sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A vingança do morto


A história que passamos a contar e que desentranhamos de uma velha crônica, já rendada pela traça, remonta ao primeiro período da colonização do Brasil. Teve por teatro a velha capitania de Pernambuco, e começa em tempos da governação-geral de Manuel Teles Barreto.

* * *

Lopo de Vila-Flor era o que, com toda a franqueza e sem cerimônia, se pode chamar um refinadíssimo patife.

Bêbado, jogador, devasso, desordeiro e mesmo ladrão, quando se lhe oferecia ocasião de defraudar o alheio, o governo de Portugal viu-se obrigado a deportá-lo para o Brasil, não obstante ser ele filho espúrio de um dos condes de Vila-Flor, gente que surgia na primeira linha da nobreza lusitana.

Não eram raros os indivíduos desse quilate, entre os fidalgos do século XVI. Os extensos privilégios de que gozava a nobreza, a noção errônea e perniciosa do demérito trazido pelo trabalho, a divisão social em classes, a frouxidão da justiça, embaraçada e desvirtuada pela incompreensão do princípio de eqüidade, uma pesada ignorância, fanatismo e preconceitos de toda a casta, influíam tão diretamente na depreciação do caráter, que até príncipes herdeiros presuntivos da Coroa, como esse filho de Henrique IV de Inglaterra, e outros, figuram às vezes na tradição como heróis de orgias, onde da bebedeira se passava ao roubo e ao homicídio, sendo em seguida tudo isso lavado da consciência por uma rica dotação a um convento ou uma peregrinação aos grandes centros de devoção cristã – Jerusalém, Roma, Santiago, etc.

Ora, nestes casos estava o herói da presente história. Filho do conde de Vila-Flor com a viúva de um fidalgo que morrera na Índia, pelejando pelo lustre das quinas portuguesas, Lopo fora criado com todo o carinho e mais que exagerada solicitude no faustoso solar do conde. Crescera, sendo-lhe permitidas pelo pai todas as extravagâncias, e cedo os fâmulos e servos começaram a suportar o gênio caprichoso e brutal do fidalguinho, sempre desculpado pelo velho conde que por ele tinha um afeto vivíssimo.

Chegando à idade viril, Lopo começou, dilatado, assim, o campo das suas aventuras, a exercer a sua índole, mas nos simples campônios, que o tinham por verdadeiro demônio: quotidianamente chegavam ao pai notícias de espancamentos, desrespeitos a donzelas, e perversidades de toda a espécie praticadas pelo seu Benjamim, e tanto este cresceu em audácia e cinismo que um dia levantou mão criminosa contra o pai, quando o repreendia por certo delito.

Indignou-se por tal forma o velho e honrado conde, com esse iníquo procedimento do infame, que, fazendo calar o grande amor que lhe consagrava, o expulsou da casa paterna, cobrindo-o de maldições.

Então Lopo de Vila-Flor passou-se para Lisboa, onde, em conseqüência do alto conceito que gozava sua família, recebeu logo ao chegar favorável acolhimento na Corte. Cedo, porém, revelando o degradante fundo do seu caráter, incompatibilizou-se com a sociedade lisbonense, e a Polícia do rei viu-se obrigada a deportá-lo para o Brasil, onde não seria tão prejudicial "por ser este país uma terra larga", dizia o alvará que o remeteu.

Eis o personagem que vai figurar como protagonista da presente história.

* * *

Com a mudança de ares não modificou Lopo o seu comportamento, e a população de Olinda contou desde o dia da sua chegada com mais um flagelo em seu seio. A sua vida decorria entre o bordel, a taverna e a espelunca, atribuindo-se-lhe grande número de desacatos às pessoas e lesões às propriedades. As coisas chegaram a tal ponto que o ouvidor lhe moveu séria perseguição, e o nosso valdevinos, para furtar-se às garras da Justiça, evadiu-se de Olinda, por uma madrugada, buscando a vila do Cabo. Com isto contentaram-se os moradores da velha capital pernambucana e o ouvidor deu por finda a sua missão.

A nossa, porém, irá mais longe, e nessa batida não abandonaremos mais o tresloucado fidalgote.

* * *

Havia duas horas que Lopo de Vila-Flor cavalgava em direção ao Cabo, e o sol já vinha rompendo, quando percebeu na sua frente um outro cavaleiro que seguia a mesma direção que ele. Lopo, interessando-se em saber quem era o cavaleiro, deu de esporas à égua que montava, e em breves minutos emparelhava com o matutino viandante.

Era dom Sancho, jovem fidalgo seu conhecido, bom rapaz, porém um tanto amigo do jogo, fato que permitiu a Vila-Flor travar com ele relações em uma espelunca.

Cumprimentaram-se alegremente e logo entabularam conversação. Dom Sancho ia à vila da Escada visitar um tio, rico proprietário de engenhos dessa localidade; Lopo Vila-Flor, ocultando o verdadeiro motivo da sua retirada de Olinda, disse ao companheiro que se dirigia à vila do Cabo por motivo de negócio.

Não falaram mais sobre os motivos da jornada, e começaram os dois, ao trote largo de suas cavalgaduras, a discretear sobre a vida em Olinda, e principalmente sobre aventuras de jogo.

Assim chegaram a um ponto em que o caminho era atravessado por um límpido regato. Aí, virando-se dom Sancho para Vila-Flor, disse-lhe:

– Amigo, já que o acaso nos reuniu para companheiros de jornada, permita que o convide a participar de um magro almoço que aqui trago, o qual, embora pouco sólido e variado, servirá para restabelecer em nossos estômagos um certo equilíbrio.

– De bom grado, – respondeu Vila-Flor,– mesmo porque o ar fresco da manhã e o trote deste cavalo abriram-me danadamente o apetite.

– Nesse caso façamos alto aqui, a fim de aproveitarmos esta belíssima água.

– Como queira.

Apearam-se, amarraram os cavalos no tronco de um espinheiro, e sentaram-se comodamente na barranca a fim de apreciarem o almoço, que constava de uma boa lasca de presunto, um requeijão, farinha de mandioca e um botijão de excelente vinho português. Comeram e beberam melhor, tudo na mais satisfatória harmonia, e, terminada a refeição, Lopo disse para o companheiro:

– Para que a nossa pequena festa seja completa devemos agora jogar alguns cruzados numa pequena parada.

– Mas onde estão os dados?

– Tenho-os aqui.

– Todavia não jogo, pois não venho suficientemente abastecido de dinheiro.

– Nem eu também me acho folgado. No entanto, vinte ou trinta cruzados que se percam não aleijam a ninguém, nem pelo temor de perdê-los deve-se deixar escapar tão boa ocasião.

– Vá lá, porém com uma condição.

– Aceito-a desde já.

– É que, quando qualquer de nós tenha perdido quarenta cruzados, não se jogará mais.

– Às mil maravilhas; todo o meu dinheiro é apenas cinqüenta cruzados e assim me ficarão ainda dez para os gastos.

Convém observar ao leitor que cinqüenta cruzados, ou por outra vinte mil réis, eram naquele tempo uma quantia assaz importante, a regular-se pelos ordenados dos governadores-gerais, os quais, embora representassem a pessoa real e tivessem um mando que ia até o direito de morte em peões e gentios, apenas percebiam 400$000 anuais.

Estabelecida a preliminar da suspensão do jogo, logo que um dos parceiros perdesse quarenta cruzados, Lopo de Vila-Flor, tirou do bolso do gibão uns dados de osso, e começou a partida. tendo cada um parado dez cruzados de mão.

Lopo perdeu, e dom Sancho embolsou o dinheiro.

Seguiu-se uma outra partida, também de dez, e Lopo tornou a perder. Já um tanto impaciente, Lopo jogou numa terceira partida o resto dos quarenta cruzados da convenção, isto é, vinte.

Tornou a perder, e dom Sancho, embolsando as moedas, levantou-se disposto a prosseguir em sua viagem. Deteve-o Vila-Flor com estas palavras:

– Amigo, joguemos mais uma partida.

– Por forma alguma; segundo dissestes, o vosso dinheiro constava unicamente de 50 cruzados, e perdestes 40. Com que dinheiro fareis o resto de vossa jornada, se a sorte continuar a fugir de vós numa nova parada? Eu tenho por princípio inabalável não restituir dinheiro ganho ao jogo, ainda que o perdesse o meu próprio pai, e depois foi a condição que ditei antes de começarmos o jogo...

– Com que, então dom Sancho, – redarguiu colérico o filho do conde de Vila-Flor,– me arrancaste quarenta cruzados e assim me deixais no meio da estrada, quase sem dinheiro para pagar a hospedagem na primeira albergaria?!. .. Permiti que vos diga, sr. dom Sancho, que o vosso procedimento se assemelha muito ao de um bandido de estrada.

Ao ouvir essa inconcebível insolência, dom Sancho corou até à raiz dos cabelos, e, colocando a mão no copo da espada, respondeu com altivez:

– Sr. Lopo, se a nobre família de Vila-Flor tem por hábito tragar sem protesto de ponta de espada insultos como o que acabais de proferir, nunca a dê Sancho de Miranda, em todos os seus descendentes; até o mais longínquo futuro, sofre-las-á sem responder ao atrevido, enristando-lhe o ferro dos desagravos honestos.

Eram de bom gosto nesse tempo essas tiradas infladas de basófia e sensitivos pundonores, mas assim como se dizia fazia-se, e, seguindo a regra dom Sancho procurou desnudar a espada.

Embaraçou-se, porém, em tirá-la da bainha, e o pérfido Vila-Flor aproveitando-se desse desarmamento momentâneo, sacou da sua adaga, e enterrou-a até as guardas no peito do inimigo.

Dom Sancho, sem soltar um gemido, tombou, golfando sangue pela boca.

Em três segundos era cadáver.

Lopo de Vila-Flor, saqueando-lhe as algibeiras, arrastou o corpo para junto de um penhasco, que da estrada não se percebia, e em seguida continuou a sua viagem, sem se preocupar o mais levemente possível com o monstruoso crime que acabava de perpetrar.

Ora... tinha na algibeira dinheiro suficiente para a crápula... Que lhe importava o cadáver feito por suas mãos, que ficava apodrecendo junto à estrada, sem ao menos uma cruz presidindo à final consumação da carne?

* * *

Passaram os tempos. Insuficiente como era a polícia no primeiro período da colonização do Brasil, tendo de exercer-se com minguadas forças e em dilatadíssimas extensões, apesar dos esforços empregados pela família de dom Sancho, a fim de descobri-lo, o crime de Lopo de Vila-Flor não foi conhecido, e o assassino continuou a desregrada vida de bebedeiras, jogatinas e crápula.

Cinco anos já eram decorridos, quando aconteceu um dia cursar Vila-Flor o caminho entre a Escada e Olinda. Era a primeira vez que isso lhe acontecia, depois que ali praticara o seu nefando homicídio, do qual bem pouco se lembrava já.

Cavalgando, chegou ao riacho, onde cinco anos antes havia feito a merenda e jogado aquela partida de dados que tão fatal fora a dom Sancho.

Então veio-lhe ao pensamento todos os inciŽdentes daquela triste cena, e como por sugestão diabólica teve uma viva curiosidade de examinar o lugar em que havia depositado o cadáver do inditoso mancebo. Não pôde resistir à tentação, e, apeando-se, dirigiu-se para o penhasco. Logo o encontrou.

O cadáver apodrecera ali mesmo, e fora devorado pelos corvos. Os ossos achavam-se espalhados por um circuito de quatro a cinco braças, no qual a relva havia fenecido.

Bem no centro da ossada dispersa achava-se a caveira.

Lopo de Vila-Flor teve um gesto de horror, assim que avistou esses restos, porém domando tal movimento, procurou encher-se de coragem, e apostrofou a caveira da seguinte forma:

– Então, dom Sancho, queres agora jogar mais uma partida dos dados?

E sorriu-se, admirado do próprio cinismo.

Qual não foi, porém, o seu assombro ao ver a caveira torcer-se no chão com estalidos secos, e responder-lhe em voz de tão estranha modulação que lhe fez gelar o sangue nas veias:

Vai seguindo teu caminho,
Não perturbes minha paz,
Joga, encharca-te de vinho,
Faze tudo o que te aprazo

Por ora nada te oprime,
E não te digo mais nada,
Mas tua conta de crime,
Será na Bahia ajustada.

Lopo de Vila-Flor, ao ouvir tão estranhos versos, cujo sentido não compreendia, sentiu os cabelos levantarem-selhe na cabeça, e o corpo entrou-lhe todo a tremer. Assim permaneceu alguns segundos, porém, afinal, recobrando algum ânimo, correu espavorido para a estrada, montou a cavalo, e a todo galope fugiu daquele sítio assombrado.

* * *

As medonhas palavras que ouvira não podiam, no entanto, sair-lhe da mente; e, assim, na primeira povoação a que chegou, procurou um padre e pediu-lhe que o ouvisse de confissão, comunicando ao sacerdote o seu crime e a terrível ameaça da fantástica caveira.

O padre ficou assombrado com o que ouvira, e, prescrevendo ao criminoso dura penitência, aconselhou-o que nunca dirigisse os seus passos à Bahia pois as palavras da caveira lhe anunciavam que nesse lugar encontraria ele castigo do seu delito.

Durante alguns meses Lopo de Vila-Flor conservou-se apreensivo sobre o seu destino, mas afinal a vida de dissipação que levava, e bem assim o firme propósito que havia formado de nunca ir à Bahia, tranqüilizaram-no de todo, e pouco a pouco foi perdendo a lembrança do sucedido.

Por esse tempo os holandeses tinham invadido Pernambuco, e vencendo a tenaz resistência que lhes havia oposto o esforçado Matias de Albuquerque, haviam conseguido destruir o arraial do Bom-Jesus e expelir os portugueses de Pernambuco, depois de derrotá-los em diversos pontos.

Lopo de Vila-Flor pelejava ao lado dos portugueses, como comandante de uma companhia, e, assim, quando o príncipe de Bagnuolo, após o insucesso de Porto-Calvo, retirara-se para as Alagoas, Lopo de Vila-Flor, bem como todo o exército poŽtuguês ora obrigado a acompanhá-lo.

Senhores de Pernambuco, os batavos perseguiram os portugueses até as margens do São Francisco, e estes, não podendo oferecer resistência eficaz ao inimigo, em Sergipe, tiveram de se recolher à Bahia.

Achou-se, pois, Lopo de Vila-Flor sem o querer, e sem mesmo nisto pensar, no lugar que tanto temia, ali conduzido pelo acaso ou pelo desígnio da Providência.

* * *

No entanto o filho do conde português não ligava mais a menor importância às suas antigas apreensões. Os episódios da grande guerra em que se achava empenhado, o espetáculo da morte que tantas vezes havia presenciado, tornaram-no inacessível ao remorso, e, como outrora, a sua única preocupação era jogar, beber e folgar.

Ora, de uma vez Lopo de Vila-Flor convidara alguns camaradas de armas para almoçar com ele e depois jogar algumas partidas. A reunião devia ter lugar numa sexta-feira, e Vila-Flor na manhã desse dia dirigiu-se à Praça a fim de comprar qualquer peça de carne com que regalasse os amigos.

Com a permanência das tropas pernambucanas na Bahia, a vida nesta cidade tornara-se muito difícil, sendo geral a escassez de víveres. Os que apaŽeciam nas feiras eram logo arrematados por preços elevadíssimos e muitíssimas famílias começavam a sofrer duras privações.

Assim, Lopo de Vila-Flor teve enorme dificuldade em encontrar um bom guisado para oferecer aos seus convidados. No mercado da cidade não havia mais nada de suculento para comprar, tendo Lopo que se contentar com uma cabeça de carneiro, cujo corpo já tinha sido arrematado por alguns oficiais que andaram mais adiantados do que ele.

Embora mortificado por esse contratempo, Lopo de Vila-Flor pagou bem caro a cabeça de carneiro, metendo-a dentro de um saco de estopa, e levou-a para casa, confiado que o seu cozinheiro, um crioulo baiano, saberia dar a essa peça inferior um tempero digno do paladar dos seus amigos.

* * *

Quando chegou à sua habitação, já lá se achavam os convidados: eram uns quatro ou cinco rapazes alegres que o receberam com uma salva de palmas e exclamações jubilosas.

– Com que, então, – disse um deles, – temos hoje um almoço de arromba

– Qual o quê, – respondeu Lopo contristado, – nada encontrei digno de vós, nos mercados; tudo já tinha sido arrematado. Em caminho encontrei-me com um frade gordo de São Francisco, que conduzia embrulhado no hábito seboso um excelente capão. Tive ímpetos de assassinar aquele guloso servo de Deus, e roubar-lhe o bicho, que daria uma magnífica cabidela, porém temi encontrar-me no inferno com aquele patife, o qual, por seu compadresco com o diabo, me obrigaria a restituir-lhe o frangão.

Uma gargalhada acolheu essa tirada.

– Mas, então, nada encontraste

– Isso não; aqui trago uma bela cabeça de carneiro, que, sendo confiada à habilidade do nosso Lourenço, que em matéria de cozinha é mais perito do que o seu primo Henriques Dias, em questão de guerrilha, nos dará um almoço regular.

– Pois, então, viva a cabeça de carneiro, em falta de coisa melhor! – exclamaram os rapazes alegremente.

– O que lhes garanto é que é uma cabeça de carneiro do tamanho da de um novilho. Ei-la.

E, dizendo isso, Lopo desceu a boca do saco e fez rolar no soalho o conteúdo do mesmo.

Mas. .. oh! assombro!

Em lugar de uma cabeça de carneiro, rolou na sala, a espadanar sangue, uma coisa monstruosa. O que Lopo e seus convidados viram, no maior espanto, foi uma cabeça humana, medonhamente lívida, de olhos vidrados, lábios espumantes e cabelos empastados.

Um grito de pavor saiu de todos os peitos, e Lopo de Vila-Flor, não podendo conter a extraordinária emoção que dele se apoderou, exclamou trêmulo e de olhos esbugalhados:

– Dom Sancho de Miranda!

O assassino tinha reconhecido nos traços daquela espantosa cabeça as feições da sua vítima.

Nada mais pôde dizer: uma névoa densa obscureceu-lhe a vista, ganhou-lhe o corpo todo um torpor indizível, e rolou sem sentidos na sala.

* * *

Compreenderam logo os companheiros que se tratava de um crime nefando, pois alguns reconheceram igualmente aquela cabeça como a de dom Sancho que havia muitos anos tinha desaparecido da capitania de Pernambuco.

Assim entregaram Lopo de Vila-Flor à Justiça, e o indigno, sendo tomado de estranha confusão, revelou imediatamente o crime que havia cometido, com todas as suas minudências agravantes.

Foi-lhe instaurado processo; e, comparecendo em julgamento, condenado à morte, sentença essa que a Casa-da-Suplicação de Lisboa confirmou. Como era nobre, não subiu à forca: cortaram-lhe simplesmente a cabeça em uma das praças da Bahia, e assim se cumpriu a estranha ameaça proferida pela caveira de dom Sancho... "E", termina a crônica de onde extraímos esta história, "tudo assim aconteceu, para que não ficasse no mundo sem castigo um homem que tantos agravos às pessoas e bens havia praticado – um endurecido pecador que agora está purgando as suas grandes culpas nas profundezas do inferno".
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Fonte: "Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.83-95" in  Jangada Brasil.
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A doença infantil do palavrão


Que estaria fazendo eu, ontem, às três da madrugada?

Sei que isso é intranscendente, irrelevante, mas vamos lá.

Simplesmente, eu estava adulando minha úlcera com leite gelado. (Minha úlcera lambe leite como uma gata). Pacificada a dor, vim para a janela espiar a noite. E comecei a pensar no teatro brasileiro. (É triste ser inteligente com dor).

Escrevi, há dois ou três dias, que lavra, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão. Não há lembrança de outra época tão pornográfica. Dirá alguém que o brasileiro sempre foi um neto retardatário e ululante de Bocage.

Isso é e não é verdade. De fato, o povo sempre teve a boca suja. O nosso Pedro I, segundo informam a história e a lenda, soltava, com larga e cálida ênfase, alguns dos mais truculentos palavrões da língua. E, assim, através dos tempos, cada geração recebe das anteriores um farto legado obsceno. (Claro que a linguagem das mulheres sempre foi muito mais limpa). Eis o que eu queria dizer: — no passado, o palavrão era muito mais solene, patético, vital.

Bem me lembro de uma vizinha nossa, que perdeu a filhinha, de febre amarela. (Era ainda a cidade dos lampiões e da febre amarela). Quando a menina morreu, e a mãe sentiu a morte, podia ter rezado. Rezado, em pé, ereta, a fronte alçada. Não. Ela se esganiçou em palavrões hediondos, inclusive alguns que os homens, os latagões presentes, não conheciam. Houve, junto à cama da agonia, um escândalo total. Mas logo todos perceberam que a dor pornográfica é ainda mais terrível.

Uns vinte anos depois, passo, com um amigo, pela praia de Ipanema. E, por um momento, ficamos, ali, feridos de espanto. Que dizer de um poente do Leblon? Um de nós poderia declamar a seguinte imagem de D'Annunzio: — "O crepúsculo rola em quedas de silêncio e de luz". Em vez disso, o meu amigo arrancou, das próprias entranhas, um palavrão deslumbrado. Aquele poente de folhinha como que exigia o uivo obsceno, não convencional.

Disse obsceno e já retifico. Não houve obscenidade nenhuma. Houve, repito, uma unção e uma carga de espanto que a palavra comum não suportaria. Não sei se me entenderam. Mas o que eu queria dizer é que o palavrão não tinha nada de gratuito, de irresponsável. Nunca. E ainda outro exemplo: — fui ver um amigo que estava morre, não morre. Encontrei-o já com a dispnéia préagônica. Houve um momento em que a mulher curvou-se e lhe fez a pergunta: — "Meu bem?". Sem abrir os olhos, ele soluçou um palavrão e morreu.

O homem era pornográfico para morrer. Ou ainda: — era pornográfico por ódio, medo, paixão. Havia sempre um sentimento forte.

Hoje não. O chamado nome feio deixou de ser feio. Esvaziou-se o palavrão de toda a transcendência, de todo o dramatismo. Ele já não causa o velho impacto heróico. Realmente, é a doença infantil dos adultos.

Ontem, contei, de passagem, as reações da platéia do Rei da vela. Um belo espetáculo e um elenco admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilíssimo esforço. No fim, o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíra todo o caldo). Um amigo, que foi comigo, dizia-me da peça: — "Não tem estrutura". E, de fato, se lhe retirassem os palavrões enxertados, o Rei da vela não ficaria de pé cinco minutos.

O que explica o êxito do espetáculo é, exatamente, o engenho diabólico de José Celso. Não conversamos sobre a execução cênica do original. Mas quero crer que ele percebeu, em toda a sua força epidêmica e incontrolável, a doença infantil do palavrão.

As falas de Oswald de Andrade não chegam ao público ou, na melhor das hipóteses, são de uma eficácia mínima. Quem reinou, através dos três atos, foi o palavrão. Claro que há, no Rei da vela, uma mensagem. Mensagem para a qual a platéia é surda, cega e muda. Em dado momento, no terceiro ato, a peça emposta a voz e se torna gravíssima. O tédio do público é então indescritível. Ah, por que fazer um Oswald de Andrade solene, encasacado como um mordomo de filme policial inglês?

Já o rendimento plástico e auditivo do palavrão foi absoluto. Na minha frente estava um rapaz com a noiva. Passei duas horas seguindo as reações do casal. Diga-se de passagem que era a platéia mais antipolítica, mais anti-ideológica que já entrou no João Caetano.

Volto ao rapaz (um latagão de vastas bochechas). A única coisa que o fascinava no espetáculo era a pornografia e toda a gesticulação correspondente. E sempre que explodia um palavrão, nada descreve e nada se compara à delícia auditiva do noivo. Ficava escarlate de prazer (e os outros também). Lembro-me que, na minha peça, O beijo no asfalto, um velhinho trepou na cadeira e pôs-se a berrar: — "Indecentes! Imorais! Tarados!".

Houve porém uma resistência solitária. Alguém, não identificado, estourou: — "Cala a boca, burro!". E o carequinha: — "Burro é a mão na cara!".

O momento mais alto do Rei da vela foi quando a platéia, em sua unanimidade ululante, aplaudiu, de pé, o palavrão mais violento dos três atos. Ninguém fez cara feia; nenhuma senhora deu muxoxo; jamais um casal se retirou.

No dia seguinte, encontro o doce Eduardo Chermont de Brito.

Conto-lhe toda a minha experiência brasileira do Rei da vela.

Pergunto: — "Chermont, que fazem os nossos sociólogos? Que faz o padre Ávila que ainda não deu uma aula sobre a doença infantil do palavrão?". O Chermont suspira: — "É o Brasil, é o Brasil!".

E há de ser também o Brasil o Roda-viva do Chico. Um dos Guinles foi lá, com a senhora, ver a peça. Queria o Chico terno, tímido, nostálgico. Pois bem: — e deu de cara com o truculento José Celso. Em Roda-viva há uma presença devoradora: — o José Celso. O casal Guinle saiu, no meio, como se fugisse do anti-Brasil. Mas é o Brasil, o novo Brasil com potencialidades imprevisíveis.

O público só irá, daqui por diante, ao espetáculo pornográfico. A platéia exige as duas coisas: — o palavrão e o gesto que lhe corresponde. É como se a obscenidade de palco justificasse e absolvesse a obscenidade do espectador. Se eu conhecesse o padre Ávila, ou outro sociólogo, ou quem sabe um psicanalista, ou ainda um pediatra, havia de perguntar-lhe: — há ou não, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão?

[1/2/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O palavrão humilhado


Quando vou ao Galeão, só uma figura me impressiona.

Lá, chegam e partem reis, presidentes, rajás, grã-finos, ministros, Jorginho Guinle, velhas internacionais. Só não vi, no Galeão, um mandarim. E é, convenhamos, todo um elenco fascinante. Mas falei na figura que mais me impressiona e aqui está seu nome: — a aeromoça.

A jovem que resolve ser aeromoça está fazendo uma opção profissional desesperadora. Bem sei que a aviação progrediu muito etc. etc. Todavia, no caso da aeromoça, a opção profissional não será bem profissional. É como se ela estivesse preferindo morrer. Para a aeromoça, cada dia pode ser a véspera do fim. Vejo-a passar por mim no Galeão. Seu olhar tem a doçura de um adeus. Sim, ele pode estar-se despedindo da paisagem.

Não sei se as aeromoças são bonitas. Diz o Otto Lara Resende: — "O Brasil é o único país onde as feias são bonitas". Seja como for, elas têm um patético irresistível. São íntimas da morte. E sua graça parece mais leve, mais efêmera, mais perecível que a das outras. Ah, quando vejo uma delas, sonho: — "Essa vai morrer cedo".

Pode parecer uma obsessão pueril (e talvez o seja). Mas eis o que eu queria dizer: — as nossas esquerdas atuais sugerem a impressão inversa, isto é, de que vão morrer tarde, muito tarde. Pelo amor de Deus, não vejam ironia, mesmo porque tenho vários amigos na "festiva". A verdade é que a segurança das nossas esquerdas está acima de qualquer ameaça ou dúvida.

O brasileiro simples formou do esquerdista patrício uma imagem inteiramente irreal. O pai de família imagina que um socialista tem uma barricada em cada bolso. Eu próprio, no 31 de março e no 1º de abril de 64, andei tecendo fantasias hediondas. Imaginava que o sangue jorraria e que as ratazanas iam sair dos ralos para bebê-lo. E não se derramou nem groselha.

Só muito depois descobria eu a verdade, que é a seguinte: — as nossas esquerdas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa da segurança. Ainda ontem, falava eu da sábia distância que vai do Antonio's ao Vietnã. Aí está dito tudo. E, assim, sem arredar pé do Antonio's, e bebendo cerveja em lata, as esquerdas não morrerão jamais.

O leitor há de perguntar, com irritação e escândalo: — "Mas elas não fazem nada?". Responderei: — "Fazem".

Insistirá o leitor: — "E fazem o quê?". Direi: — "Auto-promoção". É a pura verdade. A esquerda não sai por aí, derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, porque está ocupada em se auto-promover.

Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. O "grande poeta", o "grande crítico", o "grande ensaísta", o "grande romancista", o "grande dramaturgo" — são membros da "festiva". Gustavo Corção acaba de publicar um grande livro. É toda uma meditação maravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, em lugar nenhum, uma linha, uma vírgula, nada. A imprensa, as câmeras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra de Corção.

É inédita essa capacidade promocional das esquerdas.

Elas ocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue da burguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seu exclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com um piparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exerce, na melhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacionário? Silêncio em cima dele.

Ainda ontem, um revisor veio-me pedir emprego. Tem mulher, filhos, e contou o seu drama. Trabalhava num grande jornal, mas cometeu a imprudência suicida de elogiar os Estados Unidos. Não sei por que, ou por outra: — lembro-me agora. Disse ele que uma peça, ora em exibição em Nova York, insinuava que o presidente Johnson e senhora eram assassinos, ou co-assassinos, de Kennedy. E, por isso, concluía o revisor que havia liberdade nos Estados Unidos.

Foi despedido, sumariamente.

Vejam como as esquerdas têm poderes para admitir, ou demitir, nos jornais, rádio e TV. Dominando em todas as artes, não podiam deixar de fora o teatro. (Na pintura, aquele que não for da "festiva" terá menos imprensa de que um cachorro atropelado). E, no teatro, as esquerdas descobriram o palavrão.

Pasmem para as ironias da vida literária e dramática.

Durante dezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno do teatro brasileiro. Minhas peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados foram interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém. Lembro-me de que Álvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou, por outras palavras, o seguinte: — eu saíra da literatura e era agora um "caso de polícia". No mais, nem estudantes, nem escritores, quando passavam por mim, concediam a graça de um "oba".

O dr. Alceu, em declarações a O Globo, aplaudia a minha interdição. Sempre que se referia a mim dizia, enojado: — "As peças obscenas de Nelson Rodrigues".

O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro, nem Senhora dos afogados tinham um único e escasso palavrão. Eu viria a usá-lo muito mais tarde. E, no entanto, montou-se, a meu respeito, todo um folclore medonho.

Segundo corria à boca pequena, eu, todos os dias, depois do almoço, fazia a sesta num caixão de defunto. E as esquerdas tinham, dos meus textos, uma repugnância total.

Súbito, elas descobrem o palavrão, ou especificando: — o palavrão no teatro. Já o usavam no romance. Mas a pornografia do livro se dirige a um único e íntimo leitor e morre numa relação individualíssima e secreta. Ao passo que no teatro o palavrão é declamado para duzentos, quatrocentos, oitocentos.

Se bem entendi, as esquerdas querem chocar a platéia. É preciso que esta não fique, nas cadeiras, comendo pipocas.

O bom teatro tem de ser agressão. Muito bem, ótimo. Nada tenho a objetar. E fui ver, sábado, o Rei da vela, dirigido por meu caro e simpaticíssimo José Celso. Trata-se do grande diretor do momento. Do mesmo modo que o Plínio Marcos está sendo representado em todos os palcos, o José Celso parece dirigir todas as peças. A do Chico, por exemplo, é dele.

Preparei-me para ser testemunha e vítima da agressão.

Durante todo o espetáculo, não fiz outra coisa senão esperar. Diziam que o texto e o espetáculo eram um soco na cara. E eu estava lá para ver e receber o soco na cara. No fim de duas horas e meia, saímos, eu e os outros, intactos. Éramos quatrocentos sujeitos e não havia, entre nós, um único e vago agredido. O novo teatro conseguiu desmoralizar o soco na cara. O palavrão, antes, tinha suspense, tinha mistério, tinha espanto. E a audiência do Rei da vela saía arrotando a sua satisfação burguesa.

Por aí se vê como falhou o sonho de uma platéia esbugalhada, horrorizada. Imaginem que, no segundo ato, um dos personagens solta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas do Bocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de a platéia arrancar os cabelos ou subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. E, no entanto, vejam vocês: — os presentes, de pé, aplaudiam, aos vivas.

Essa apoteose súbita e feroz frustrou, ofendeu e humilhou o pobre palavrão.

[31/1/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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