quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Eça de Queiroz

Artesão exímio, iniciador do realismo na literatura de língua portuguesa, capaz de domínio inigualável da palavra escrita, Eça de Queiroz (ou Queirós) dissecou a burguesia do Portugal de seu tempo em romances de fascínio permanente.

José Maria de Eça de Queiroz nasceu em Póvoa de Varzim, em 25 de novembro de 1845. Filho ilegítimo de um magistrado, passou a infância longe dos pais, no Aveiro, e formou-se em direito pela Universidade de Coimbra (1866).

Nessa época tomou parte na Questão Coimbra, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, em defesa do realismo na literatura. Estreou então como escritor, na Gazeta de Portugal, com o folhetim de Notas marginais, mais tarde parte das Prosas bárbaras (1905). Em 1867 lançou o Distrito de Évora, jornal que dirigiu.

Admitido por concurso na carreira diplomática em 1870, foi cônsul em Cuba, no Reino Unido e finalmente em Paris, onde permaneceu até a morte. Com Ramalho Ortigão, lançou em 1871 As Farpas, publicação mensal para a qual escreveu artigos de crítica político-social demolidora, mais tarde reunidos em Uma campanha alegre (1890): em estilo irônico e contundente, o livro é uma mostra de jornalismo participante e pioneiramente moderno.

Com Ramalho também escrevera uma novela policial, O mistério da estrada de Sintra (1870). Seu conto Singularidades de uma rapariga loira (1874), além de uma obra-prima, é o primeiro de cunho realista em português. Essa atitude seria elevada a alta eficiência expressiva nos romances que publicou em seguida.

Eça se casou (1886) com Emília de Castro Pamplona, irmã de um amigo e companheiro de viagens, o conde de Resende. De 1889 em diante o consulado de Paris, que muito ambicionara, não lhe alterou a produtividade; fundou a Revista de Portugal (1889-1892) e continuou a colaborar em jornais portugueses e brasileiros, enviando cartas, ecos, "bilhetes" lidos e relidos com avidez.

Romancista

Eça de Queirós é um dos maiores ficcionistas da literatura de língua portuguesa. Dotado de senso estético invulgar, desde o início impressiona pela riqueza e flexibilidade estilística. Escreve o português mais vivo de seu tempo, sem pruridos puristas e impregnado de verdade concreta, capaz de recriar e criticar todos os seres e coisas com originalidade e volúpia.

Humorista irreverente, no romance O crime do padre Amaro (1875) essa característica se alia a um realismo severo, feroz e espirituoso ao mesmo tempo, que satiriza a corrupção do clero e reconstitui seus costumes com extrema vivacidade. Mais densa é a escrita de O primo Basílio (1878), primorosamente construído, com as personagens como que aprisionadas, em seus impulsos e alternativas, pela circunstância social que as limita e condiciona.

Mais voltado para a dinâmica das relações do que para a psicologia dita profunda, Eça tempera o psicólogo social com o amante da natureza, que a registra com frescor e embevecimento. Na sociedade inquieta, entre fútil e amarga às portas da revolução republicana, a usura e a beatice pequeno-burguesa encontram um caricaturista minucioso e às vezes cruel em A relíquia (1887), em que a aventura do humor não se esquiva às máscaras do grotesco.

"Porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira." Antes da obra-prima que é o romance Os Maias (1888), e de suas implicações, o autor talvez não fizesse essa anotação. Obra maior da maturidade, esse vasto panorama de uma família burguesa, de seu prazer e sua dor, sua sensualidade e seu cerco de convenções, realiza até o mais alto grau o gênio de Eça de Queirós. A captação de cada passo, cada ranhura ou eco da paixão incestuosa leva o escritor a beirar a noção do inconsciente e a dar um sentido existencial às marcas do desengano.

Outro livro admirável é A ilustre casa de Ramires (1900), em que a observação e a fina ironia focalizam a pequena nobreza decadente, entre seus últimos bens e os males que a corroem. Sobressaem neste caso, junto às outras saborosas peculiaridades do mestre, a ampla visão sociológica, em que avulta o amor pela terra portuguesa, e o empenho metaliterário que faz do protagonista autor de um árduo romance.

Essa agudeza não se acha menos presente em A cidade e as serras (1901), deliciosa sátira dos progressos ainda canhestros dos tempos modernos e reencontro do romancista com a paisagem de sua meninice. Vê-se também aí, no jogo dos contrastes, o apego nostálgico à essencialidade honesta da vida ainda natural e limpa do interior.

Perfeccionista obsessivo, Eça estigmatiza a escravidão ao ouro ou a qualquer acúmulo improdutivo, mesmo que de requintes, de livros. Uma sábia alegoria do problema suscitou na novela O mandarim (1880) algumas de suas páginas mais fecundas. O tema, no fundo, se depura ainda no esplendor austero das vidas de três santos, reunidas em últimas páginas (1912).

Eça foi escritor de uma auto-exigência quase impiedosa. Além de deixar inacabados e inéditos vários trabalhos que não o satisfizeram, desprezou a primeira versão de Os Maias, publicada em 1980 com o título de A tragédia da rua das Flores.

Outras faces

De realismo menos estrito e quase mágico nos Contos (1902), Eça deixou sua crítica dispersa em periódicos e cartas que se publicaram aos poucos -- a autobiográfica Correspondência de Fradique Mendes (1900), as Cartas de Inglaterra (1903), os Ecos de Paris (1905) e as Cartas familiares e bilhetes de Paris (1907).

Em Notas contemporâneas (1909) o crítico se envolve com os principais temas e debates de seu tempo e se faz presente também em O Egito (1926), sobre a viagem ao Oriente. Na ficção que ficara inédita, há ainda seduções, e fortes, em A capital, O conde de Abranhos, Alves & Cia., os três impressos em 1925. Por fim, a encantadora tradução de As minas do rei Salomão (1891), de Riger Haggard, é um divertimento inesquecível.

Criador de tipos que ficaram proverbiais, como o conselheiro Acácio ou Jacinto de Tormes, nem sempre os fez, como estes, algo esquemáticos e caricaturais. Maria Eduarda, entre outras criaturas, é de verdade profunda e de presença inefável.

É questão de sentir e entender ao mesmo tempo. Como lembrou Moniz Barreto, "a paixão e a fantasia ocupam um lugar importante em sua obra, ao lado da observação e da análise". Eça de Queirós morreu em Paris em 16 de agosto de 1900.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
Leia mais...

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O correr dos anos

Quem ficou contente foi Bonifácio Ponte Preta (o Patriota), com a inauguração da tal adutora do Guandu, que resolve o problema da água no Rio de Janeiro até o ano 2000. Tudo que é noticiário da imprensa sobre o assunto o Boni recorta e cola num álbum confeccionado por ele mesmo e que tem uma bonita fita verde-amarela, badalando na capa.

Por exemplo aquele artigo do David Nasser, que saiu no "O Cruzeiro', sob o título de “As águas da ingratidão", no qual o repórter começa assim: "As águas da ingratidão municipal começaram a rolar" e depois diz que "a obra do século", que quebrou o galho da falta de água até o ano 2000, foi inaugurada e se esquece, deliberada, criminosa e vergonhosamente do nome de Carlos Lacerda, que foi — segundo Nasser — o homem que botou o cano lá no rio, pois esse ai ligo — eu dizia - o Bonifácio achou tão bacana que comprou dez "O Cruzeiro" e colou tudo no álbum.

Estou contando o detalhe para mostrar que o patriótico Boni está exagerando às pampas, no seu fervor cívico pela obra. Ele não fala noutra coisa e ficou uma fera com o distraído Rosamundo, quando soube que o coitado nem tinha sabido dessa inauguração:

— Perfile-se! — berrou o Boni, assustando o Rosa: — Fique sabendo que estou lhe prestando uma informação que orgulha qualquer patrício, ouviu? Saiba, o senhor, que inauguraram o Guandu. Teremos água até o ano 2000.

Rosamundo ficou besta com que o outro lhe contou. Que coisa, não é mesmo? Água até o ano 2000!

Mas Rosamundo mora na zona do Centro, pois ainda não percebeu que aquilo não é zona residencial. Ontem ele passou os olhos pelos jornais e — como sempre — nem notou o que estava lendo, passando-lhe despercebida a notícia de que caiu uma ponte de Lajes, o que acarretou total falta de água no lugar onde ele mora.

E quando Rosamundo chegou em casa, ainda impressionado com o que lhe contara o patriótico Bonifácio sobre essa coisa de que não vai faltar água até o ano 2000, e abriu o chuveiro para um banho reparador, só caiu uma gotinha na cabeça dele e olhe lá.

Na sua proverbial vaguidão, ele comentou, apenas: — Puxa! Como os anos passaram depressa!
______________________________________________________

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).


Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
Leia mais...

O passeio do pastor

Para um pastor, francamente, acabara de ter um comportamento indigno: pulara o muro sorrateiramente e abandonara sua vigília, para farrear. Mal se viu na rua, o pastor olhou para os lados e reparou que não havia ninguém na rua que, de resto, àquela hora da madrugada costumava estar sempre deserta.

O pastor ficou satisfeito de não ter sido pressentido e seguiu caminhando junto ao muro, até atingir a esquina, onde parou indeciso.

Não parecia ter um caminho premeditado e, se alguém estivesse a observá-lo, acharia que fugira por fugir, apenas para entregar-se à aventura.

Afinal o pastor resolveu-se pela direita. Dobrou a rua e foi seguindo lampeiro, gozando sua liberdade. Foi aí que pareceu vislumbrar alguém do sexo oposto no jardim de uma bela residência. Parou e ficou observando.

Depois de alguns segundos atravessou a rua e tentou empurrar o portão do jardim. Devia estar trancado, mas isto não era problema para um pastor que, momentos antes, dera uma bela prova de destreza, galgando um muro bem mais alto.

Era um pastor danado aquele. Recuou um pouquinho, tomou distância e, pimba... pulou o portão e foi entrando pelo jardim tranqüilamente, para namorar à vontade. O que aconteceu lá dentro eu não vou contar que não estou aqui para dedurar pastor nenhum, mas que ele demorou lá dentro um tempo comprometedor, isto eu não vou negar.

O que eu sei é que passada quase uma hora (pelo menos uns 45 minutos, ele ficou lá dentro e os dois podiam ser vistos por um observador mais atento entre as sombras dos ciprestes que se prestavam muito para cenas românticas) mas — como eu dizia — passado o tempo comprometedor, o pastor voltou pelo mesmo caminho, isto é, pulou o portão, como um ladrão vulgar, e saiu para a rua.

Foi então que o pastor parou no poste e tornou a observar em volta, para ver se havia alguém. Não havia, e ele, sem a menor cerimônia, "regou" a base do poste e foi em frente.
Era, realmente, um pastor bacana. Um belo exemplar de cão pastor alemão.

______________________________________________________

Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).


Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
Leia mais...