domingo, 21 de agosto de 2011

Itajaí no sábado

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Neste sábado subimos mais uma vez o Morro da Cruz e, realmente, a paisagem lá de cima é deslumbrante: quase toda a cidade é visível, inclusive a Foz do Rio Itajaí e a vizinha cidade de Navegantes e sua praia. Na foto acima, um dos mais belos recantos de Itajaí: o Saco da Fazenda. Abaixo um navio-cargueiro deixando nosso porto e o restaurante Monte Castelo. Itajaí (SC), 20/08/2011.

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Mulheres

Foi o diabo quando a fulana veio morar na rua. Primeiro, encostou um táxi na porta da casa vazia. Desceram uma senhora, uma menina e a babá, uma preta gorda, imensa, de busto ilimitado. Nessa altura dos acontecimentos, já a vizinhança em peso, numa curiosidade torpe e unânime, apinhava-se nas janelas. E o fato é que, à primeira vista, a impressão não foi boa.

A tal fulana, com efeito, podia ser vistosa. Mas havia, nos seus modos, roupas e maneiras, um exagero suspeito. Além do mais, o decote deixava bem nítido, nítido demais, o princípio do seio. D. Edgardina, que estava na janela, numa curiosidade tremenda, teve um muxoxo:

— Hum!

As outras mulheres da rua também ficaram com a pulga atrás da orelha. Procurou-se o marido da recém-chegada, e só meia hora depois cochichava-se: “Viúva”. As comadres fizeram suas deduções: “Aqui há dente de coelho”. Quando chegou a mudança, com o mobiliário, as trouxas de roupas, a gaiola com o passarinho, ela se expandiu. Tratava os carregadores com festiva intimidade. Dizia para um e para outro, com uma desenvoltura plebéia:

— Põe isso aqui, velhinho!

Soltava grandes gargalhadas. Enfim, foi quase um escândalo. D. Edgardina, quando o marido chegou, fez cara de nojo. Suspirou:

— Gentinha!

JARARACA

No dia seguinte estourou a bomba: a nova vizinha era uma fulana assim, assim. Com outras palavras: “Não era séria”. Foi d. Edgardina quem deu o alarme, quem pôs as famílias em polvorosa. Perguntaram: “Batata?”. Confirmou, numa ênfase esmagadora: “Palavra de honra!”. Houve quem dissesse: “Logo vi!”. D. Edgardina, no entusiasmo da novidade, dramatizava:

— Profissional no duro! — E pigarreou para acrescentar o detalhe definitivo: — “E de janela!”.

— Credo!

A partir de então, d. Edgardina se incumbiu de promover a sistemática difamação da outra. Tinha sempre uma novidade; e, assim, foi revelando a idade da outra, os endereços anteriores, os escândalos de sua vida. Certa manhã, surgiu de repente com um recorte de jornal; chamou pelo telefone as outras vizinhas: “Vem cá, que eu vou te mostrar uma coisa”. As amigas pasmavam para o recorte. Era a notícia de um conflito numa pensão alegre, entre mulheres da “vida airada”. O jornal dizia: “A mundana Aurora de tal, de vinte e cinco anos, residente...”. Houve um frêmito quando se leu, em voz alta, a palavra mundana. Já não havia mais dúvidas. Um das senhoras, abismada, suspirou:

— Como pode! Como pode!

VERGONHA

Na sua falta de modos, Aurora dava na rua verdadeiros espetáculos. Pela manhã, punha-se a escovar os dentes à janela, com a boca espumando de dentifrício. Recebia os fornecedores em quimonos espetaculares e semi-abertos; punha todo o volume do rádio, como se ela ou os outros fossem surdos. E, da janela, queria dar e receber cumprimentos. Muito cordial, cordialíssima, vivia distribuindo “bom dia” com a mais patética efusão. Mas as mulheres que passavam por ela amarravam a cara e olhavam para o outro lado. Por sua vez, os homens a evitavam. Cada esposa da rua exigira do marido: “Não me cumprimentes essa gaja, hein!”. Um deles, ou por distração ou por leviandade, retribuiu um “boa tarde” de Aurora. Para quê? Quando chegou em casa, a mulher quase o comeu vivo:

— Seu sem-vergonha! Você é igual a ela!

Aurora acabou percebendo. Mas o que tinha de cordial, de conversada, tinha de desaforada. Rosnou: “Essas cretinas!”. Foi para a janela, exaltada, e disse, em voz bastante alta: “São uns buchos horrorosos!”. Atribuía a má vontade existente à inveja. Fez mesmo uma frase: “A maior inimiga da mulher é a própria mulher”.

GREVE DE CRIANÇAS

Mas o que doeu em Aurora, o que machucou seu coração, foi o que fizeram à filha. Nos exageros do sentimento materno, dizia: “Podem fazer o diabo comigo. Podem até me cuspir na cara. Mas não toquem em minha filha!”. E, com efeito, tratava aquela criança como a uma princesa. Agarrava a filha e balbuciava numa estesia: “Meu Deus! Que vontade de te apertar, de te morder!”. A babá protestava: “Credo!”. Mas era amor, alucinado amor. Pois bem. As mulheres sérias da rua também declararam guerra à menina, que, na ocasião, mal completara os quatro anos. As mães advertiam os filhos: “Não te quero brincando com aquela menina!”. Outras positivavam: “Olha que tu apanhas de chinelo!”. O fato é que, sob o peso das ameaças, a menina não tinha com quem brincar. Sem idade para compreender, insistia, mas as outras crianças fugiam, como se ela tivesse coqueluche ou outra doença qualquer, mais grave. Quando Aurora soube, quando percebeu, fez na calçada uma cena terrível. Com a pequena no colo, abraçada a ela, chorou, soluçou publicamente. Interpelava a vizinhança:

— Mas que foi que minha filha fez? Digam! Que foi?

E, na verdade, o que a desesperava, o que a punha fora de si, praticamente louca, era a injustiça. Gritava:

— Eu não presto, eu posso não prestar. Mas minha filha não tem culpa! Minha filha é inocente!

D. EDGARDINA

Foi, não resta dúvida, uma situação desagradabilíssima. Os homens tiveram pena, mas cruzaram os braços, com medo das respectivas esposas. Essas é que exultavam, sobretudo d. Edgardina. Enquanto a outra chorava na calçada, com a filha nos braços, d. Edgardina rosnava: “Isso é carnaval!”. E, como continuasse o escândalo, fechou a janela violentamente. Outras vizinhas fizeram o mesmo. Houve um instante em que Aurora não teve para quem falar. Sempre chorando, meteu-se em casa; e, então, cobriu a filha de beijos, de mimos de toda a sorte. De repente, teve a idéia. Foi apanhar uma cédula de quinhentos cruzeiros, e a deu à filha para brincar. Desafiava, frenética:

— Rasga esse dinheiro, minha filha! Mostra a esses mendigos que tu és rica e que tua mãe há de ganhar muito dinheiro pra ti!

O verdadeiro ódio de Aurora, porém, era d. Edgardina. Não se lembrava direito das outras. D. Edgardina, porém, não lhe saía da cabeça. Prometia a si mesma: “Ela me paga direitinho. Deus é grande”. Não há dúvida que planejava uma vingança. E houve um momento em que pensou até em macumba.

PERDIDA

As senhoras honestas ficavam acordadas até altas horas da noite, num controle feroz. E, assim, foram verificadas as visitas masculinas que Aurora recebia a partir de onze horas da noite. Era um movimento de homens que saíam e entravam, com intervalos regulares, como se obedecessem a um cronômetro fantástico. Embora se tratasse de um pecado alheio que, em absoluto, não a computava, d. Edgardina se enchia de um furor medonho. Chegava a chorar de raiva. O marido tentava apaziguar: “Deixa pra lá! Deixa pra lá!”. Mas d. Edgardina, espiando no escuro pela janela entreaberta, uivava: “Cachorra!”.

Um dia, a menina de Aurora fez anos. A mãe, com sua mania de grandeza, comprou doces numa quantidade astronômica, encheu a casa de bolas multicores, iluminou tudo. Não compareceu ninguém da rua, é claro. Na hora de acender as cinco velinhas do bolo, a mundana teve que cantar sozinha, e chorando, o “Parabéns pra você”. O único acompanhamento foi da babá negra. No fim da festa, Aurora responsabilizava d. Edgardina pela solidão da filha. Dizia, trincando as palavras nos dentes: “Essa desgraçada!”.

Não se passava um dia sem que Aurora soubesse de uma novidade. Disseram, por exemplo, que d. Edgardina espalhara o seguinte: “Ela está rica de tanto cinco mil-réis que já ganhou”. As comadres concordavam: “Isso mesmo! Isso mesmo!”. Mas d. Edgardina, sendo uma senhora de família, honestíssima, tinha um defeito: falava demais. E, certa vez, referindo-se a uma tal vizinha, d. Odete, tachou-a “de unha-de-fome”. D. Odete soube e ficou indignada. Foi pedir satisfações. Houve desaforos de parte a parte. As duas se tornaram inimigas mortais.

Até que, certa ocasião, Aurora estava em casa fazendo limpeza de pele, quando bateu o telefone. Foi atender e ouviu a pergunta: “É dona Aurora?”. Era voz de mulher, mas a pessoa fazia questão de anonimato. A princípio Aurora imaginou um trote. Com o correr da conversa, porém, animou-se e, pouco a pouco, já ia deixando escapar exclamações:

— Imagine! Faço uma idéia! Ora veja!

O seu interesse era tão maior quanto se tratava de d. Edgardina. Durou meia hora a conversa. Antes de se despedir, Aurora, fremente, foi dramática: “Eu não sei quem a senhora é, Mas Deus a abençoe”. Saiu do telefone, transfigurada. Chamou a babá da filha e anunciou:

— Vou me vingar direitinho.

OS CINCO CRUZEIROS

Aurora passou dois ou três dias pensando. Recebeu outros telefonemas. Uma manhã, ligou para o marido de Edgardina no escritório. Fora da vigilância da esposa, o homem teve uma alegre surpresa com uma voz feminina àquela hora. Aurora identificou-se: “É fulana”. Em suma, marcou um encontro, às tantas horas. Ele, de lábios trêmulos e olho brilhante, virou-se para um colega de trabalho; confidenciou: — “Tudo que é proibido, já sabe”.

Compareceu ao encontro, supondo-se irresistível. E, de fato, foi com Aurora para um lugar que só ela conhecia. Desceram uma rua deserta e entraram numa casa suspeitíssima. Estavam agora num corredor; e, então, Aurora disse: “Vamos esperar, aqui, no corredor, um casal que vai sair dali”. O homem não entendeu; ou só entendeu quando, de repente, abriu-se a porta indicada e apareceram d. Edgardina e um vizinho, aliás compadre do casal. D. Edgardina vinha dizendo: “Meu bem...”. Cortou a frase, estacando, diante do marido e de Aurora. Esta abriu a bolsa, tirou uma cédula de cinco cruzeiros que passou ao marido da outra:

— Dê esse dinheiro à sua mulher. Esse bucho não vale nem isso.

Não houve escândalo. Marido e mulher voltaram para casa. Mas, daí por diante, todas as manhãs, antes de sair para o emprego, ele puxava cinco cruzeiros e entregava à mulher:

— Tome!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Divina comédia

No fim de sete anos de matrimônio, o único vínculo do casal eram os cravos do marido, que Marlene gostava de espremer. Fora esta distração profunda e imprescindível, não havia mais nada. Debaixo do mesmo teto, cercados pelas mesmas paredes, eles se sentiam como dois estranhos, dois desconhecidos, sem assunto, um interesse ou um ideal comum. E, como não tinham filhos, a inexistência de criança aumentava o tédio. Até que, um dia, Godofredo toma coragem e ataca, de frente, o problema da monotonia conjugal:

— Sabe qual é o golpe? O grande golpe? A solução batata?

— Qual?

E ele:

— A separação. Que é que você acha? Vamos nos separar?

No momento, Godofredo estava com a cabeça no colo da mulher. Muito entretida, Marlene coçava e catava os cravos do marido com inenarrável deleite. O rapaz insiste:

— Como é? Topas?

Ora, Marlene estava entregue a um mister que lhe parecia de suprema volutuosidade. Justamente acabava de fazer uma des¬coberta da maior gravidade. Com água na boca, anunciou:

— Achei um formidável! Grande mesmo!

E não sossegou enquanto não completou a extração do cravo monumental. Satisfeita, eufórica, vira-se, então, para Godofredo:

— O que é que você perguntou?

Ele repete:

— Vamos nos separar?

A princípio ela não entendeu:

— Separar?

Godofredo confirma: “Exato”. Sem horror, sem drama, apenas surpresa, ela indaga: “Separar por quê? A troco de quê? Sinceramente, não vejo razão”. Sóbrio, mas firme, ele protesta:

— Razão há. Tenha santíssima paciência, mas há. Você quer ver como há? Nossa vida é duma chatice inominável. Te juro o seguinte: — não há no mundo uma vida mais sem graça, mais besta do que a nossa. Há? Fala francamente.

Marlene parece disposta a uma segunda pesquisa no rosto do marido. Pergunta, meio distraída:

— Você me dá três dias pra pensar?

Godofredo faz os cálculos:

— Três dias? Dou.

A VIZINHA

Na história matrimonial de ambos, não havia a lembrança de um atrito, de um incidente sério, de um ressentimento. Eles se aborreciam juntos, eis tudo. Para Godofredo, a monotonia era um motivo mais do que suficiente para a separação. Já Marlene, que respeitava mais a opinião dos parentes e vizinhos do que a do próprio Juízo Final, duvidava um pouco. De qualquer maneira, como era uma mártir, uma Joana d’Arc do tédio, é possível que acabasse concordando. Mas aconteceu uma coincidência interessante: no dia seguinte, conhece Osvaldina, sua nova vizinha. Conversa vai, conversa vem, e Osvaldina, sua vizinha, começa a pôr o seu marido nas nuvens.

— Esposa tão feliz como eu, pode haver. Mas duvido!

Isto foi o princípio. Formara-se um grupo de mulheres na calçada. E Osvaldina continuou, no mesmo tom de comício: “Estou casada há cinco anos. Muito bem. Vocês pensam que a minha lua-de-mel acabou? Que esperança!”. Houve em derredor um assombro mudo e, possivelmente, um despeito secreto. Uma lua-de-mel assim infantil e infinita era um fato sem precedente naquela rua, onde o fastio do matrimônio começava ao término da primeira semana. E a fulana prosseguia, cada vez mais cheia de si e do marido:

— Jeremias me beija, hoje, como na primeira noite etc. etc.

De noite, quando Godofredo chegou, Marlene estava indignada. Contou-lhe o caso da vizinha e explodiu:

— Uma mascarada! Pensa que é o quê? Melhor do que ninguém? Ora veja!

Godofredo rosna:

— Deixa pra lá!

Mas ela estava numa revolta sincera e profunda:

— Você conhece o marido dela? Viu? É um espirro de gente, um tampinha! E vou te dizer mais: não chega a teus pés, não é páreo pra ti!

De cócoras, ao pé do rádio, Godofredo estava procurando uma estação. Súbito, a mulher vira-se para ele. Foi misteriosa:

— Ela não perde por esperar! Vou tomar as minhas providências! Quando quero, sou maquiavélica!

MUDANÇA

De manhã, quando o marido ia sair, ela avisou: “Vou te levar ao portão”. Ele, que enfiava o paletó, espanta-se: “Que piada é essa?”. O espanto era natural, considerando-se que, após dez dias de lua-de-mel, ela jamais rendera ao marido semelhante homenagem. Interpelada por Godofredo, eleva a voz:

— Piada por quê, ora bolas? Você não é meu marido? Devo tratar meu marido a pontapés?

Ele, sem entender patavina, rosna:

— É fantástico!

E vai saindo na frente. Então, Marlene, dando-lhe o braço, exige: “Presta atenção. Lá fora, vou te beijar, percebeste?”. Houve no portão o que o próprio Godofredo chamaria depois de um verdadeiro show. Marlene dependurou-se no braço do esposo e deu-lhe um beijo cinematográfico na boca. Em seguida, enquanto o espantadíssimo Godofredo afasta-se, ela, num quimono rosa, debruçada no portão de madeira, esvazia-se em adeusinhos com os dedos.

A coisa fora tão insólita que, da cidade, o rapaz bateu o telefone para casa, fulo. Começou grosseiramente: “Você bebeu? Acordou com os azeites? Que papelão foi aquele?”.

Marlene engrolou as palavras. Ele insistiu:

— Há uns duzentos anos que tu não me beijavas na boca. Por que esse carnaval?

EXPLICAÇÃO

Quando voltou do serviço, e pôde conversar com a esposa, Godofredo soube de tudo. Quem tomara a iniciativa de proporcionar aos vizinhos e eventuais transeuntes cenas amorosas ao portão fora a nova vizinha. Osvaldina, com efeito, dava com o marido um espetáculo de incomensurável chamego. Marlene vira aquilo e se doera. Prometera de si para si: “Eu te dou o troco!”. E dizia agora ao esposo:

— Essa lambisgóia me atira na cara a sua felicidade. Pensa, talvez, que é a única esposa amada. As outras não são, só ela é que é. Mas comigo não, uma ova!
Devidamente esclarecido, Godofredo esbravejava, por sua vez: “Você resolveu dar um espetáculo e quem paga o pato sou eu? Exatamente eu?”. Exaltada, andando de um lado para o outro, Marlene estaca: “Você é marido pra quê, carambolas?”. E ele consternado:

— Mas, criatura, raciocina! Pensa um pouco! A gente não estava combinando o desquite? Separação?

Só faltou bater no marido:

— Você pensa que eu vou dar o gostinho a essa cavalheira? Se eu me separar, ela vai mandar repicar os sinos, vai espalhar que eu fracassei como mulher. Não, nunca! Você não casou comigo? Meu filho, aqui no Brasil não há divórcio, compreendeu? Agora agüenta!

Ele, pasmo, lívido, abria os braços para o teto:

— Essa é a maior! É a maior!

RIVALIDADE

E, então, todas as manhãs, era um duplo show de indescritível felicidade conjugai. No portão fronteiro, Osvaldina atracava-se ao esposo e submergia-se nas demonstrações mais deslavadas. Beijava-o como se o pobre homem fosse partir para a Coréia ou coisa que o valha. Por sua vez, Marlene não ficava atrás. Como os dois maridos saíssem quase na mesma hora, os dois espetáculos foram muitas vezes simultâneos. A princípio, Godofredo, envergonhado da comédia, quis relutar. Mas Marlene foi intransigente. Definiu em termos precisos a situação:

— O negócio é o seguinte: aqui, dentro de casa, você pode me tratar a pontapés. Mas lá fora, não. Lá fora, eu quero, eu faço questão que você banque o apaixonado até debaixo d’água, sim? Eu nunca te pedi nada. Te peço isso!

Godofredo coçava a cabeça impressionado. Mas era um bom sujeito, doce de caráter, fraco de coração. Compreendia que, para Marlene, aquela misteriosa mistificação matinal era um problema de vida e morte. Suspirou, arrasado:

— OK! OK!

AMOR DE VERDADE

Todos os dias, ela o instigava: “Vamos embasbacar essa gente, meu filho, conta pra eles que tu me amas com loucura e vice-versa”. Pouco a pouco, o espírito de concorrência, de rivalidade, foi se apoderando de Godofredo. À noite, depois do jantar, os dois saíam num agarramento, numa inconveniência de namorados. Já se rosnava na rua: “Aqueles dois são impróprios para menores!”. Simulavam também, no cinema, um falso assanhamento que indignava as pessoas próximas. Em casa, trancados, tiravam a máscara e agiam com a maior circunspeção. Mas tanto fingiram que, uma noite, a portas fechadas, ele se vira para a mulher: “Dá cá um beijinho”. Então espantado, inquieto, Godofredo saboreia o beijo, como se lhe descobrisse, subitamente, um sabor diferente e mágico.

Levanta-se e vem, transfigurado, beijar sôfrego e brutal a pequena. Arquejante, balbucia:

— Gostei.

Pronto. A partir de então, começaram uma nova e inenarrável lua-de-mel.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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