segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Caça-níqueis

Passo na redação e apanho um bilhete de Playboy, a revista de nus. Viro, reviro o envelope. Ai de nós, ai de nós!

Tudo que tenha um vago sotaque norte-americano já exala o terror.

Finalmente, tomo coragem e abro o envelope. Era uma meia dúzia de linhas. Simplesmente, o correspondente de Playboy queria, de mim, um favor de colega para colega.

Pedia, em suma, informações urgentes sobre "Palhares", o brasileiro ilustre que surpreendera o país com seus métodos originais e revolucionários de educação sexual. Playboy queria biografia, o nome completo, idade, estado civil etc. etc.

Li e reli, na mais absurda das perplexidades.

Eis o que me perguntei: — "Palhares, que Palhares?".

Por um desses lapsos fatais, não me lembrava de ter conhecido, aqui ou alhures, em passado recente ou longínquo, nenhum Palhares. Seria Tavares? Eu conhecia um Tavares. Mas esse Palhares que, de repente, invadia a minha vida era o desconhecido total, jamais visto, jamais cumprimentado. O bilhete dava, embaixo, no canto da página, um número de telefone. Liguei. Por sorte, encontrei o diabo do correspondente.

Disse-lhe a feia e humilhante verdade. Não conhecia nenhum Palhares, vivo ou morto. O colega internacional não queria acreditar. Mas como, se, no momento, o Palhares é o nome obsessivo, a figura obrigatória? Só se falava no Palhares.

Toda a cidade repetia os feitos do Palhares, as anedotas do Palhares, as piadas do Palhares.

Saí do telefone humilhadíssimo. Numa amargura medonha, pensava na idéia que a Playboy faria de mim, o único brasileiro que desconhecia o Palhares!

Vejam como são as coisas. Horas depois, estou, num boteco, tomando cafezinho em pé, quando se irradia uma luz de minhas profundezas e eu descubro a verdade jamais imaginada. O misterioso Palhares era simplesmente o Palhares. Eu o conhecia, sim, e de longa data; e mais: — eu o vira de calças curtas, roubando goiabas. Coisa de espantar:

— o Palhares era um sobrenome. O seu nome por extenso é uma maciça impossibilidade. Ele próprio o diz: — "Desde garotinho, sempre fui Palhares, e só Palhares!".

Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nosso herói é conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna, narrei o seu maior feito. Se vocês não se lembram, posso repetir. Eis o episódio: — certa vez, o Palhares cruza com a cunhada no corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo no pescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha.

Não sei por inconfidência de quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palhares passava, havia o cochicho estarrecido: — "O que não respeita nem as cunhadas!".

Vivemos uma época tão surpreendente que a vil audácia foi de uma prodigiosa e fulminante eficácia promocional. Todas as portas se abriram para o canalha. No emprego, por coincidência ou não, o chefe aumentou-lhe o ordenado. Certa vez, fui a um aniversário. Estava lá o Palhares. Tão cínico que, a um canto, perto da janela, cheirava uma camélia. Não era camélia, mas vá lá. E lembro-me que uma senhora gorda, abanando-se com uma Revista do Rádio, suspirava: — "Adoro o Palhares!". Dizia isso e tinha, no pescoço, um colar de brotoejas. Em outra ocasião, entrei no Antonio's e o vejo com um vasto embrulho debaixo do braço. Pergunto: — "Que é isso?". E ele, com ardente seriedade: — "O Cristo!". Em seguida, desembrulha e mostra o retrato de Guevara.

Lá estava o guerrilheiro, de boina, a cara virilizada por uma barba crespa. Guevara era o Cristo.

Chamo o canalha para um canto. Digo-lhe: — "Rapaz, a piada tem limite". Ele refaz o embrulho, amarra o barbante e se justifica: — "A cruz não dá mais nada. É preciso, de vez em quando, mudar de Cristo". Olha para os lados e baixa a voz: — "Este retrato é uma mina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento. Tiro e queda. Vai por mim: — é o verdadeiro Cristo. Esse negócio de amar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada". E, no fim, deu-me o conselho:

— "Você tem de ser socialista. É o golpe".

Mas nunca me ocorrera, nem como hipótese suicida, que, um dia, o Palhares viesse a explodir como o revolucionário da educação sexual.

Bati o telefone: — "Escuta, Palhares. Que negócio é esse de professor? E de educação sexual ainda por cima?". Fiz-lhe mesmo a pergunta contundente: — "Desde quando deixaste de ser analfabeto?".

Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável: — não reage. Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de um luminoso impudor: — "Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Não leio nem manchete".

Fiz a pergunta impaciente: — "Mas qual é o teu colégio?".

Ao ouvir falar em colégio, Palhares soltou uma gargalhada de se ouvir no fim da rua: — "Colégio? Me achas com cara de colégio?".

Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava: — "Faço educação sexual a domicílio. Percebeste? A domicílio".

Em todas as suas palavras, inflexões, pontos de vista, sentia-se o bem-sucedido total: — "Podes chamar-me de analfabeto. E eu sou analfabeto com muita honra. Mas escuta: — ninguém precisa do bê-a-bá para ensinar educação sexual". Conversamos duas horas.

Afirma o Palhares que nós tivemos sorte de nascer na presente época. "Os novos tempos são tão gigantescos que a gente pode dizer tudo, fazer tudo, pensar tudo."

Quase me despedindo, fiz uma amarga ironia: — "Resumindo, qual é o conselho que você me dá?".

Fingiu modéstia: — "Quem sou eu pra te dar conselhos?".

Insisti. E, então, o canalha tira um pigarro, coloca a voz e diz, gravemente: — "Seja o ex-católico. No momento, é o que dá mais. O ex-católico tem todos os trunfos na mão".

Aquilo deu-me um novo e agudo interesse pela conversa. Eu já queria crer que certas coisas, certas verdades, exigem um canalha para dizê-las.

Pergunto: — "Que história é essa de ex-católico?".

O nosso Palhares foi preciso: — "É o seguinte. Repara. Há uma colossal maioria católica. Não há? É o óbvio". E continuou. Segundo ele, não adianta nada ser "maioria". Quem tem o poder de decisão, e o exerce furiosamente, é uma pequena minoria de ex-católicos. O Palhares cita como exemplos de ex-católicos o dr. Alceu e d. Hélder. Ah, os minoritários como influem, como decidem, como agitam. E a maioria católica está aí, por todo o Brasil, aturdida, acuada, humilhada.

Ouvi o Palhares sem interrompê-lo.

Terminou com uma profecia jucunda: "Toma nota. Escreve o que te estou dizendo. Ainda seremos o maior povo ex-católico do mundo".

[19/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O cinzeiro azul

O homem, para justificar a si mesmo, ou para justificar a mulher, inventou a máxima: a mulher só engana o homem por causa dele.

Que seja ou que não seja. Não estamos aqui para desbaratinar os casos de amor dos outros.

O fato é que estes dois estavam brigados. Ela tinha enveredado aí pelo lado alegre da vida, enfiando o braço noutro braço, em passeios e namoros que um dia vieram a ser do conhecimento dele. Brigaram. Lágrimas de parte a parte: as dela de arrependimento, as dele de sentimento.

Mas não quis perdoar. Um recente samba de Jorge Veiga diz assim: "O que você fez está feito, não me sinto no direito de lhe conceder perdão". O samba é bom e não sabemos se ele o conhecia. Sabemos — isto sim — que agiu como está no samba. E cada um foi para seu lado, depois de alguns anos lado a lado nas coisas de amor.

Passou a primeira semana, e ele firme. Não telefonava, não passava nos lugares onde ela pudesse estar, evitava falar no assunto mesmo com os amigos mais íntimos. Passou um mês e ele legal. Fazia força para convencer a si mesmo que já estava passando a fase aguda da dor de cotovelo, cujo único remédio é o tempo... e o tempo, irmãos, é remédio de laboratório homeopático.

Uma tarde o telefone tocou. Era ela. Fingimento de parte a parte e vem a pergunta que ele não queria ouvir: "Você sente muito a minha falta?" Engoliu em seco e não mentiu:

— Vamos que eu tivesse ganho, quando tinha menos 10 anos, um cinzeirinho azul. Durante todo esse tempo, o cinzeirinho azul esteve na minha mesa de cabeceira. Agora o cinzeirinho azul quebrou. Eu vou sentir falta dele. Pois, se até com um objeto a gente se acostuma, como é que eu não vou sentir a falta de quem era o meu amor?

Ela gostou de ouvir aquilo e, timidamente, como as mulheres fazem sempre, propôs a reconciliação. Ele agüentou firme, explicando que, depois de partido, o cinzeirinho azul estava acabado. Não adiantava colar, porque já não seria a mesma coisa.

Foi então que ela disse: "Mas vamos que você sentisse falta do cinzeiro porque ele sumiu, alguém roubou, ou qualquer coisa assim. Agora por uma coincidência qualquer, você torna a encontrar o cinzeirinho azul".

...e o bestalhão voltou.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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A vaca e o câmbio

Um começo de tumulto na Praça Mauá. Veio de lá um camarada correndo, a gritar: "Tem uma vaca na Praça Mauá, tem uma vaca na Praça Mauá".

Primo Altamirando, que trafegava nas proximidades, olhou espantado para o cara e comentou: "Mas isto não é novidade. Lá sempre tem". Mas o cara explicou que não era isso não. Era vaca mesmo, de verdade.

Aí correu todo mundo, é lógico: uma vaca assim solta, qualquer um quer, ainda mais agora, que o preço do leite subiu tanto que uma vaca, praticamente, não é mais um bicho... é um cofre.

Corre daqui, corre dali, cercaram a vaca. Ela parada no meio do asfalto e a turma cercando, mas ninguém com peito bastante para agarrar a bicha. A expectativa era grande. A vaca pulara de um vagão, no cais do porto. Ia ser embarcada num navio da Costeira, para um Estado do Nordeste. Devem ter avisado à vaca que navio da Costeira é aquela miséria, joga mais que o time do Santos. Devem ter avisado porque a vaca se mandou. Na hora de embarcar, pulou do vagão e saiu correndo em direção à Praça Mauá.

Agora estava ali, calma, olhando em volta, procurando um jeito de continuar seu passeio. O povo em volta, cercando. Apareceu um voluntário de vaca. Foi se aproximando devagarinho. A vaca olhando. O voluntário de vaca foi se chegando, foi se chegando e... pimba... pulou pra abraçar a vaca.

Vaca, porém honesta. Não é qualquer um que me abraça — deve ter pensado a bichinha, pois desviou legal e saiu correndo de novo. Já aí, havia mulheres nervosas, dando gritinhos, homens menos afeitos à intimidade com o gado vacum, a se esconderem atrás dos postes, apavorados. A vaca veio vindo, deu a volta na Praça Mauá e entrou na Avenida Rio Branco, que nem o lotação "Mauá-Abolição".

Foi quando se deu o imprevisto. Ao invés de continuar pela Avenida abaixo, como faz o referido lotação, a vaca parou em frente ao número 25, onde funciona uma casa de câmbio. Parou, olhou a vitrina e entrou na casa de câmbio. Todos correram para ver o que ela ia fazer.

Foi chato. Ela fez exatamente aquilo que vaca faz no pasto, pois vaca nunca foi ao "toilette".

Risada geral. A vaca saiu lá de dentro da casa de câmbio mais furiosa ainda. Foi um custo para apanharem a coitada.

Veio gente com cordas, veio um especialista em vacas, um cavalheiro que se agarrou com ela e só soltou quando ela já estava mais amarrada que homem solteiro depois que diz sim, ao pé do altar.

Os grupos foram se desfazendo. Todos comentando a fúria da vaca. Por que teria saído da casa de câmbio tão enfezada?

Vai ver, foi o preço do dólar.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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