sexta-feira, 29 de julho de 2011

O menino Pelé

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais.

Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias.

Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”.

De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha.

Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
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Nelson Rodrigues, 08/03/1958
(uma crônica sobre Santos 5 x 3 América, em 25/02/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo).
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O bandeirinha artilheiro

Antigamente, o bandeirinha era um superfósforo apagado. Funcionava como uma espécie de gandula lateral. E era patético, era comovente, vê-lo correr atrás de uma bola e devolvê-la. Esse marmanjo, esse barbado tinha uma grandeza na humildade de suas funções. Com o profissionalismo, o bandeirinha passou a ter uma súbita importância. Na pior das hipóteses, era um gandula remunerado. Continuava correndo atrás da bola, mas estava ganhando 25 mil-réis por jogo.

Passa-se o tempo e, de uma maneira insidiosa, macia, o bandeirinha deixou de ser aquele são Francisco de alpercatas. Tinha voz ativa. Já não era recrutado entre os pés-rapados, os borra-botas do esporte.

Vejamos: quem é o bandeirinha em nossos dias? Juízes de primeira categoria e, numa palavra, sujeitos qualificados, que entendem de futebol, de regra, que dão palpites a torto e a direito. Mas nunca, em toda a história do futebol carioca, brasileiro e mundial, houve um caso como o do Fla-Flu de anteontem.

Amigos, o cronista esportivo é o cidadão mais convencional do mundo. Quando um time vence outro, o cronista repete, textualmente, o que vem dizendo desde a Guerra do Paraguai: "Vitória merecida". Nunca lhe ocorreu a hipótese, ainda que tênue, ainda que vaga, de uma vitória imerecida. Não. E mesmo quando o derrotado apresenta muito mais jogo e foi traído por um golpe de azar, o comentarista de futebol fala na "maior objetividade do vencedor". Ainda agora, no último Fla-Flu, o jornalista especializado finge não perceber a superioridade tão nítida do Tricolor.

Por que venceu o Flamengo e por que perdeu o Fluminense? Para a imprensa, o Rubro-negro foi mais objetivo e dominou no segundo tempo. É, como se vê, a imagem desfigurada do clássico. Até uma zebra no Jardim Zoológico perceberia a influência capital que teve, no resultado, um dos bandeirinhas. Mas a crônica não toma conhecimento deste fato sem precedentes ou, melhor, não atribui a este fato inédito uma importância fundamental.

Amigos, pela primeira vez, em toda a minha experiência futebolística e, mais do que isso, em toda a minha experiência terrena, eu vejo um bandeirinha artilheiro! Pois foi o que aconteceu no Fla-Flu. Um bandeirinha decidiu o jogo e com que tranqüila e arrepiante desenvoltura! Segundo o meu colega Nei Bianchi, o simpático auxiliar de juiz tem o apelido de "Caixa Econômica". Ele é "Caixa Econômica", como poderia ser "Banco de Crédito Real de Minas Gerais", "Banco Boavista S.A.", "Prolar".

Muita gente não foi ao campo e não pode formar uma idéia, mesmo aproximada, do que aconteceu. O fato é que, em dado momento, a bola chega ao bandeirinha e do bandeirinha parte para um jogador do Flamengo. O gol resultou, só e só, dessa intervenção que eu chamaria de sobrenatural. Toda a imprensa, com uma erudição marota, diz que, como o juiz, o bandeirinha é ponto morto. Ora, meus amigos, o senso comum é o que há de mais incomum. Porque se o árbitro da peleja possuísse um pingo de senso comum, teria achado o fato estranhíssimo. Das duas, uma: ou o bandeirinha estava fora do campo e a bola saiu, ou estava dentro do campo e, nesse caso, vamos perguntar: Por quê, senhores, Por quê?

Amigos, vamos falar de coração para coração, de consciência para consciência. Os jornais passam por alto sobre o episódio, citam o bandeirinha como um detalhe. Não entra na cabeça dos meus confrades que o bandeirinha não está ali para passear dentro do campo. O juiz é ponto morto porque está obrigado, funcionalmente, a permanecer no coração mesmo do jogo. Mas o bandeirinha que, sem quê, nem para quê, entra em campo e serve de tabela, está praticando uma óbvia, uma clara, uma escandalosa ilegalidade. Escrevem os meus confrades que a lei não menciona a hipótese. E daí? Não menciona, porque a coisa é evidente por si mesma.

Na ocasião, o Flamengo estava vencendo por 1x0, graças a um tiro de Henrique, desferido com incrível felicidade. Mas o Fluminense, muito bem armado, seguro de si e do jogo, perseguia o empate. E, súbito, vem o magistralíssimo passe do bandeirinha, passe tão exato, preciso, perfeito, que faria Didi, ou Zizinho, ou Domingos da Guia estourar de inveja. Enfim, uma coisa é certa: se as coisas continuam assim, hei de ver, em futuro próximo, bandeirinhas cobrarem pênaltis e correrem, com Pelé, no páreo dos artilheiros.

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O pobre na filosofia popular

A sabedoria popular também pode ser considerada como uma filosofia do povo que, sem nunca haver alisado os bancos das universidades e sem tomar conhecimento das idéias dos grandes pensadores, tem suas idéias próprias e estabelece seus conceitos através dos provérbios, dos ditos e das legendas de caminhões.

Assim acontece com relação ao negro, à mulher, à sogra, aos baixinhos e ao pobre, alvos preferidos por essa sabedoria, por essa filosofia paralela que salta aos nossos olhos com um sabor pitoresco, com uma graça que nos faz pensar e nos deixa admirados por conta desse dom que o povo tem de mostrar o quanto é sábio ao emitir seus conceitos.

O pobre continua vivendo dias negros, dando nó em pingo d’água, subindo em bananeira com tamancos, dando beliscão em fumaça, fazendo toda sorte de ginástica para, não sei como, sobreviver.

Vejamos, agora, como o pobre é considerado, como é visto pelo povo através dos provérbios, das legendas de caminhões e dos ditos populares:

- Galinha só aparece na mesa do pobre quando um dos dois está doente.
- Pobre só enche a barriga quando morre afogado.
- Pobre com bagagem perde o trem.
- Ser pobre como rato de igreja.
- Arquivo de pobre é um prego na parede.
- Pobre é como pneu: quanto mais trabalha mais fica liso.
- Pobre com pouco se alegra.
- Pobre com rica casado, mais que marido é criado.
- Cinema de pobre é janela de trem.
- Rico sai de casa e pega o carro; pobre sai de casa e o carro pega.
- Alegria de pobre dura pouco.
- Pobre é cavalo do Cão andar montado.
- Pobre é o Diabo.
- Se cabelo fosse dinheiro pobre nascia careca.
- Pobre só engole frango quando joga de goleiro.
- Pobre só come carne quando morde a língua.
- Pobre é como punho de rede: só anda com a corda no pescoço.
- Pobre, mas não da graça de Deus.
- Pobre muda de patrão, mas não de condição.
- Pobre não é nem o que o rico foi.
- Pobre só anda de carro quando vai preso.
- Ladrão que entra na casa de pobre só leva susto.
- No dia em que chover comida o pobre nasce sem boca.
- Pobre não morre cedo.
- Pobre não tem amigo e nem parente.
- Pobre só levanta a cabeça quando quer comer pitomba.
- Televisão de pobre é espelho.
- Quando o rico geme o pobre é quem sente a dor.
- Pobre só sai do aperto quando desce do ônibus.
- Pobre nunca tem razão.
- Pobre quando acha um ovo, o ovo está goro.
- Quando o rico corre é atleta e quando o pobre corre é ladrão.
- Pobre é como pneu velho: só vive na lona.
- Pobre quando mete a mão no bolso só tira os cinco dedos.
- Pobre só vai prá frente quando a polícia corre atrás.
- Pobre só recebe convite quando é intimado pela polícia.
- O despertador do pobre é o galo do vizinho.
- Dinheiro de pobre é como sabão: quando ele pega, escorrega.
- Coceira na mão do pobre é sarna e na mão do rico é dinheiro.
- Pobre que arremeda rico, morre aleijado.
- Pobre só vai pra frente quando leva uma topada.
- Piscina de pobre é poça de lama.
- Rico fica gordo e pobre fica inchado.
- Pobres, nós todos somos: miseráveis quem se faz são os donos.
- Pobre só acha a vida doce quando está chupando pirulito.
- O rico bebe para se lembrar e o pobre para esquecer.
- Dinheiro na mão de pobre só faz baldeação.
- Rico bêbado é divertido: pobre bêbado é pervertido.
- Pobre é como papel higiênico. Quando não está no rolo está na merda.
- Champanha de pobre é Sonrisal.
- Em pé de pobre é que o sapato aperta.
- Entre ricos e pobres não há parentesco.
- Deus dá o pão, mas o pobre não tem dentes.
- Em cara de pobre é que o barbeiro aprende.
- Pobre só herda sífilis.
- O pau enverga no cu do rico, mas só quebra no cu do pobre.
- O pão do pobre só cai com a manteiga para baixo.
- O pobre só vive de teimoso que é.
- O pobre é como limão: nasceu para ser espremido.
- Pobre não casa, junta os trapos.
- Pobre é como cachimbo, só leva fumo.
- Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem cu.
- Rico em casa de pobre é a desgraça da galinha.
- Pobre em casa de rico ou é dinheiro emprestado ou fuxico.
- Pobre só descansa quando plantado de olho pra cima para comer capim pela raiz.
- Mais vale um pobre honesto do que um rico ladrão.

Fonte: Folclore etc & Tal
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