sábado, 10 de setembro de 2011

As águas no São Judas

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Supermercado Mini Preço - Rua Indaial - São Judas - Itajaí - SC
A enchente na cidade de Itajaí - Santa Catarina: algumas fotos tiradas esta manhã na Rua Indaial (perto do Supermercado Mini Preço), e adjacentes como as ruas Rio do Sul, Willy Henning, Ciriaco Meirinho, Rosendo Claudino de freitas e outras. No último boletim da Defesa Civil, desta tarde, as águas dos rios já estão baixando.

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Rua Ciriaco Meirinho - São Judas - Itajaí - SC
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Rua Rosendo Claudino de Freitas - São Judas - Itajaí -SC
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Margarida

Durante os meses de gravidez, houve toda sorte de palpites quanto ao sexo da criança. Menino? Menina? A mãe agarrou-se à parteira. Mas esta quis tirar o corpo fora. Tanto insistiram que ela sempre deixou escapar alguma coisa, embora com uma ressalva:

— Não é certo, não. Mas, pelas batidas do coração, deve ser menino.

Suspiro materno:

— Ah, eu queria tanto uma menina!

Protestavam: “Mas que bobagem! O primeiro filho deve ser homem!”. Edgardina era obrigada a explicar: “O negócio é o seguinte: menina faz mais companhia!”. O pai, Amadeu, não tinha preferência: “Tanto faz, tanto faz. Eu topo tudo”. E, no dia do parto, foi até interessante. Amadeu, no corredor, gemia de dor de dente. De repente, abrem a porta, ele se arremessa e recebe o impacto da notícia:

— Menina!

Estacou sem coragem de entrar: as lágrimas corriam grossas e fartas e o rapaz abriu os braços para o teto: “Oh, graças, meu Deus; graças!”. No quarto, cansada de muito sofrer, a mulher pediu: “Beija-me”. Adiante, nuazinha, em cima de uma toalha felpuda, estava a menina, E, de repente, Amadeu tem a exclamação:

— Ué! Minha dor de dente passou!

MARGARIDA

Durante vários dias, parecia bobo, de tanta felicidade. Confidenciava no emprego: “Tem a minha cara!”. De vez em quando, porém, mergulhava em meditação e desabafava: “Estou pensando no dia em que minha filha namorar”. Era enérgico e reacionário: “Não topo namoro de portão, esquina ou cinema; tem que ser dentro de casa”. Os colegas achavam graça:

— Toma jeito!

Finalmente, no terceiro ou quarto dia, bate o telefone. Era Edgardina: “Vem correndo, Amadeu. Tua filha está morrendo!”. Atirou-se, em mangas de camisa; e, como o elevador demorasse, veio mesmo pela escada, como um louco. Quando entrou em casa, era tarde. Nunca se soube ao certo como foi aquilo. A menina, com quatro dias de nascida, teve uma agonia breve, quase imperceptível. Mal se sentiu quando morreu.

Os pais quase enlouqueceram. Edgardina recuperou-se mais depressa. As vizinhas, as parentas se debruçavam em cima de sua dor; usou-se muito o seguinte argumento: “Deus sabe o que faz”. Mas o que realmente a impressionou foi o que lhe disse uma tia, senhora de muita experiência.

— Quem sabe se, mais tarde, ela não ia sofrer muito? Quem sabe?

Em redor, houve o coro das comadres:

— Mulher sofre tanto!

O marido, porém, foi mais difícil de convencer. Queria sofrer, fazia questão de cultivar a própria dor. Depois do enterro, deu a ordem: “Manda todos os ternos para o tintureiro”. E ninguém o dissuadiu do luto fechado. A própria Edgardina sugeriu, a medo: “Mas eu sempre ouvi dizer que não se punha luto para recém-nascido”. Foi categórico:

— Se ninguém põe, eu ponho. Graças a Deus, tenho sentimento!

Ao mesmo tempo, anunciou que queria um novo filho, isto é, uma nova filha. A mulher quis achar que ainda era cedo etc. etc. Amadeu cortou as suas ponderações: “Não, senhora, em absoluto! Se Deus quiser, dentro de nove meses, eu terei outra filha, com o mesmo nome”. Na verdade, o que ele admitia, no seu desespero, é que a próxima filha seria a mesma, renascida.

A TRAGÉDIA

Nove meses depois, nascia um menino. A princípio, Amadeu não quis compreender: “Menino?”. Estava tão certo de que seria menina que experimentou um desgosto medonho. Quase blasfemou: “Não é possível, meu Deus, não pode ser!”. A família, vendo a sua dor obtusa, já admitia a hipótese de uma psicose; houve resmungos: “Ora veja!”.

Começou, então, a luta contra a natureza, contra a fatalidade, talvez contra o demônio. Ano após ano, nascia uma criança naquela casa; e sempre menino. Amadeu encarniçava-se: “Hei de ter uma filha nem que o mundo venha abaixo!”.

Pouco a pouco, tomava-se de surdo rancor contra Edgardina, como se a mulher fosse responsável pelo sexo dos filhos. Ele esbravejava na presença das visitas: “Se a primeira foi mulher, por que os outros não são, meu Deus?”. A mãe, em voz baixa, confidenciava a queixa para as conhecidas:

— Gozado! E eu é que pago o pato!

Ela, com efeito, enchia-se de horror da maternidade. Sempre que tinha um filho, fazia, na hora, a pergunta: “Menino ou menina?”. A resposta não variava: “Menino”. Só faltava morrer. Finalmente, o sétimo filho foi uma menina. Assim que constatou o sexo da criança, Amadeu foi com um cortejo de vizinhos para o boteco da esquina. Com o lábio trêmulo, o olhar de alucinado, berrou:

— Pode beber todo mundo, que eu pago! 

Tomou um pileque tremendo e comemorativo.

A NOVA MARGARIDA

Foi um descanso para todo mundo e, sobretudo, para Edgardina. Avisou em alto e bom som: “Esse negócio de filho, já sabe. Stop. Nunca mais, que eu não sou máquina de filhos, ora essa!”. Quanto ao Amadeu, era outro homem. Realizara o desejo que era sua obsessão e podia piscar para os amigos: — “Já tive a filha. Agora vou viver a minha vida”.

Estava, porém, envelhecido. Casara-se tarde e as atribulações dos últimos anos o encheram de rugas e cabelos brancos. Celebrara, há pouco, o quadragésimo quinto aniversário. Os amigos mais íntimos o chamavam de “o velho” e diziam, às gargalhadas: “Você não dá mais no couro”. Era uma blague, mas que tinha um fundo de verdade melancólica.

Em casa, olhando para a mulher, gorda, desleixada, sentia um gosto amargo na boca. Mas talvez continuasse na rotina implacável se, um belo dia, não encontrasse uma alegre conhecida dos seus tempos de solteiro. Era madame Ziza.
Muito dada e espalhafatosa, ela foi dizendo: “Tomaste um banho de desaparecimento?”. Contou que estava estabelecida, num lugar assim, assim, e prosperava de uma maneira desenfreada. Baixou: “Sabes qual foi meu grande golpe?”. Ele quis saber e madame Ziza soprou a revelação:

— Os brotinhos! Só trabalho com brotinhos!

— No duro?

— Palavra de honra!

Despediram-se, afinal; e madame ainda insistia: “Aparece, aparece!”. Durante dias, meses e até anos, ele pensou, com deslumbramento e náuseas, nesse lugar onde meninas de família, simples colegiais, quase crianças, tinham a primeira experiência de amor infame. Por vezes, o assaltava a idéia de procurar madame. Mas pensava na própria filha. Confessava aos amigos: “Se eu fosse a um lugar desses, não teria mais coragem de beijar minha filha”.

“Deixa de ser burro. Então, me dá o telefone de madame, dá?” Acabou dando. E dois ou três amigos que, em épocas diferentes, foram lá vinham fora de si. Contavam maravilhas: “Madame me arranjou uma menina de quinze anos, imagina!”. Surgiam outros detalhes: “Menina de família, filha de um pro¬essor!”.

Durante horas e horas, Amadeu ficava ouvindo as minúcias mais vis. Insistiam com ele: “Vai lá, vai lá!”. Embora sentindo a tentação nas profundezas do ser, reagia:

— Isso é uma indignidade! Onde já se viu? Uma menina de quinze anos!

A INFÂMIA

Correu o tempo. E, afinal, chegou o dia em que Margarida fez quinze anos. Segundo as vizinhas, muito exuberante, era bonita como uma pintura. Outros diziam: “uma adoração de pequena”. Sobretudo os olhos chamavam a atenção, por causa do azul extraterreno. Houve uma grande festa de aniversário e quem visse a menina, na sua graça frágil e intensa, não esqueceria, jamais, sua imagem.

No dia seguinte, na cidade, Amadeu dá de cara com madame. Muita festa, de parte a parte, e, no fim, ela convida, formalmente: “Vem que eu tenho, pra ti, um broto espetacular! Uma coisa por demais!”. E insistiu: “Fabulosíssima!”. Amadeu, transpirando, duvidara: “Pode não fazer fé com minha cara”. A outra foi categórica: “Deixa de ser bobo. Faz fé com qualquer um. Eu mesma, te juro que fiquei besta. Uma vocação, meu filho”.

Então, aquele pobre velho, que praticamente só conhecia a rotina conjugal, experimentou uma espécie de embriaguez. A aventura o seduziu pelo que oferecia de inédito, de sórdido, de abjeto. Deixou-se levar; sentia-se dominado por um delírio lúcido e terrível.

Subiu umas escadas, percebeu um cheiro de flores e, por fim, estava numa sala. Madame soprou-lhe: “Dois mil cruzeiros, hein? Tabela especial. Mas o artigo vale muito mais”. Ele esperou, em pé, com os ombros vergados ao peso de uma velhice subitamente maior e inapelável. Vem alguém, com passos macios, no corredor. É ela, só pode ser ela. Aparece, agora, e ele tem uma espécie de uivo.

Não pode ser e, no entanto, está diante dele, com um pijama cinza, finíssimo, sua filha Margarida. A menina corre, foge. Ele segue no seu encalço e a segura no corredor. Ela pensa que o pai vai matá-la. Espera a morte e quase a deseja. E, súbito, Amadeu perfila-se. Diz-lhe, sem ódio, com uma ternura que resistiu a tudo:

— Eu não quero, Ouviste? — E repetiu, duas vezes, sem desfitá-la: — Nunca mais, nunca mais!

Matou-se, ali mesmo, a seus pés. Desde então, sempre que madame a chamava, Margarida experimentava uma brusca e aguda nostalgia do pecado. Queria dizer “sim”. Mas aparecia, diante dos seus olhos, uma cabeça grisalha e ensangüentada; e a menina gritava, ao telefone, três vezes “não”.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Doente do pulmão

Certa manhã, quando foi apanhar o leite, encontrou aquilo no chão, junto da porta. Era um envelope branco, fechado. Por fora, estava escrito: “Para d. Clélia”. Balbuciou:

— Pra mim?

E, então, no seu quimono rosa por cima da camisola, os pés calçando as chinelinhas, abriu o envelope. Teve uma surpresa ainda maior ao desdobrar o papel: versos! Leu, releu, tresleu, como se o soneto, que lhe pareceu fabuloso, estivesse escrito em latim, grego ou chinês. E não havia dúvida: a destinatária era ela.

Imersa na releitura, não sentiu a aproximação do marido. Geraldo espichava o pescoço e lia também, por cima do seu ombro.

Clélia tomou um susto. Vira-se instantaneamente e seu primeiro impulso, instintivo e irresistível, foi esconder o papel. Mas Geraldo estendia a mão, exigindo: “Dá isso, aqui, anda!”. A pequena obedeceu, vermelhíssima. E ele, num espanto mudo, virava e revirava o papel, cheirava-o. Interpelou Clélia: “Quem mandou?”. Ela, ainda perturbada, respondeu:

— Sei lá!

Preparado para sair, num terno branco engomadíssimo, ele rosna:

— Ah, se eu descubro o engraçadinho que fez isso, parto-lhe a cara!

O MISTÉRIO

Para Clélia, o poeta anônimo, que irrompia na sua vida, era alguma coisa de insólito, de sem precedentes. Casada há três anos, sua existência matrimonial não oferecia uma variante, uma novidade, uma emoção especial. A rigor, a única compensação que lhe restava era o rádio. Adorava as novelas e os programas humorísticos. Aos sábados, ia ao cinema, sessão das oito. Só. Fora disso, era o tédio, a rotina, a vida que se repetia. O soneto, que o autor passara por debaixo da porta, significava uma experiência inédita.

Mal o marido saiu, indignado, falando em “quebrar caras”, ela foi, de porta em porta, anunciar o acontecido. Imediatamente formou-se, na calçada, um grupo feminino. Aquelas mulheres, falando pelos cotovelos e, ao mesmo tempo, num mexerico deslavado, faziam pensar em galinhas de desenho animado. Uma delas, de seio imenso, as pernas ilustradas de varizes, foi enfática:

— O que vale é que meu marido não faz versos! 

Outra atalhou:

— Nem o meu!

As mãos nos quadris, atribulada, Clélia pergunta:

— Quem terá sido?

Súbito, d. Silene, que era uma língua de trapo tremenda, anuncia: “Já sei!”. 

Baixa a voz:

— Quem é que faz versos aqui na rua? Quem? — Silêncio expectante; ela própria responde: — O Silveirinha! É ou não é? Batata!

Clélia e as demais caíram das nuvens:

— É mesmo!

O POETA

Talvez existisse, na rua e no bairro, um outro poeta, mas rigorosamente incubado, rigorosamente inédito. Conhecido mesmo, só o Silveirinha, rapaz esquálido e sebento, de calças cerzidas nos fundilhos. Na sua figura anti-higiênica, lamentável, só havia mesmo um único traço de distinção e bom gosto: o pobre-diabo fumava de piteira. O cigarro podia ser, e era, um mata-rato brabíssimo. Mas a piteira, muito longa, muito aristocrática, parecia infundir um quê de fatal e, mesmo, de satânico à sua pessoa.

Acresce que, recentemente, ele andara num sanatório gratuito da prefeitura. Após uns seis meses, retornara à rua. E coisa curiosa: obtivera alta, mas voltara mais escaveirado do que nunca, tossindo que Deus te livre e com um tom esverdeado de cadáver. E mais: não fosse a mãe viúva, que o sustentava, o miserando Silveirinha teria morrido, há muito tempo, de fome. 

Identificado o poeta, Clélia pensa na tísica, que o consome, na aparência pessoal tão desagradável e patética. Sem querer, deixa escapar exclamação apiedada:

— Coitado!

Foi o bastante. Há em torno um burburinho: “Mas, oh, dona Clélia!”. D. Silene dramatiza: “A senhora se esquece que é casada!”. Ela cai em si:

— Claro! É evidente! É muito desaforo!

Geraldo chegou à noitinha, com um humor cordialíssimo. Esquecera por completo os versos enfiados por debaixo da porta. Encontrou, porém, a esposa exaltadíssima. Com o espírito trabalhado pelas vizinhas, ela recebe triunfalmente o marido:

— Sabe quem foi o cachorro? 

Ele, tirando o paletó, faz espanto:

— Que cachorro?

— Você já se esqueceu, é? — Explode: — Logo vi! Você não pensa em mim, não me liga, não me dá nenhuma pelota! Falo do cachorro que me mandou os versos!

O marido bate na testa, envergonhado do lapso: “Sim! Os versos!”. Pigarreia e indaga: “Quem foi?”. E ela, num berro: “O Silveirinha!”. Geraldo quer saber: “Tem certeza?”.

E, então, na base da dedução lógica e infalível, ela demonstra que só pode ter sido o único poeta existente num raio de vários quilômetros. O raciocínio impressiona Geraldo. Clélia continua:

— Toda a rua está de olhos em ti, esperando tua reação. E eu vou te pedir um favor.

— Qual? 

Diz:

— Tu vais me dar um tiro nesse descarado!

O marido recua, de olhos esbugalhados. “Tiro?” Clélia teima: “Perfeitamente. Tiro!”. Geraldo reage: “Sossega, leoa! Você está pensando que esse negócio de tiro é assim? Você é minha amiga ou da onça?”. Essa resistência, que não entrara nos seus planos, enfurece Clélia. Investe sobre o marido:

— Você não me ama! Se me amasse, matava esse miserável! E das duas uma: ou você dá o tiro ou toda a vizinhança vai saber que você não gosta de mim, nem se incomoda comigo! Você tem que mostrar que é homem!

E a verdade é que ela temia mais o comentário dos vizinhos que o Juízo Final. O desconcertado Geraldo apela até para as razões de saúde: “O homem é tuberculoso, ora bolas!”. Clélia exulta: “Você acha o quê? Que o tuberculoso pode desrespeitar a esposa dos outros?”. O marido embatuca. Ela termina historicamente:

— Você usa calças pra quê? Seja homem!

Em seguida, houve uma romaria de vizinhos. Todos, solidários e ferozes, eram de opinião que o Silveirinha merecia uma lição. Disseram horrores do poeta, inclusive uma coisa que ocasionou várias náuseas, ou seja, que ele escarrava no lenço. Então, cercado por todos os lados, submetido a uma pressão tremenda, Geraldo não teve outro remédio.

No fundo, era um pacífico, um bom. Mas acabou numa espécie de indignação artificial, de cólera fabricada, que a mulher e as vizinhas impunham. Prometeu não o tiro, mas uma sova. Já feroz, já heróico, rilhava os dentes.

TOCAIA

A esperança de Geraldo era que não houvesse um segundo soneto. Mudando a roupa no quarto, mais tarde, ele vira-se para a mulher: “Agredir tuberculoso é espeto! Imagina se o homem tem uma hemoptise?”. Clélia enfia a camisola, e simplifica:

— Azar o dele!

Geraldo dormiu. Clélia, não. Ficou em claro, de tocaia. Alguma coisa lhe dizia que o poeta tísico viria, na calada da noite, introduzir por debaixo da porta uma nova e desvairada poesia. Apanha o soneto da véspera e imerge na sua leitura. Era um grito ou, por outra, um uivo de paixão. Silveirinha falava em “braços de marfim”, “colo de alabastro” e “seio de neve”. Tratava-se do pior soneto do mundo e com várias pistas de vantagem.

Pois bem. Clélia continua a vigília, junto à janela entreaberta. Na altura das três horas, vê, à distância, um vulto que, no outro lado da calçada, caminha rente à parede. Era o bandido! Numa euforia medonha, ela acorda o marido: “Evém! Evém!”. Instiga-o: “Quero ver se você é homem!”. Geraldo desce. E, então, aconteceu o seguinte: no exato momento em que, de cócoras, o Silveirinha enfiava um novo envelope, com um novo e tenebroso soneto, talvez pior que o primeiro, Geraldo abre espetacularmente a porta. Ao mesmo tempo, Clélia punha-se a gritar, conclamando os vizinhos:

— Socorro! Socorro!

Dir-se-ia que estava todo mundo acordado. Imediatamente, as sacadas apinharam-se. Homens de pijama irrompiam das casas próximas. Criou-se uma platéia. 

Assistido e estimulado por uma espécie de torcida, Geraldo bateu além da medida. Sem se lembrar do estado pulmonar da vítima, dava-lhe socos, murros nas costas e no peito.

Justiça se faça ao Silveirinha. Apanhou sem reagir. Agachado, com as mãos cobrindo a cabeça a chorar, soluçava alto, soluçava forte. Então, Clélia, que assistia a tudo, grita, num desvario: “Basta! Chega!”.

Investe sobre o marido; agride-o pelas costas: “Covarde! Covarde!”. Geraldo recua, atônito, e realmente acovardado.

Clélia cai de joelhos na calçada. Abraçada ao tísico, chora também; beija-o, soluça:

— Meu marido é mau! Meu marido não chega aos teus pés!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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