sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O espectro

— Olhe cá, ouça!

Quando falou assim a voz que o chamava, estava de pé, à porta de sua casinha, empunhando a bandeirola, que conservava enrolada no pauzinho que desempenhava as funções de haste.

Era tal a configuração do terreno que não parecia possível que pudesse ter dúvida sobre a procedência da minha voz. Contudo o homem, longe de erguer os olhos para o lugar em que me achava, à borda da trincheira, precisamente sobre a sua cabeça, deu meia volta e olhou em direção à vila.

— Olhe cá, ouça!

Só então deixou de esquadrinhar a linha. Girou de novo sobre os calcanhares e deitando a cabeça para trás distinguiu-me por cima do seu observatório.

— Há algum caminho que me permita descer até aí para travarmos conversação um pouco mais de perto?

Houve uma pausa, então. O homem examinava-me com profunda atenção. Por fim, apontou-me com a bandeirola um ponto situado a duzentas ou trezentas toesas à esquerda.

— “All right!” Muito bem! — exclamei.

E dirigi-me ao lugar indicado. Lá, depois de muito olhar em torno de mim, descobri um estreito caminho, toscamente talhado em ziguezague e comecei a segui-lo.

A trincheira era funda em extremo. Estava talhada a pique sobre um bloco de pedra e, à medida que se descia, diminuía a consistência da pedra, ao passo que a umidade aumentava proporcionalmente. Vi-me obrigado a serpentear. Durante minhas voltas e reviravoltas não me saíam da memória o jeito indeciso e a rara timidez que havia notado no pobre homem quando se decidiu a indicar-me o caminho.

Concluídos os rodeios, tornei a contemplá-lo da vertente e pude observar que permanecia na via que dera passagem ao último comboio. Sua atitude permitia afirmar que estava à minha espera.

Encostava o queixo na palma da mão esquerda, enquanto o braço correspondente procurava apoio no direito que tinha cruzado ao peito; e era tão singular a sua expectativa, refletia tanta ansiedade que parei por um pouco, cheio de surpresa.

Continuei descendo até chegar ao terrapleno e então pude contemplar, à vontade, a cútis morena, a barba negra e as sobrancelhas espessas da minha estranha personagem.

Sua casita ocupava o lugar mais solitário e triste da via férrea. De cada um dos lados erguia-se um muro pedregoso que vertia água e impedia o olhar de espraiar-se pela imensidade do céu, de que só se distinguia uma faixa estreita.

E não eram mais alegres as perspectivas da estrada. De um lado via-se a prolongação tortuosa desse grande cárcere; de outro, ainda mais limitado, o que atraía os olhares era uma luz de vermelho sinistro, situada sobre a abertura de um túnel sombrio, cuja estrutura maciça oferecia um aspecto grosseiro e repulsivo. Os raios solares ali chegavam minguados e amortecidos; respirava-se um cheiro subterrâneo. Um vento fúnebre que me gelou o sangue nas veias soprava daquela boca escura... Estremeci. Apossou-se de mim a idéia de que já não estava no mundo dos vivos.

O interpelado permanecia fixo no mesmo lugar. Cheguei-lhe ao lado; consegui tocar-lhe; mas perseverou indefinidamente na sua primitiva imobilidade. Enquanto não parei, permaneceu quieto em seu lugar. Depois, retrocedeu um passo e levantou a mão; mas não tinha deixado um só instante de assestar nos meus olhos o olhar desvairado dos seus.

— É bem solitário este posto — disse-lhe eu. — Já lá de cima, quando o descobri, foi o que me pareceu. Poucas visitas terá por aqui, não é verdade? mas nem por isso elas lhe serão desagradáveis... Pelo menos, é o que me parece! Sou um sujeito cuja vida decorre entre horizontes bem limitados. Por fim consegui alcançar a liberdade e minha curiosidade arrasta-me, apaixonadamente, ao exame cuidadoso das grandes construções ferroviárias. Tais investigações, inteiramente novas para mim, satisfarão minha ignorância com a maior precisão.

Disse-lhe aproximadamente essas palavras. Estou longe de reproduzi-las com absoluta fidelidade. Nunca fui muito forte na arte de entabular conversações e nessa ocasião, menos do que nunca, pois o interpelado tinha certa expressão pouco tranqüilizadora, que me infundia medo.

Voltou-se, para registrar, com exagerada solicitude o lugar em que permanecia fixa a luz vermelha que só alumiava as proximidades do túnel, como se fizesse pouco caso dos outros objetos naquelas ermas paragens.

Por fim, dirigiu-me novamente o olhar.

— Está também a seu cargo a vigilância e cuidado desse sinal? — perguntei-lhe.

Respondeu, em voz calma:

— O quê! Pois não sabia?

Era tão insistente a fixidez do seu olhar e tão intensa a sombra que lhe escurecia o rosto, que me cruzou pela mente uma suspeita singular.

Devia considerar como a um homem aquele ser que estava diante de mim? Não seria um fantasma? Mais tarde pensei que devia sentir-me contagiado pelo seu aspecto. Coube-me então a vez de retroceder um passo. Isso provocou no desgraçado os sinais mais inequívocos de terror. Eu lhe metia medo. Esta descoberta pôs fim às minhas suspeitas extravagantes.

— O senhor me olha — disse-lhe com um sorriso forçado — como se eu lhe fizesse medo.
— Parece-me que já o vi antes.
— Onde?

Indicou com a vista a luz vermelha.

— Ali? — perguntei-lhe.
— Sim — respondeu num gesto mudo de assentimento e sem tirar de mim os olhos ansiosos.
— Mas, bom homem, que é que eu poderia ir fazer ali? Ainda que isso fosse possível, creia que isso nunca me ocorreu e que nunca, em toda minha vida, pus os pés naquele lugar. Posso jurá-lo — disse; — estou bem certo disso e posso jurá-lo.

Por fim, pareceu que estas palavras tinham desfeito o gelo entre nós.

Daí em diante, respondeu com desembaraço às minhas perguntas.

Fez-me entrar na sua casinha, onde tinha um fogão, uma estante para o registro do serviço, um livro em que se estampava determinadas observações e um aparelho telegráfico composto de um mostrador com setas indicadoras e uma campainha de chamada.

O digno e excelente homem ter-me-ia merecido o conceito de empregado competentíssimo nas suas funções se não tivesse suspendido por duas vezes suas respostas, empalidecendo, para olhar para a campainha (que, no entanto, permanecia muda, nesses momentos), e não tivesse aberto a porta de sua vivenda (fechada unicamente para evitar a insalubre umidade), desejoso de olhar de fora a chama vermelha da entrada do túnel.

De ambas as vezes acompanhou o seu regresso para junto do fogão com aquele gesto inexplicável que lhe havia observado, sem poder defini-lo, quando nos olhamos a distância, eu, das minhas alturas, ele, das suas profundidades.

— Alegro-me de acreditar — disse-lhe, ao levantar-me para partir — que encontrei aqui um homem satisfeito com a sua sorte.

Era intenção minha induzi-lo a fazer-me qualquer comunicação.

— Sim, realmente, foi assim em outros tempos — respondeu — mas agora — acrescentou com essa voz apagada que havia empregado antes — estou inquieto, senhor: a inquietação me devora.

Teria querido, talvez retirar as suas palavras, mas já era impossível. Estavam irremissivelmente pronunciadas.

Aproveitei-me delas imediatamente.

— Por quê? Qual a causa da sua inquietação?
— É muito difícil explicá-la, cavalheiro; custa-me indizivelmente falar deste assunto. Se o senhor tornar a visitar-me de novo, tentarei expandir-me.
— Acredito! Desejo vivamente voltar. Quando quer que eu apareça?
— Abandono este posto muito cedo, mas às dez horas da noite estarei de volta.
— Virei amanhã às onze.

Agradeceu-me e acompanhou-me até à porta.

— Porei à vista a minha luz branca — disse-me surdamente, conforme o seu costume — até que o senhor acerte com o caminho. Quando o encontrar, não grite, e ao regressar, quando se encontre no ressalto da trincheira, não o faça também.

As maneiras e o som da sua voz pareciam-me aumentar o aspecto glacial daquele lugar. Limitei-me a responder-lhe:

— Muito bem.
— Não se esqueça — continuou. — Quando vier amanhã à noite, não há necessidade de fazer barulho. Permita-me uma pergunta, para terminar. Por que gritou esta noite: “Olhe cá, ouça!”.
— Garanto-lhe que não sei. Mas, realmente, disse algo parecido com isso.
— Algo parecido, não, foi isso que disse. Conheço perfeitamente esse modo de chamar.
— Oh! não digo que não. Fiz assim simplesmente porque o avistava aqui no fundo.
— Só por esse motivo?
— Que outro poderia ser?
— Não lhe pareceu que alguém lhe ditava essas palavras: que obedecia, de certo modo, a uma influência sobrenatural?
— Não.

Deu-me boa noite e foi-me alumiando o caminho com a lanterna. Continuei andando ao longo da via férrea, fora dos trilhos, sob o peso de uma impressão desagradável. Parecia que tinha um comboio ao meu encalço... Achei finalmente o caminho. Foi-me fácil a subida e acabei por chegar à minha hospedaria, sem nenhum embaraço.

Veio a noite seguinte. Fiel à minha entrevista, punha o pé no primeiro degrau da encosta em ziguezague, ao bater das onze, que se ouvia ao longe.

O homem se achava ao pé da trincheira, espreitando a minha chegada com o seu farol branco ao alto.

— Não murmurei meia palavra — disse, ao chegar junto dele. — Posso falar agora?
— Sem dúvida, cavalheiro!
— Pois então boa noite. Venha de lá um aperto de mão.
— Boa noite, senhor. Aí vai.

Depois do cumprimento, dirigimo-nos, caminhando um ao lado do outro, para a casinhola. Entramos e sentamo-nos junto ao fogo.

— Não vou permitir que se incomode, cavalheiro (começou a dizer, inclinando-se e com voz imperceptível como um suspiro), perguntando-me novamente o motivo do meu desassossego. Ontem à tarde confundi-o com outra pessoa. Era esse o motivo da minha inquietação.

— Aborrece-o esse engano?
— Não é que o senhor me perturbe. O outro é que..
— Quem é esse outro?
— Não sei.
— Parece-se comigo?
— Também não sei. Nunca lhe vi o rosto. Esconde-o com o braço esquerdo, enquanto move rapidamente o direito, assim; veja.

Reparei na sua pantomima muda. Era uma série de gestos descompostos, que queria exprimir, de um modo veemente, convulsivo e apenas com um braço, esta frase: “Pelo amor de Deus! Saia do caminho!”

— Numa noite de luar — acrescentou o homem eu estava aqui, no lugar em que o senhor está agora, quando ouvi uma voz gritando: — Olhe cá, ouça! — Corri para fora. O outro estava de pé, junto ao sinal vermelho, gesticulando como lhe mostrei ainda agora. Estava rouco à força de gritar: Olhe, cuidado, cuidado! Não se calava nem por um segundo. Repetia sem descanso: Olhe, cuidado, cuidado! — agarrei o farol e corri para o homem, perguntando-lhe: — Que aconteceu? É um aviso ou um acidente? Em que lugar? — Parei a dez passos da entrada do túnel; fiquei tão perto dele que percebi, assombrado, que o desconhecido escondia o rosto com o braço esquerdo. Segui direito para ele, estendi a mão para descobrir-lhe o rosto; mas de repente, antes que o conseguisse, desapareceu.
— Pelo túnel? — perguntei.
— Não senhor. Percorri-o em toda a sua extensão de quinhentos metros; parei; levantei o farol em todas as direções; vi perfeitamente os números das cotas do nível e as indicações quilométricas escritas na parede. A umidade deslizava como azeite ao longo das pedras e gotejava pela abóbada; mas, nem sombra de ser humano! Voltei, então, sobre meus passos, mais rapidamente que na ida, porque me inspiravam horror mortal esses lugares. Depois de ter revistado minuciosamente os arredores da luz vermelha, sem abandonar um minuto o meu farol regulamentar, subi até o sinal. Nada! Desci de novo e fui telegrafar. Fi-lo por duas vezes. — Alarma. Que está acontecendo? — E de ambas as vezes me transmitiram a resposta costumeira: — Sem novidade.

Enquanto o guarda-chaves falava, parecia-me que um dedo gelado me percorria lentamente a espinha. Resisti quanto pude a essa sensação, esforçando-me por dar a entender ao infeliz que semelhante aparição fora o resultado de uma ilusão de ótica e que aquele grito imaginário podia bem ter sido causado pelo ruído do ar ao chicotear os fios do telégrafo ou ao chocar-se com as altas paredes, arrancando ao silêncio da noite as suas notas lúgubres de harpa eólia.

Deixou-me acabar, movendo a cabeça, mas sem dar sinais de impaciência.

Depois, ao cabo de alguns instantes, observou-me que conhecia perfeitamente o ruído dos fios vibrados pelo impulso do vento. Ninguém era como ele tão capaz de distingui-lo, pois tinha passado ali, sozinho, em vigília, muitas, muitíssimas intermináveis noites de inverno.

Disse-me, além disso, que não tinha acabado ainda sua narração.

Pedi-lhe que me perdoasse a interrupção; e ele, então apoiando suavemente a mão no meu braço esquerdo, prosseguiu lentamente:

— Seis horas depois da aparição ocorreu um desastre memorável na via; e, ao cabo de outras duas, retiraram os mortos e feridos do túnel, depositando-os no mesmo lugar em que tinha visto o fantasma.

Estremeci, da cabeça aos pés. Contudo, consegui dominar-me.

— Certamente — disse-lhe — não há dúvida de que houve uma coincidência notável, capaz de impressionar profundamente a sua imaginação. Mas é igualmente exato, que muito freqüentemente ocorrem casos parecidos.

Observou-me novamente que ainda não terminara.

— O que lhe contei — prosseguiu pondo-me outra vez a mão no braço e dirigindo-me por cima do ombro um olhar insistente — ocorreu há um ano já. Seis ou sete meses depois, quando não havia voltado a mim ainda da minha surpresa, nem me achava reposto da passada emoção, uma madrugada, ao amanhecer, achando-me no interior da minha barraca, olhando para a luz vermelha, tornei a ver o espectro.

Guardou silêncio por um pouco e cravou em mim o seu olhar.

— Vamos a ver, ocorreu algum outro acidente depois dessa ressurreição?

Tocou-me várias vezes com a ponta dos dedos, movendo sempre a cabeça com uma lentidão de espectro que me gelava o sangue nas veias.

— Naquele mesmo dia, cavalheiro — continuou — à passagem de um trem que saía do túnel, observei num compartimento movimentos descompostos de mãos, de cabeças... numa palavra, uma agitação extraordinária. Dei sinal de parada; o maquinista deu imediatamente contravapor e apertou os freios; o trem, contudo, andou ainda cem ou cento e cinqüenta metros. Deitei a correr e ouvi, efetivamente, gemidos e lamentos desesperados. Uma linda mulher tinha sido assassinada num vagão. Trouxeram-na ao meu posto e deixaram-na aqui onde conversamos agora.

Involuntariamente, puxei minha cadeira para trás e não tirei dele os olhos.

— Cavalheiro, esta é a pura verdade. Conto-lhe o acontecimento com toda a precisão.

Já não conseguia falar nem pensar. Fora, o vento e os fios do telégrafo ajuntavam ao horror da narração o acompanhamento de sua voz lastimosa e prolongada. E o homem concluiu:

— Julgue o senhor se posso ter ânimo sereno; há uma semana reapareceu a visão e, de então para cá, não deixou de apresentar-se diante dos meus olhos, de quando em quando.
— Na luz vermelha?
— Sim, no sinal de perigo.
— E o que faz ali?
— Mais veementemente ainda, se é possível, repete os gestos de angústia, como que dizendo: Pelo amor de Deus, saia do caminho.
— Já conhece agora — acrescentou — a causa do meu desassossego. Não tenho trégua nem descanso. O desconhecido me chama por vários minutos consecutivos, empregando sempre o seu grito desesperado: Ouça cá, cuidado! — Agita o braço e dá alarma com a campainha...

Ao ouvir estas palavras, interrompi-o:

— Diga-me o senhor se a campainha tocou ontem à tarde, quando me aproximava daqui, à hora em que o senhor saiu.
— Duas vezes.
— Duas vezes? — repliquei. — Isso prova o quanto a sua imaginação está desorientada. Eu era todo olhos e ouvidos; pois bem, tão certo como eu estar vivo, a campainha não tocou essas duas vezes. Não, nem tocou dessa vez nem das anteriores, está claro que toca, mas quando se comunicam com o senhor dos postos vizinhos.

Meneou a cabeça.

— Não me engano nisso, cavalheiro — replicou. — Nunca confundi a chamada do fantasma com a de meus companheiros. A vibração daquela é especial, não se transmite pelos fios. Não digo que ele toque a campainha; mas que soa, não há dúvida. Não há nada de singular em que o senhor não a tenha ouvido. Eu, por minha parte, ouvia-a exatamente como a ouço sempre: muito bem.
— E quando saiu para fora, viu a aparição?
— Vi.
— As duas vezes?
— As duas — afirmou, com plena convicção.
— Quer sair comigo e olhar agora?

Mordeu os lábios, mas levantou-se.

Abri a porta, detendo-me um momento no limiar. Meu interlocutor ficou a alguma distância. Tudo permanecia no seu respectivo lugar: a luz do sinal, a abóbada do túnel, a parte enorme impregnada de umidade... tudo permanecia o mesmo, à luz das estrelas. — Vê qualquer coisa de anormal? — perguntei, fixando-lhe atentamente o rosto. — Tinha os olhos muito abertos, talvez não tanto como os meus, que ergui, ao mesmo tempo que ele, na direção temida.
— Não — respondeu — não vejo nada.
— Bem — disse eu. — Estamos de acordo!

Entramos novamente e tomamos lugar junto ao fogo. Pensava eu em como tirar melhor partido do bom êxito obtido, se assim podia chamar-se o resultado negativo de nossa inspeção ocular, quando o nosso homem reatou a sua narrativa no mesmo ponto em que a havia interrompido, convindo na afirmação de que os fatos repetidos, objeto de nossa narrativa, não podiam seriamente constituir base para um alarma. Foi um novo embaraço para mim.

— Isso aumenta, cavalheiro, a espantosa confusão em que me acho. Não cesso de perguntar-me: o que quererá anunciar o fantasma?
— Não sei — disse — se compreende claramente...
— Contra que risco vou prevenir-me? — continuou dizendo com ar pensativo, cravando o olhar ora no fogão, ora em mim. — Que perigo está ameaçando? Onde acontecerá? Porque, sem dúvida nenhuma, está-se aproximando da linha um perigo qualquer. Uma terceira desgraça nos ameaça... quem poderá negá-lo, dados os precedentes dos fatos anteriores! Assim, ao que parece, o senhor me julga meio doido! Posso, acaso, evitá-lo? Que devo resolver? Que fazer?

Tirou o lenço e enxugou o suor da fronte.

— Se telegrafo para baixo ou para cima, ou em ambos os sentidos, que fundamento posso alegar? acrescentou, enxugando as palmas das mãos como tinha enxugado a fronte momentos antes. — Só criarei confusão, a mesma que experimento eu, sem vantagem nenhuma em favor do próximo. E hão de julgar-me louco... Veja o senhor! dar-se-ia o seguinte. Telegrama: “Perigo, atenção.” Resposta: “Que perigo? Onde?” Telegrama: “Não sei; mas pelo amor de Deus, estejam de sobreaviso.” Despedir-me-iam do emprego. Poderia suceder outra coisa?

Causava dó a agitação do infeliz. Ao vê-lo assim entendi que, por uma questão de caridade e por assim o exigir a segurança do público, o que havia a fazer, em primeiro lugar, era acalmar o pobre homem. Deixando, pois, para outra ocasião discutirmos se era real ou ilusória essa necessidade, procurei persuadi-lo de que todo empregado fiel e perito no cumprimento de seus deveres procede sempre corretamente e que, tendo ele perfeita consciência de sua obrigação, devia ficar tranqüilo e sem inquietar-se pelo inexplicável das aparições. Minha tática deu melhor resultado que a oposição às suas supersticiosas convicções. Acalmei-o. As exigências do serviço e os incidentes próprios de tais ocasiões reclamavam-lhe todo cuidado. Eram duas horas da madrugada. Deixei-o então, não sem haver-me oferecido antes para ficar em sua companhia até o amanhecer, mas ele não consentiu nisso.

No dia seguinte, estava tão linda a tarde que me apressei a sair, depois do jantar, para aproveitar-lhe a beleza. Ia caindo o sol quando tomei o caminho que, através dos campos, levava até à encosta que dava acesso à via férrea. “É questão de mais uma hora”, pensei. “Em trinta minutos chegarei até ali e em outros trinta terei regressado do meu passeio, que não terá durando grande coisa. Conto falar com o meu guarda-chaves no momento mais propício.”

Antes de terminar o meu caminho, assomei ao parapeito da trincheira e olhei maquinalmente para o fundo, exatamente no mesmo lugar em que interpelei, pela primeira vez, tão estranha personagem. Como descrever o sentimento de horror que me petrificou ao observar que um ser homem ou fantasma, colocado rente à entrada do túnel, agitava vivamente o braço direito, enquanto com o esquerdo escondia o rosto! O indizível espanto que esta visão me produziu durou um momento só; pois não demorei em ver que não era ilusão nenhuma, como o dava a entender um grupo de indivíduos, aos quais se dirigia a personagem que primeiro avistei; esta, naturalmente, com os seus gestos, pretendia explicar-lhes o acontecido. Ainda não se percebia o luzir vermelho do sinal. Divisava vagamente do lado do poste uma espécie de barriquinha construída com espeques de madeira e uma tela de lona embreada. O seu vulto não era maior que uma cama pequena.

O rápido pressentimento de uma desgraça cruzou-me pela mente. Corri para a vereda em ziguezague e desci por ela, com toda a precipitação que pude.

— Que aconteceu? — perguntei.
— Um guarda-chaves, cavalheiro, que foi morto esta manhã.
— Não será o desta casinha?
— Sim, senhor.
— Aquele que eu conhecia?
— Fácil lhe será reconhecê-lo — disse o homem que respondia às minhas perguntas.

Tirou gravemente o chapéu e levantando uma ponta da tela:

— Não está desfigurado — acrescentou.
— Deus meu! Mas como aconteceu a desgraça? Que se passou aqui? — Repeti, indo de um lado para outro, apenas caiu o negro sudário.
— Cavalheiro, a máquina o feriu. Ninguém conhecia nem desempenhava melhor suas obrigações; mas hoje, sabe-se lá por quê? não soube acautelar-se. Era já dia claro; trazia ainda o farol aceso. Um trem saía do túnel; o guarda estava ali, de costas. Foi derrubado. É este o maquinista. Ele lhe dirá o que aconteceu, com todos os pormenores... — Tom, dê a este cavalheiro todos os detalhes...

O maquinista, foi até a boca do túnel.

— Vou explicar-lhe como se passou, cavalheiro. Da curva que faz a via, ali dentro, vi o guarda-chaves junto à saída como se vê um homem por um binóculo. Não havia tempo para apertar os freios; mas não me inquietei por isso. Tive-o sempre por homem cauteloso. Contudo, como me pareceu que não o preocupava o silvo da locomotiva, soltei vapor... Estávamos já em cima dele... Chamei-o com toda a força dos pulmões.
— Que foi que o senhor disse?
— Gritei: “Olha lá! Oh! Oh! Fuja, fuja! Saia da linha!”

Estremeci.

— Ah, senhor! Foi um rude transe! Não parei de chamá-lo. Ocultei o rosto com este braço e nem um momento deixei de agitar nervosamente o outro. Nada consegui!

Assim terminou, com essa morte trágica, tão extraordinária aventura, cujo mistério jamais consegui decifrar.


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Pouco amor não é amor

Nem Balbino, nem Arlete confessariam o seguinte: — o amor de ambos nascera no cemitério.

A menina acompanhava o enterro da avó. E o rapaz, que não conhecia a morta, nem a neta, estaria interessado em outro defunto. Parou um momento para espiar a sepultura aberta e o caixão que chegava. E viu Arlete, à beira do túmulo, assoando-se no lencinho amarrotado. Ela adorava a avó e estava fora de si.

Fazia um sol brutal — a luz era uma agressão. Balbino postou-se logo atrás da pequena e, sem querer, adotou uma tristeza de falso parente, de falso conhecido. Pouco depois, estava ao lado da moça. Tudo o interessou em Arlete, inclusive a coriza. E foi aí que começou o flerte.

Na saída do cemitério, Balbino juntou-se ao grupo de familiares, de amigos. Pararam todos, na porta, para as despedidas. Ninguém ali conhecia aquele rapaz fino, educado, que cumprimentava os presentes, um por um. Esquecia-me de dizer que o rapaz estava de luto, não sei por quem.

Ao apertar a mão da menina, deixou-lhe um papelzinho. Ela, ainda chorosa, teve um movimento de espanto, quase de susto.

Ele diz entredentes:

— Meu telefone.

Arlete, meio desconcertada, ia dizer qualquer coisa. Mas já o rapaz se afastava, em passadas largas, como se fugisse. Pois bem: — a pequena (jeitosa de corpo e de rosto) tomou um táxi, com o pai, a mãe e o tio. Fez a viagem para casa com aquilo na cabeça. Chega, diz que vai ao banheiro, e lá, com um sentimento de culpa, olha o número: — prefixo 29.

Parecia-lhe uma falta de respeito a atitude de Balbino. Pensava: — “Num enterro, ora veja!”. Podia ter jogado fora ou rasgado o papelzinho. Mas guardou, sei lá por quê. Decidiu, porém: — Não telefono.

Até o fim do dia, ora chorava pela avó, ora pensava em Balbino. Deitou-se cedo, mas só conseguiu pegar no sono alta madrugada. De manhã, bem cedinho, estava de pé. Escovou os dentes, lavou o rosto, imaginando: — “O telefone não deve ser do trabalho, deve ser de casa”. Durante uns dez minutos ficou matutando. Valeria a pena ou não?

Finalmente, com o coração batendo mais forte, discou. Atende uma voz de homem. Começa:

— Foi o senhor que.

Não teve nem tempo de completar. Ele se antecipou, radiante:

— Já sei, já sei! É aquela senhorinha de ontem. Muito prazer.

Nervosa, atalha:

— O senhor fez aquilo. Um momento. Fez aquilo em hora e local impróprios. Afinal, o senhor não tinha o direito!

Estava ofegante, quase chorando. Do outro lado da linha, ele se desmanchava:

— Tem toda a razão. Está ouvindo? Toda a razão. Mas não me interprete mal. Com licença. Um minutinho só. Eu seria incapaz de, entende? O que senti por si foi uma forte simpatia. Pelo amor de Deus, não pense que...

Parou. Ela não sabia o que dizer, o que pensar. E o rapaz, mais seguro, continuou:

— Viu como foi bom eu ter lhe dado o meu telefone? A senhorinha...

Preferia “senhorinha” a “senhorita”. Podia chamá-la de você, mas uma certa cerimônia, no começo, ajuda. Continuou, com a boca no fone, sentindo que o romance estava nascendo:

— Lhe dei o meu telefone e vou ter a satisfação de saber o seu nome. O meu é Balbino. — E disse, por extenso: — José Marcondes Balbino. Por obséquio, sua graça?

Arlete vacilou. Teve medo de confiar a sua identidade a um desconhecido. Mas refletiu que um nome é pouco, quase nada e que há muitas Arletes por aí. Disse, não sei por quê, comovida:

— Arlete.

O outro repetiu:

— Arlete.

E ela:

— Desiludido?

Exagerou:

— Lindo, lindo. — E insistia: — Bonito nome! Dou-lhe a minha palavra!

Ele não parou mais. Ora a chamava de senhorinha, ora de você ou, ainda, de meu anjo. Contou que era baiano e acrescentou, feliz:

— Por isso é que falo muito.

Como a menina insistisse em tratá-lo por senhor, Balbino arrisca:

— Seria muito sacrifício para você me chamar de você?

Arlete concordou. Era muito meiga e tinha uma facilidade espantosa para se afeiçoar por gente, bichos, móveis. Conversaram cerca de uma hora. Quando saiu do telefone, a mãe passou-lhe um pito:

— Tua avó foi enterrada ontem e você já está namorando?

Começou a chorar:

— A senhora faz essa idéia de mim? Oh, mamãe? Nunca pensei.

Explicou que era um rapaz que acabava de conhecer. Dizia que:

— Não há nada, mamãe. Quer que eu jure?

Mas já conhecia toda a vida de Balbino. Tinha vinte e oito anos, era advogado (embora não exercesse a profissão) e vinha tentar a vida no Rio. No dia seguinte, foi ele que ligou. No fim de dez minutos de conversa, a menina não se conteve:

— Você que fala tão bem... Sabe que você fala bem pra chu¬chu? Por que você não segue carreira?

Tentou explicar:

— Minha filha, o negócio não é assim, não. O advogado não tem outra saída. Ou é um Clóvis Beviláqua, ou uma besta. Já que não sou um Clóvis Beviláqua, também não quero ser uma besta.

Ela ainda suspirou:

— Uma carreira tão bonita!

Balbino vacila e acaba dizendo:

— Olha. Há outro motivo, compreendeu? O seguinte: — minha vocação é outra.

— Qual?

Fez um mistério:

— Você saberá um dia. Não se incomode.

Os telefonemas diários continuaram. Na missa do sétimo dia, lá compareceu o Balbino. Não sendo parente, não sendo nada, era o mais grave talvez e, ainda por cima, num luto total. Terminada a missa, Arlete fez a apresentação:

— Papai, aquele rapaz que lhe falei.

O velho teve a exclamação:

— Ah, o advogado?

Passou. Dois dias depois, Arlete falava no telefone. E, súbito, o pai arranca o aparelho das mãos da pequena: — “Deixa que eu falo”. Disse tudo:

— Ó rapaz! Escuta. Eu sou contra namoro de esquina, de portão. Namoro é dentro de casa. Você não tem boas intenções? O quê? Suas intenções não são boas?

— Claro, claro!

— Então vem pra cá, rapaz! Eu te espero pra tomar um café contigo.

O velho quando gostava de uma pessoa era de uma efusão brutal. Mais tarde, aparece Balbino, ressabiado. A cordialidade feroz do velho o assustava. Mas o dono da casa o recebeu de braços abertos. O convívio com as Novas Gerações o rejuvenescia. Fez perguntas:

— O amigo exerce a profissão?

Meio sem jeito, explicou:

— É o seguinte: — estou desiludido com os colegas. Por exemplo: — na Procuradoria do Estado conheço vários que nem sabem o que é vara. Parece piada, mas juro e posso até citar nomes. Um procurador que não sabe o que é vara!

O velho achou graça:

— Vejo que o amigo gosta de paradoxo. Mas há talento. Você se esquece do Otto Lara Resende? É uma mentalidade! E brilhante!

Balbino, grave, admitiu uma exceção para o Otto, que, segundo concordou, falava bem “pra burro”. A conversa durou até alta madrugada. Na saída, o futuro sogro bateu-lhe nas costas:

— Venha sempre, rapaz!

A partir de então, todos os dias, Balbino ia para a casa da namorada. Começou a ser apresentado como “meu noivo”. E toda a rua sabia que Arlete estava de amores com um advogado.

Uma noite, a sogra vira-se para Balbino:

— Está de luto por quem?

O rapaz tomou um susto. Ele próprio não sabia. Estava de luto, eis tudo. E teve de confessar, vermelho, confuso:

— Por ninguém. Eu sou assim mesmo.

Foi bastante honesto com a família. Disse que se casaria quando melhorasse de situação. Fez mistério:

— Estou esperando por uma vaga. — E repetiu, baixando a vista: — Uma vaga.

Não se sabia, nem ele disse, que vaga seria essa. Mas os vizinhos, os parentes passaram a falar da “vaga” como de alguém, de uma pessoa. O tempo foi passando. Cinco, seis meses, oito e nada ainda. Já o interpelavam na calçada:

— Mas sai ou não sai essa vaga?

— Estou caprichando.

Até que o pai de Arlete avisou, piscando o olho:

— Estou mexendo também os meus pauzinhos. Tenho relações, amizades. — E baixava a voz: — Vem por aí uma bomba.

Uma tarde, Balbino entra e é abraçado, beijado, apalpado por todo mundo. Olha em torno: — “Mas o que é que há?” O sogro adiantou-se, de olho rútilo:

— Rapaz! Arranjei o teu emprego. E sabe onde? Na Procuradoria! Tu vais ser companheiro do Otto, do Laet, do Genolino. E olha: são Oitocentos pacotes!
Atônito, Balbino olha as caras que o cercavam. Alguém o puxa pelo braço. Desprende-se, num repelão:

— Com licença. Um momento. Meu sogro, há um equívoco. Eu não pedi nada. Eu estava esperando uma vaga e finalmente.

No seu assombro, o velho balbucia:

— Você recusa?

Explicou:

— Um momento. É que a tal vaga saiu, finalmente. Saiu hoje. Recebi esta tarde a comunicação.

O sogro aperta a cabeça entre as mãos:

— Quer dizer que... Então eu banquei o palhaço?

O outro perdeu a paciência:

— Escuta, escuta! Direito não é minha vocação. Entende? Não é minha vocação. Não dou para esse troço, juro. E tenho a minha vocação. Ouviu? Ponho a minha vocação acima de tudo! De tudo!

Esganiçou-se tanto que, afinal, conseguiu intimidar a família. Pausa. Ele arqueja. Um dos presentes pensa: — “Será que ele é epilético?”. O sogro o olhava, amargurado e mudo. Finalmente, o velho quer saber:

— Que vocação é essa? Pra ser melhor do que procurador do Estado, deve ser de rajá, de Rockefeller. Fala!

O genro ergue a fronte, enche o tórax e parece desafiar o mundo:

— Vocação de coveiro. Arranjei a vaga no São João Batista. Coveiro, sim! É a minha vocação. Coveiro!

Houve, ali, um silêncio maravilhado. Os presentes se entreolharam. O primeiro a se recuperar foi o velho. Abotoa Balbino:

— Isso é piada? Responde! É piada?

Berrou também:

— É a minha vocação! Todo mundo tem a sua. Eu também tenho a minha. Se Deus quiser, hei de enterrar muita gente boa.

Ia contar que tivera o primeiro aviso de sua predestinação quando, aos sete anos, enterrara um cachorro atropelado. Mas não teve tempo de nada. O velho passa-lhe, por baixo, um rapa tremendo. Caiu para se levantar e cair novamente. Saiu, de lá, a tapas, a pescoções. A sogra berrava da porta:

— Urubu! Urubu!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Pacto de pecado e de morte

Quando ele, no telefone, propôs um encontro, Luci quase caiu para trás, dura:

— Você está maluco? Doido?

E ele:

— Por quê? Tem alguma coisa demais? É um encontro numa sorveteria ou onde você quiser. Eu digo o que tenho para dizer, você me escuta e pronto. Só.

Mas Luci protestava ainda. Reagiu ferozmente: “Você se esquece que sou casada? Que tenho marido, filhos?”. Do outro lado da linha, Reginaldo tratava de argumentar:

— O que eu estou pleiteando de ti é apenas um encontro e nada mais. Um simples encontro cordial. Tu estás fazendo um bicho-de-sete-cabeças à toa, sem motivo.

Apavorada, perguntou: “Mas pra quê? Com que finalidade?”.

Respondeu:

— Preciso falar contigo, dizer umas coisas a ti. Te juro o seguinte: será o primeiro e o último encontro. — Toma respiração e suplica: — Tu vais?

Silêncio no telefone. Por fim, quase sem voz, ela admite:

— Irei.

O ENCONTRO

Marcaram o encontro numa confeitaria do Largo da Carioca. Nenhum local mais lírico e inofensivo. Todavia, ela, que se criara num colégio de irmãs e tivera em casa uma educação medieval, tiritava de pavor. E só transigiu, afinal, só condescendeu em ir porque Reginaldo frisara: “Só esta vez e nunca mais”. Há quinze dias que ele, às tardes, ligava para ela. Começava sempre assim: “Sou eu. Te amo, te amo e te amo”. Ora, Luci pertencia a uma dessas famílias em que a fidelidade feminina era um hábito, uma virtude obrigatória e hereditária. Recebeu um impacto medonho. Ameaçava sempre: “Eu desligo. Olha que eu desligo”.

Mas não desligava. Reginaldo era amigo do marido. Desde que começaram os telefonemas, ela experimentava uma sensação atroz de culpa, de mácula. Em todo caso, o telefone não tinha o perigo, a ameaça da presença material. Eis que Reginaldo pedia, pela primeira e última vez, um encontro. Na hora marcada, nervosíssima, Luci entrava; pouco depois, aparecia Reginaldo.

FRAQUEZA

Sentaram-se num canto: ela, no pavor de pessoas conhecidas; e ele, convulso de paixão. Repete: “Sabe que eu te amo muito? Que eu te amo cada vez mais?”. Falava com tanto fervor e, ao mesmo tempo, com tanta humilhação que, sem querer, Luci teve uma fraqueza deliciosa, ou seja: admitiu que também o amava. Logo, porém, sublinhava: “Mas você não vê que esse amor é impossível?”. Reginaldo inclinava-se na mesa, alucinado de esperança: “Por quê? Impossível por quê?”. E a pequena:

— Por quê? Pelo seguinte: eu sou uma criatura que perdoa tudo. Para mim, só uma coisa tem importância: a traição. Compreende? — E continua, com os olhos cheios de lágrimas: — Eu, se traísse uma vez, uma única vez, não poderia olhar nunca mais nem meu marido, nem meus filhos. E teria que morrer, Ouviste? Depois da traição, eu teria nojo da vida!

Reginaldo, porém, estava mais seguro de si mesmo e do próprio sentimento, agora que se sabia amado. Trincou as palavras nos dentes, com uma obstinação de fanático: “Hás de ser minha! Hás de ser minha!”. Ela baixa a voz, espantada:

— Tua? Nunca! — Pausa e prossegue, na violência contida: — Eu seria tua, sim, se me matasse depois. Só assim!

Reginaldo olha em torno. Por cima da mesa, apanha a mão da pequena. Grave e lento, pergunta:

— Queres um pacto de morte? Escuta: tenhamos uma tarde, uma noite de amor, e, em seguida, a morte, compreendes-te? Eu morreria mil vezes para viver uma hora, meia hora contigo! Queres? Seria lindo, não seria?

Por um momento, Luci deixa quase de respirar, como se a dupla sugestão do amor e da morte a arrebatasse. Foi um breve e violento delírio: amar e morrer,.. Pensa que os defuntos não têm memória, nem culpa, como se a morte levasse tudo. Abre os olhos, diz, baixinho, para si mesma: “Meu marido, meus filhos...”. Mas a voz interior responde que uma morta não tem marido, não tem filhos, nada. Olharam-se em silêncio, enamo¬radíssimos. Dir-se-ia que a idéia de morrer os unia mais. E, então, sem desfitá-la, pergunta:

— Queres morrer comigo? Deve ser fabuloso morrer contigo!

Ela responde, fascinada:

— Quero sim. Quero...

Baixa a cabeça, deliciada.

E Reginaldo:

— Amanhã.

AMOR E MORTE

Ali mesmo combinaram tudo. No dia seguinte, às quatro horas, ela iria ao apartamento dele em Copacabana. Quando a pequena chegasse, estariam, em cima da mesinha-de-cabeceira, dois copos. Luci quer saber: “Veneno?”. Ele fez que sim com a cabeça. Despediram-se, felicíssimos. E o que a fascinava, acima de tudo, é a impunibilidade que a morte dá às criaturas.

Nessa noite, quando o marido quis beijá-la, Luci fugiu com o rosto e usou uma desculpa inesperada e lógica: “Estou com muita dor de cabeça, meu bem. Não consigo nem ficar de pé, nem olhar para as paredes de tanta dor”. Na verdade, queria preservar-se para o pecado e para a morte.

O PECADO

À tarde, às quatro horas, como estava marcado, ela bate na porta do apartamento. Estava ali, sem saudade nenhuma do marido, dos filhos, da casa ou do mundo. Entra e, depois que Reginaldo fecha a porta, Luci, de pé, fecha os olhos e pede:

— Me beija, me beija!

E, de fato, houve um primeiro beijo, com uma violência e um desespero de quem vai morrer. Quando se desprenderam, Luci, crispada, balbucia: “Estás vendo?”. Eram os dois copos, cheios, em cima da mesinha. Três horas depois, já caíra a noite. Ela está com a cabeça pousada no seu peito. E ele, brincando com os cabelos da moça, fala: “Agora podemos morrer”. Do fundo do seu sonho, Luci parece espantada:

— Morrer?

E ele, com a boca encostada no seu ouvido:

— Quero morrer contigo.

Sem uma palavra, Luci levanta-se. Com os pés frescos e nus, vai apanhar os dois copos, e, antes que o rapaz pudesse prever o gesto, corre até a janela, que se abre para a noite, e despeja, lá do alto, do décimo segundo andar, todo o veneno. Depois deixa cair um e, depois, o outro copo. Sem compreender, ele quer segurá-la, mas ela se desprende com violência:

— Agora que me ensinaste o amor, não quero morrer, nunca mais!

E, com efeito, por um momento, eles se sentiram eternos.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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