sábado, 8 de outubro de 2011

O cachorro atropelado

Lembro-me de uma crônica que li não sei onde, nem sei quando. Escapa-me também o nome do autor. Se não me engano, era brasileiro. Não, não era brasileiro. E o assunto era a influência da distância nas leis da emoção.

Vejamos o que dizia o cronista. Dizia que um atropelamento de cachorro na nossa porta, pelo fato de ser na nossa porta, teria mais apelo emocional do que Hiroshima.

Sabemos que, em Hiroshima, morreu um mundo e nasceu outro. A criança de lá passou a ser cancerosa antes do parto. Mas há entre nós e Hiroshima, entre nós e Nagasaki, toda uma distância infinita, espectral. Sem contar, além da distância geográfica, a distância auditiva da língua.

Ao passo que o cachorro é atropelado nas nossas barbas traumatizadas. E mais: — nós o conhecíamos de vista, de cumprimento. Na época própria, víamos o brioso vira-lata atropelar as cachorras locais. Em várias oportunidades, ele lambera as nossas botas. E, além disso, vimos tudo. Vimos quando o automóvel o pisou. Vimos também os arrancos triunfais do cachorro atropelado.

Portanto, essa proximidade valorizou o fato, confere ao fato uma densidade insuportável. A morte do simples vira-lata dá-nos uma relação direta com a catástrofe. Ao passo que Hiroshima, ou o Vietnã, tem, como catástrofe, o defeito da distância.

Não sei se estou dizendo o óbvio. Não importa. Toda a história humana ensina que só os profetas enxergam o óbvio.

Seja como for, achei a crônica citada de uma sagacidade deliciosa. Muito tempo depois, sinto, na própria carne e na própria alma, a influência da distância nas leis da emoção.

Imaginem que recebo de Natal este súbito e inapelável telegrama: — "Sua Peça 'Toda Nudez' Quase Pronta, Elenco Ensaiando, Artistas Unidos Grupo Vencedor Festival Pascoal, Censura Proíbe Em Todo Território Nacional. Que Podemos Fazer? Abraços etc. etc.".

Este o telegrama. A princípio, a proibição me pareceu espantosamente irreal. Toda nudez será castigada foi levada em 1965 no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Não sofreu o corte de uma vírgula. Ao terminar o ensaio geral, os seus três censores, inclusive Ayres de Andrade, aplaudiram, de pé, o texto e o espetáculo. E por que, e a troco de que, de repente, vem a censura e impõe uma interdição bestial? Só vejo duas hipóteses: — ou é má-fé cínica, ou obtusidade córnea, ou ambas.

Ora, eu sou o sujeito mais próximo de mim mesmo e de minha obra. E a coisa repercutiu brutalmente em mim.

Se me perguntarem qual foi a minha primeira reação, eu diria: — a vergonha de ser brasileiro. Tive, sim, uma vergonha total e como que o arrependimento de ter nascido aqui. Estou, porém, diante do fato consumado. O telegrama faz a pergunta, sem lhe achar a resposta: — "Que faremos?".

Sim, que faremos? Agora, vou ficar esperando um manifesto, uma passeata e uma greve. Tenho vinte e tantos anos de vida autoral e sofri seis interdições (cinco peças e um romance). Por uma singular coincidência, nas seis oportunidades, não mereci a solidariedade de ninguém. Álvaro Lins, em plena atividade crítica, limitou-se a dizer: — "Nelson Rodrigues deixou de ser um problema literário. É um caso de polícia".

Dr. Alceu hipotecou a sua veemente solidariedade à polícia.

No fundo, os nossos intelectuais achavam que eu era mesmo obsceno e que devia ser mesmo interditado.

Mas as coisas mudaram. E, se as coisas não mudaram, mudou o dr. Alceu. E espero um artigo do dr. Alceu. Todo santo dia hei de comprar o Jornal do Brasil. Quero ver o nosso Tristão de Athayde, com a sua nobilíssima indignação, fulminar o crime contra a inteligência. E também penso na classe teatral, que é a minha. Vocês não são de teatro, nem sabem nada. Mas a classe teatral é um comício nato.

Nas suas assembléias, há iras sublimes. Pois eu gostaria de ver as indignações da classe teatral salvando a minha peça.

Recentemente, entrei numa greve dos meus colegas. Levei-lhes a minha comovida solidariedade. E mais: — sentei-me na escadaria do Teatro Municipal. Embora não visse em tal ato nenhum heroísmo, sentei-me com os outros. Estavam todos indignados; hipotequei-lhes a minha indignação. O motivo da greve era também a interdição de uma peça, ou duas, não me lembro mais.

Em seguida, houve uma nova greve. Por que, já não sei. A minha solidariedade tem um automatismo inexorável. Juntei-me aos colegas. Todos os teatros deviam cerrar suas portas. E só um permaneceu escandalosamente aberto: — o da sra. Eva Todor.

Imediatamente, despachou-se um piquete aguerrido. A atriz estava no palco representando e ganhando o pão. Impediram-na de representar e de ganhar o pão.

Vejam vocês como há, de autor para autor, dessemelhanças irritantes de sorte. A classe trata os outros a pires de leite. E eu, mais interditado do que qualquer um, sempre estive em crudelíssima solidão. Alguém dirá que falo assim por despeito, por ressentimento. Não nego. Sou despeitado e sou ressentido. Mas tenho atenuantes.

Nas minhas seis interdições, ninguém impediu a sra. Eva Todor de trabalhar. Quero crer que chegou o grande momento. Interditaram Toda nudez será castigada. É hora, pois, de mandar a sra. Eva Todor devolver o dinheiro das entradas.

Realmente, mais que uma assembléia da classe, mais do que uma greve, estou interessado numa passeata. Sim, um desfile contra a interdição de Toda nudez será castigada.

Há, em qualquer brasileiro, uma alma de cachorro de batalhão. Passa o batalhão e o cachorro vai atrás. Do mesmo modo, o brasileiro adere a qualquer passeata. Aí está um traço do caráter nacional.

Mas já não sei se quero mesmo a passeata. Em passado recente, houve um desfile patético. Cem, duzentos cartazes dando morras ao imperialismo. O diabo é que, em vez de morte, estava lá escrito "muerte". Imaginem se há a passeata em favor da minha peça.

Cem, duzentos cartazes dando morras à censura em castelhano. Em tal caso, eu teria também vergonha de ser brasileiro.

[13/5/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Alienação

Faço anos dia 23 de agosto e confesso: — tenho, como o José Lino Grünewald, a alma do aniversariante. Nos meus sete, oito anos, minha família nem sempre teve uma fatia de pão com um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Não importa. Mesmo sem uma mísera cocada, sem uma mísera mãe-benta, eu celebrava, sozinho, a feliz data.

E, hoje, quero crer que o aniversário apagado e triste é mais lindo. Também o José Lino Grünewald sabe fazer anos como ninguém, e repito: — é um aniversariante vocacional.

Muito bem. Fiz esta introdução para dizer o seguinte: — lembro-me, com implacável nitidez, de cada dia 23 de agosto de minha vida.

Dirão vocês que dou muita importância a meu próprio aniversário. Exato, exato. Dou, sim, uma importância capital. Todavia, há um 23 de agosto que me doeu com uma pungência mais aguda. E isso por dois motivos: — primeiro, porque eu fazia anos; e, segundo, porque era véspera de um suicídio histórico. Vocês já perceberam que falo de Getúlio.

Um suicida não se improvisa, assim como não se improvisa o artista, o poeta, o mágico, o mímico, o arquiteto. Portanto, teremos de antedatar a tragédia getuliana. Não sei se me entendem e tentarei explicar. O suicídio é anterior a si mesmo. Começa muito antes e direi mesmo: — começa no berço. Não sei se cabe falar em gesto nato.

Ao vir ao mundo, o homem traz um repertório de atos facultativos e de atos obrigatórios. Quando Getúlio nasceu, o tiro no peito estava inserido entre seus gestos obrigatórios.

Em 30, ao assumir o poder, já era o suicida. E, dia após dia, foi ainda e sempre o suicida. Até que, já aos setenta anos ou pouco mais, matou-se. Mas atirou no peito. Não estourou os miolos, como o faria um suicida banal. Quis preservar o rosto, o último rosto, para a história, para a lenda. O povo quer olhar a cara do líder morto.

Mas o que eu queria dizer é o seguinte: — Getúlio foi o último grande enterro do Brasil. Parou a cidade, parou o Brasil.

Lembro-me de uma crioula, de gloriosas ventas raciais, que desmaiou junto ao caixão. Foi levada, arrastada por dois ou três. Que crioula, gorda como a babá de ...E o vento levou, retinta como a babá de ...E o vento levou, que crioula, repito, desmaiaria por um morto contemporâneo?

Somos 80 milhões. Examinemos, um por um, os 80 milhões. Façamos um censo de possíveis defuntos. E chegaremos à conclusão de que ninguém, no momento, justificaria um grande enterro. Por isso, falo na solidão do Brasil. Não há a perspectiva do "grande enterro" porque não há "grande homem" para enterrar.

Parece enfático falar em "solidão do Brasil". Mas é a límpida e inapelável verdade. E como é árida a época que não consegue dar um defunto monumental!

De repente, entendemos o mistério brasileiro. Somos uma rala, uma tênue orla litorânea. O que existe, fora de nós, é uma imensa sibéria florestal. E nunca o deserto siberiano daria um radiante cadáver.

Aqui, passo às nossas esquerdas. Sou uma flor de obsessão e, nos meus últimos escritos, tenho insistido no papel e destino das esquerdas brasileiras. Elas não faziam nada, senão beber no Antonio's, dourar-se na praia e rabiscar nos suplementos dominicais. Até que uma data universal deu-lhes a oportunidade sonhada: — o 1º de maio. As esquerdas se prepararam para entoar o que se chama, em ópera, o dó de peito.

No mesmo dia 1º de maio, o Estádio Mário Filho apresentava um Flamengo x Vasco. O paralelo pode ser feito nos seguintes termos: — o jogo trouxe, em seu ventre, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E ao comício compareceram apenas os oradores. Minto. Em verdade, compareceram alguns familiares dos oradores. E o comício foi desses fatos íntimos, confidencialíssimos.

O pior vocês não sabem. O pior é que, em pleno e furioso ato cívico, dois ou três oradores ligaram o rádio de pilha e ficaram ouvindo o jogo. Travou-se, ali, um duelo inesperado entre as duas retóricas: — de um lado, a libertária; de outro lado, a futebolística.

Enquanto em São Cristóvão o orador fazia anti-imperialismo, no Mário Filho o locutor tratava de botinadas.

No dia seguinte, encontro-me com um esquerdista feroz. Numa cava depressão, gemeu: — "Como pode? Como pode?". Ele não entendia os quinze gatos pingados do comício e as 200 mil pessoas do jogo. E, por uma boa meia hora, rosnou de impotência e frustração. Por fim, despediu-se.

Mas estava de pé o problema, a saber: — por que o povo ignora as esquerdas? Pelo simples motivo de que as esquerdas também ignoram o povo. Não se conhece, na Terra, caso mais prodigioso de alienação.

Por outro lado, volto ao dado fúnebre, que me parece decisivo: — onde não há perspectiva de "grande enterro", também não é viável o "grande comício". E vêm as esquerdas e começam a falar do Vietnã, de Cuba, dos Estados Unidos.

Se o problema é racismo, falam do norte-americano. E não há uma palavra, ou um palavrão, em favor do negro brasileiro. Simplesmente, o nosso negro não existe. Poderão objetar que não há racismo em nosso país. Como não há, se nunca vimos um negro de casaca?

Mas a fatal alienação das esquerdas começa na própria língua. Já citei uma passeata recente.

Vários cartazes davam morras ao imperialismo. Mas a palavra escrita, a piche, era "Muerte". Não morte, e sim "Muerte". Os gaiatos odiavam em castelhano, queriam matar em castelhano. Punham sotaque até nos cartazes. Claro que ali se insinua a influência cubana.

Mas Cuba é uma Paquetá ou, se preferirem outra imagem, eu diria que é uma pulga e o Brasil um fabuloso elefante geográfico. A troco de que a pulga vai montar no elefante? Os gringos das nossas esquerdas representam o anti-Brasil, a negação do Brasil. As esquerdas não entendem o povo, nem o povo as entende.

[10/5/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Bravos, bravíssimos!

Eu me lembro do gráfico Arlindo, que foi, há trinta anos ou mais, chefe de oficina de O Globo. Jamais poderei esquecê-lo. Imaginem vocês que o velho Arlindo não bebia café na xícara, como qualquer um de nós. Não. Derramava o café no pires e bebia do próprio pires. E nada descreve a volúpia com que o fazia. Parecia um desses prazeres jamais concebidos.

Aquilo me impressionava muito. Eis o que me perguntava: — por que o pires e não a xícara?

Até que, na madrugada de ontem, resolvi fazer uma experiência. A úlcera começou a doer e fui apanhar leite na geladeira. E, como o velho e finado Arlindo, bebi um pires de leite. Por uma dessas ingenuidades fatais, eu estava esperando um efeito mágico.

Mas vejam vocês: — o pires não dá nenhum sabor encantado e repito: — o leite em pires, copo ou xícara é a mesma bebida hedionda.

E, então, meio frustrado, lá vou eu para a janela da madrugada. Súbito, começo a pensar no meu ex-inimigo Paulo Francis.

Já nos chamamos de "palhaços", de "analfabetos", de "burros". Lembro-me da estréia de minha peça Perdoa-me por me traíres.

Era, ali, no Municipal. Ao baixar o pano sobre o terceiro ato, a platéia explodiu. Metade vaiando, metade aplaudindo. O então vereador Wilson Leite Passos puxou um revólver e queria fuzilar o texto. (O patético, ou sublime, como queiram, é que eu representei. Foi, da minha parte, um gesto suicida. Eu sabia que era o pior ator do mundo, o pior. Mas como se tratava de uma peça desesperada, quis ser solidário com a obra, o produtor, o diretor e os artistas. E representei. O prodigioso é que a platéia falava mais do que o elenco. Na primeira fila estava uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Passou os três atos me chamando de "tarado". E outras senhoras, e outros cavalheiros, me xingavam, o tempo todo, em cena aberta).

E, no final, tive a vaia e tive a apoteose. Do palco, vi grã-finas subindo nas cadeiras, aos uivos, contra e a favor. E estava lá o Paulo Francis, com o Edmundo Moniz. Berrava para mim: — "Burro! Burro!". Contam-me que o Edmundo Moniz protestava: — "Não faça isso! Não faça isso!".

Nada me ofendeu, e digo mais: — achei a vaia estimulante. Nem me impressionou o vereador, de revólver, querendo dar tiros como um Tom Mix. Mas sofri quando o crítico me chamou de "burro".

Um mês depois, caí doente. Circulou que fora um derrame e que eu estava paralítico de um lado, sei lá. E, então, o Paulo Francis não pensou duas vezes: — foi para a redação e escreveu uma página crispada de ternura. Foi aí que, subitamente, descobri tudo. Era um pobre ser, de intensa, desesperada fragilidade. O meu caso clínico não foi trombose, nem eu estava hemiplégico. Seja como for, tive a visão de sua dilacerada, envergonhadíssima bondade. Era um falso cínico.

Mas ainda assim, passamos anos sem um cumprimento, sem um "olá", sem um aperto de mão. Até que, no aniversário do José Lino Grünewald, o anfitrião ofereceu-nos uma noite de ópera. Houve um desfile dos divos de velhas gerações. Foi uma rajada de carusos, de muros, lauri volpi, totti dal monte, schipa, tita rufo.

E, súbito, o Paulo Francis começa a falar comigo. O teatro dramático nos separou e o teatro lírico nos uniu. Eu, o Paulo Francis e o José Lino Grünewald somos loucos por ópera.

Foi esta a última vez que o vi. Depois do aniversário, ele desapareceu. E, pouco a pouco, a sua ausência foi adquirindo uma densidade, uma tensão insuportável. Houve um momento em que me ocorreu a seguinte e fascinante hipótese: — "O Paulo Francis entrou para um convento".

Imaginem: — o Paulo Francis franciscano, beneditino ou jesuíta. Ontem, porém, almoço com o José Lino Grünewald. E o meu amigo solta a notícia: — "O Paulo Francis chegou". Estava viajando.

Não era absurda a idéia do convento. Viajar é também uma forma de solidão. Pergunto ao José Lino: — "E que tal?".

O Paulo Francis andara pela Europa e dera um pulo aos Estados Unidos. Não sei de tudo que ele viu e ouviu. Só sei de duas coisas que o assombraram: — primeiro, a liberdade americana. Nos Estados Unidos, tudo se diz e tudo se faz. A liberdade estourou todos os limites. Outra coisa que o impressionou: a Alemanha Oriental. Na Alemanha Oriental, não entram nem Sartre, nem Le Monde. Segundo as autoridades comunistas, o povo, lá, ainda não está preparado para ler Le Monde.

Quanto a Sartre, não sei por que expulsaram os seus textos. Mas o que importa é o simples fato: — a Alemanha Oriental abomina Sartre. E, como uma ditadura analfabeta, há de perseguir outros autores, e livros, e idéias, e jornais.

Mas imagino que, ao desembarcar no Galeão, o Paulo Francis tenha feito a pergunta dramática: — "E aqui? E aqui?". Como se comportara o Brasil na sua ausência? Como agiram e reagiram os nossos intelectuais? E qual foi a ação das esquerdas? Se eu estivesse no aeroporto, contaria o histórico comício de 1º de maio, no campo de São Cristóvão.

Foi um ato longamente concebido do e amorosamente eecutado. Tratando-se do "Dia so Trabalhador", as esquerdas aproveitaram a data univeral para uma demonstração de força.

O d. Hélder fala muito em "conscientização". Outros exaltam "a maturidade política" do nosso povo. E há, por todo o Brasil, um furioso ímpeto libertário. Portanto, o comício do campo de São Cristóvão devia dar, segundo os cálculos mais modestos, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E, de fato, a partir das dez horas da manhã, hordas ululantes começavam a varar a cidade. Da Zona Sul, Norte e Centro, partiam multidões ventando fogo. E havia, também, uma tempestade de bandeiras. Um turista que por aqui passasse e visse esse vendaval humano havia de imaginar que começava, aqui, outra revolução francesa. D. Hélder diria que era a "conscientização". E era a "conscientização".

Só que houve um ligeiro desvio de itinerário. Em vez de ir para o campo de São Cristóvão, o povo rumava para o Estádio Mário Filho.

Imagino a perplexidade amarga do Paulo Francis: — "E o comício?".

Diria eu: — "Houve o comício". Insistiria o Paulo Francis: — "Não foi ninguém?".

Resposta: — "Foi. Compareceram os oradores". Se o Paulo Francis perguntasse — "E o público?" — eu responderia que os oradores eram oradores e público.

Faço uma idéia do imenso e divertido espanto do meu ex-inimigo. Desembarca no Brasil e sabe de um orador que faz o discurso e urra "bravos", "bravíssimo", para a própria retórica.

[9/5/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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