terça-feira, 18 de outubro de 2011

Da linha chinesa

Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo de leite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo.

Eu tenho, se assim posso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora certa. Nunca houve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhas analgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa, excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta de sua dor e, quase diria, saudades de sua acidez.

Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional, começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e constato a sua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.

Levanto-me e vou para o Cabaré dos Bandidos, a dois passos do trabalho. Quando chego na esquina, paro em cima do meio-fio. Fechara o sinal para os pedestres. Ao meu lado estava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensas costeletas, blusão de couro. De propósito, e não sei por que, esperou que o sinal abrisse para os carros. Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou esperando.

E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, desceu do meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estaria testando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirante velocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, sempre de perfil, sem pressa, uma morosidade insolente. A princípio, imaginei: — "Vai morrer".

Se fosse um velho, ou uma senhora, ou alguém de mais de 35 anos, seria fatalmente arrastado, esmagado.

Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — não aconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamente intacto.

Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens, buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarra lancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um desses milagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótese nenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua travessia encantada. A velocidade o poupou como a um santo.

Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovem levaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tempo, por três automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguém talvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficaria lambendo o silêncio.

Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, o jovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério.

Hoje, não. Há, por toda a parte, a "jovem revolução". É um movimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confirmam, é o Carlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se levantam?

Segundo se diz, porque estão insatisfeitos com os valores até então vigentes. Só que tais valores, ninguém os realizou e todos os traíram. E os jovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carros e incendiaram a Bolsa.

Na China, a guarda vermelha caça os inimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao são exterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas.

Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a "jovem revolução" é mundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamente positivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimensões mundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos, também minoritários, afirmam o seguinte: — a "jovem revolução" nada tem de jovem. São precisamente os velhos que a promovem.

E, com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem, já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmente, a sua arteriosclerose.

Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os "mais velhos" resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a própria onipotência?

Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que, insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e só então atravessou a rua. Não foi atropelado porque os veículos também bajulam a "jovem revolução".

Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de teatro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático.

Pára na minha mesa. Diz, gravíssimo: — "Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler". Era um recorte de jornal; explica:  — "É uma entrevista da Cacilda Becker". Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: — "Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem".

Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira divergência.

Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente.

Expliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturidade.

De vez em quando, isto é, de quatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos, fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezessete anos.

Viro-me para o rapaz: — "Queres que eu te admire? E te faça manchetes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud".

Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estava interessado em poesia.

Fiz um alegre escândalo: — "Não é possível! Um estudante de teatro tem que estar interessado em poesia!".

Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estava interessado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo de irritação. Disse-lhe: — "Escuta cá. Se não te interessas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?".

Disse, ofegante da vaidade: — "Sou da linha chinesa".

Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista da minha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapaz algumas observações de minha experiência teatral.

Eis a minha tese: — uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Por exigência contratual, não poderia deixar o palco, nunca. Justifiquei meu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outra grande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferia uma Cacilda dramática, lírica, romântica, e não impressa.

A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder. Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece que eu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — "O mundo é dos jovens". A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada.

O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.

Não era bem assim que eu queria dizer. Faltam-me palavras.

[20/6/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Mazzaropi

Mazzaropi (Amácio Mazzaroppi), cineasta, comediante, ator e cantor, nasceu no bairro da Barra Funda, em São Paulo, SP, em 1912, e faleceu na mesma cidade, em 13/6/1981. Estudou muito pouco e não chegou a terminar o curso ginasial. Quando adolescente, era fã da dupla de atores Genésio e Sebastião de Arruda. Com 15 anos de idade, assistindo a um espetáculo de circo, sem saber como, acabou indo parar nos bastidores e dali terminou trabalhando como pintor de letreiros.

Iniciou a carreira artística apresentando-se em circos, pois logo trocou os pincéis por um personagem vestido de caipira. Foi para o interior e começou a apresentar monólogos cômico-dramáticos.

O sucesso foi imediato, porém os rendimentos eram extremamente baixos. O salário de cerca de 25 mil-réis quase não dava para as despesas diárias. Quando formou sua própria companhia, a situação começou a mudar, tornou-se conhecido e todos os circos começaram a requerer a sua presença.

Em 1946, iniciou-se na Rádio Tupi de São Paulo. Em 1950, estreou na TV, no Canal 6, Tupi do Rio de Janeiro. De 1959 a 1962, apresentou programa na TV Excelsior de São Paulo.

Em 1952, participou de seu primeiro filme. Foi convidado pelo autor de peças para o Teatro Brasileiro de Comédia, Abílio Pereira de Almeida, que ficara deslumbrado ao vê-lo atuar em um programa de televisão, para fazer um teste. Passou e Abílio Pereira dirigiu Mazzaropi no filme Sai da frente. Nascia naquele filme o personagem característico de Mazzaropi, o Jeca, um tipo caipira de andar desengonçado, fala mansa, usando roupas curtas e sujas.

Em 28 anos de carreira fez 31 filmes, entre os quais Chofer de praça, Pedro Malazartes, O vendedor de lingüiças, O corinthiano, Casinha pequenina, Lamparina, uma sátira a Lampião, No paraíso das solteironas, Jeca Tatu, um de seus maiores sucessos, Uma pistola para Djeca, Betão Ronca Ferro, O grande xerife, Um caipira em Bariloche, Portugal... minha saudade, O jeca macumbeiro, Jeca e seu filho preto, O jeca contra o capeta, Um fofoqueiro no céu, A banda das velhas virgens e seu último filme O jeca e a égua milagrosa.

Seus filmes apresentam muita música popular, inclusive sertaneja (e até mesmo um pouco do nascente rock brasileiro). Na década de 1960, gravou alguns discos com sucesso, como a marcha Nhá Carola (Petit), em dupla com Lolita Rodrigues (RGE), e o xótis O azar é festa (Ado Benatti e Zé do Rancho), pela RGE.

Quase todas as atuações de Mazzaroppi como cantor em seus filmes estão reunidas nas coletâneas Os grandes sucessos de Mazzaroppi (RCA Camden, 1968) e Os grandes sucessos de Mazzaroppi, vol. 1 (Intermovies, 1995, em LP e CD, embora sem créditos dos autores das músicas). Jean e Paulo Garfunkel compuseram emsua homenagem a toada Mazzaroppi, gravada por Pena Branca e Xavantinho em 1990.

Faleceu em 1981, no Hospital Albert Einstein, de câncer na medula, deixando como herança, além de seus filmes, uma produtora com tudo funcionando perfeitamente, estúdios, máquinas e filmes virgens, que foi tocada adiante por seus filhos adotivos, Péricles Batista e João Batista de Souza. Deixou parte de sua imensa herança para seus antigos funcionários.

Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha; Dicionário Cravo Albin da MPB.
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Mário Lago

Mário Lago, compositor, ator, poeta, escritor e radialista, nasceu no Rio de Janeiro RJ, em 26/11/1911 e faleceu em 31/5/2002. Filho único do maestro Antônio Lago, foi aluno do Colégio Pedro II de 1923 a 1926, ano em que publicou seu primeiro poema, Revelação, na revista Fon-Fon.

Concluiu o ginasial no Curso Superior de Preparatórios e bacharelou-se em direito em 1933, exercendo a advocacia apenas por três meses. Nesse mesmo ano começou a escrever revistas para teatro - Figa de Guiné e Grande estréia, ambas com Álvaro Pinto.

Como letrista, estreou, em 1935, com Menina, eu sei de uma coisa (com Custódio Mesquita), marcha gravada por Mário Reis, no ano seguinte. Com o mesmo parceiro fez o fox-canção Nada além, sucesso nacional, em 1938, na voz de Orlando Silva, e uma série de músicas compostas especialmente para revistas encenadas pela Companhia Casa de Caboclo e pela Companhia Tró-ló-ló.

De 1938 a 1940, trabalhou como funcionário público, chegando a chefe de seção de estatísticas sociais e culturais do Departamento de Estatística do Estado do Rio de Janeiro; foi nomeado membro do conselho do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mas não tomou posse.

Lançou-se como compositor com a valsa Devolve, gravada por Carlos Galhardo em 1940, ano em que apresentou também, em gravação da dupla Joel e Gaúcho, uma de sua mais famosas composições, Aurora (com Roberto Roberti), sucesso no Carnaval do ano seguinte e que obteve mais tarde repercussão internacional, graças à interpretação de Carmen Miranda, que a incorporou ao seu repertório básico.

Em 1942 estreou como artista de teatro na peça O sábio, encenada pela Companhia Joraci Camargo. Compôs com Ataulfo Alves sambas famosos, como Ai, que saudades da Amélia (1942) e Atire a primeira pedra (1944). Começou a trabalhar em rádio, em 1944, na Pan-Americana, de São Paulo SP, passando desde então por diversas emissoras cariocas e paulistas: Nacional, do Rio de Janeiro (de 1945 a 1948), Mayrink Veiga (1948), Bandeirantes, de São Paulo (1949), e novamente Nacional (1950).

Em 1953 compôs com Chocolate outro grande sucesso, É tão gostoso, seu moço, gravado por Nora Ney. Foi responsável pela produção de vários programas e novelas, como Lendas do Mundo, Romance Kolynos e a novela Presídio de mulheres, irradiada durante cinco anos. Em 1951 produziu na Rádio Nacional o programa Doutor Infezulino e mais tarde criou a figura do "Jacó de uma palavra só", no programa Largo da Harmonia, que se tornou bastante conhecido.

Estreou na televisão no programa Câmera Um, na TV-Rio, em 1954. Como ator, em 1966 foi contratado peia TV Globo, na qual trabalhou em várias novelas, como Cuca legal, Pecado capital, O casarão e Brilhante, numa carreira de mais de 30 anos. Publicou, em 1975, pela Editora Civilização Brasileira, uma obra de pesquisa folclórica intitulada Chico Nunes das Alagoas. Além de Orlando Silva e Carlos Galhardo, teve suas músicas gravadas por Francisco Alves, Ataulfo Alves, Nora Ney, Jorge Goulart e Deo.

Publicou os livros: Na rolança do tempo (1976) e no ano seguinte a seqüência, Bagaço de beira-estrada, ambos pela Editora Civilização Brasileira, Coleção Tempo e Contratempo, Rio de Janeiro; e Meia porção de sarapatel (1986), Editora Rebento. Em 1991, seus familiares publicaram o livro Segredos de família, homenagem aos seus 80 anos de idade.

Em 1997 foi publicada sua biografia: Mário Lago - Boêmia e política, de autoria de Mônica Veloso, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. No mesmo no, Gilberto Gil homenageou-o com o lançamento da música O mar e o lago (letra de 1985). Houve ainda a estréia do espetáculo Causos e canções de Mário Lago, no Teatro Café Pequeno, no Rio de Janeiro, dirigido por Mário Lago Filho.

Mário foi contratado e atuou por mais de 30 anos na Globo - em mais de 30 telenovelas -, e recebeu várias vezes o prêmio de Melhor Ator. Também foi ator de cinema, em mais de 20 filmes. Representou no teatro até o fim da sua longa vida - subiu pela última vez no palco em janeiro de 2002. Nunca deixou de compor - somou cerca de 200 músicas gravadas -, nem saiu do Partido Comunista.

Em sua última entrevista ao Jornal do Brasil, declarou: "Vivi. Essa é a coisa principal que fiz".

Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira.
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