridade das últimas passeatas sobre as massas do futebol está, exatamente, nas sacadas. Se não entendem o que estou dizendo, passo a explicar.

Hoje, não há mais terça-feira gorda e, repito, a terça-feira gorda morreu até o último vestígio. Mas houve um tempo em que os préstitos paravam a cidade. As pessoas alugavam sacadas para ver as grandes sociedades. Ao passo que, em nosso tempo, as sacadas deixaram de ter uma função estritamente contemplativa e assumiram o seu destino histórico (desculpem esse tom de editorial do Jornal do Brasil).

Sim, as sacadas foram, nas recentes passeatas, a grande revelação. Vocês se lembram. Embaixo, o grande desfile estudantil. Imagino que tenha sido uma surpresa até para os jovens. E, de repente, sem aviso prévio, as sacadas passaram a ter uma ação política, ideológica, libertária como as barricadas. Elas começaram a pensar, a ousar idéias, gestos, frases, sentimentos, berros.

Instantaneamente, todos perceberam que as sacadas eram barricadas aéreas, aladas, superpostas. Lá de cima, chovia papel picado, e mais, listas telefônicas, processos, cadeiras. À distância, tinha-se a impressão visual de que o papel picado era neve de Papai Noel. Nunca me esqueço de um décimo andar que começou a nevar cinzeiros e até baldes.

De mais a mais, as sacadas aplaudem como as frisas e os camarotes da ópera. E os que passam cá embaixo simplesmente passam, e não fazem mais nada senão passar — têm uma sensação de ópera sem lustre, sem torrinhas, sem libreto e sem cafezinhos nos entreatos.

E, de repente, a sacada passou a ter um papel decisivo nas passeatas. É uma excitação a mais, uma espécie de afrodisíaco ideológico, sei lá. Ou por outra: — não se trata bem de ideologia. A sacada traz um tremendo apelo à nossa vaidade. Pode parecer um sentimento menor, quase vil. Nem tanto, nem tanto. A vaidade está inserida na complexidade dos santos, dos heróis, dos mártires.

São centenas, milhares de sacadas que pendem sobre nós e atiram sobre nós listas telefônicas. Visualizem a cena: — o sujeito vem passando. E, súbito, cai-lhe no crânio, baixando do 12o andar, um cinzeiro. O sujeito há de sentir-se perfeitamente sublime.

Mas falo, falo e não digo o essencial. Hoje, queria pingar duas palavras sobre a inteligência nas passeatas.

Reparem: — qualquer um pode falhar, menos o intelectual.

Não houve chuva em nenhuma marcha. Mas, fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto e lá estaria ele, firme, inarredável, inexpugnável. Mas escrevi "intelectual" e cabe uma especificação: — falo do escritor, do romancista, do ensaísta e, numa palavra, daquele que depende sempre de um leitor.

Não se pode pluralizar o leitor. Mesmo o best-seller de 500 mil exemplares é lido por um, fatalmente por um. Por outro lado, o leitor é o ausente, o invisível, o intangível. Portanto, o romancista tem uma inconsolável nostalgia de massas.

Vimos que, no sarau de grã-finos, um pau-d'água queria fazer, da própria morte, a preliminar do Fla-Flu. Duzentas mil pessoas haviam de recolher o seu último suspiro. O dramaturgo Plínio Marcos gostaria de representar no ex-Maracanã para as mesmas 200 mil pessoas. E ninguém escapa à fascinação numérica da multidão.

Mas o escritor não tem possibilidade nenhuma de massas. Bem que gostaria de ser lido, no Estádio Mário Filho, por 200 mil pessoas ao mesmo tempo.

Ora, a passeata o desagrava de sua humilhante solidão. Fui com Raul Brandão, o pintor de igrejas e grã-finas, ver o desfile. E, súbito, o Raul crispa a mão no meu braço: — "Olha lá! Ali". Virei-me, e confesso o meu deslumbramento. Primeiro, vi a tabuleta: — "Intelectuais". Sempre tive a impressão injusta, a impressão iníqua de que há, na cidade, uns sete intelectuais. Ou nove. Vá lá, dez. E eis que, no espaço reservado à "Inteligência", se concentrava uma multidão nunca vista. Jamais me ocorrera a hipótese paranóica de que o Brasil tivesse tantos intelectuais.

Por um momento, eu e o Raul Brandão ficamos só olhando, esbugalhados de assombro. E admiramos a disciplina daqueles finos espíritos. Ninguém se mexia. Todos quietinhos, como se estivessem engradados.

Não larguei mais os intelectuais. O Raul Brandão tremia: — "Viste como o Brasil é inteligente?".

De fato, a evidência numérica estava a demonstrar que somos uma potência espiritual de primeiríssima. Já começava a marcha. Eu e o Raul Brandão fomos ao lado de um romancista. Caminhamos até à rua do Ouvidor de olho no romancista. E em outros romancistas, e ensaístas, e poetas, e cronistas, e sociólogos (cada vez me convencia mais da insuportável inteligência do Brasil).

Cada intelectual marchava como se fosse, no mínimo, um Proust, um Joyce.

Volto ao primeiro romancista. Livrara-se da tirania, numericamente humilhante, de um único leitor. Tinha sua platéia de Fla-Flu. E estava magnetizado pelas sacadas. Um catálogo de telefone, atirado de um 13° andar, podia rachar-lhe o crânio. Morreria feliz. E como transpirava de glória e de esforço físico.

Vi o suor pingando e, repito, o suor chorando na sua cara gorda.

[12/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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