sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Os falsos canalhas

Um dos momentos mais patéticos da minha infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de "canalha". Note-se: — era a primeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá: — cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de medo. Foi medo e não espanto.

Para mim, uma palavra estava nascendo, era o nascimento de uma palavra.

Paro de escrever. Por um momento, repito para mim mesmo: — "Canalha, canalha". O som ainda me fascina como na infância. E pergunto a mim mesmo se "o canalha" é uma dimensão obrigatória de cada um. Pode haver alguém que não tenha um mínimo de canalha? Um santo, talvez, ou nem isso. Disse não sei quem que há santos canalhas.

Eis o que eu queria dizer: — o medo dos cinco anos perdura em mim até hoje.

Ainda agora me pergunto se alguém tem o direito de chamar um semelhante de canalha. Poderão objetar que pulha é um insulto equivalente. Ilusão.

Vi um sujeito ser chamado de "pulha". Retrucou ao outro: — "Pulha é você!". E o incidente morreu aí. Dez minutos depois, os dois pulhas estavam, na esquina, bebendo cerveja.

O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém pode ser canalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna.

Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o pior solitário. Esse destino de solidão é o seu, eternamente.

Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco anos. Meio século depois, me pediram um programa de televisão.

Recomendaram: — "Coisa original". Tratei de recorrer à minha originalidade. E, então, lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Diante de mim estava um sujeito chamando o outro de canalha (e meio século depois, a minha úlcera teve contrações de víbora agonizante). Imediatamente, ocorreu-me a idéia. Liguei para o patrocinador. Disse-lhe: — "Já tenho o título". O anunciante esperou. E eu anunciei: — Os falsos canalhas.

Era o título. Expliquei o resto. Seria uma revisão de valores. No Brasil, como em qualquer país, a história, a glória, a lenda são tecidas de equívocos fatais. Nunca se sabe se o grande homem é grande homem, se o gênio é um débil mental, se a senhora honesta é uma messalina.

Eu queria fazer, justamente, o processo dos nossos falsos canalhas. Assim como há a falsa virtude, existe a falsa abjeção. E os falsos canalhas andam por aí. Nós os encontramos nas primeiras páginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos botecos. Estão no parlamento, nos consultórios, nos lares e no banho de mar.

Começaríamos o programa, exatamente, com Roberto Campos. A meu ver, não há, em todo o Brasil, e por toda a nossa história, um falso canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por outra: — era tão canalha como O inimigo do povo, de Ibsen. O herói ibseniano acabou apedrejado como uma adúltera bíblica. E, súbito, ele descobriu que o grande homem é o que está "mais só".

Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitário do que o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total. Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriam matá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-d'água berrando: — "Dou um tiro nesse Roberto Campos!". Ao mesmo tempo que dizia isso, pendia- lhe do lábio a baba elástica e bovina do homicida.

E Roberto Campos seria o meu primeiro falso canalha. Mas acabei desistindo do programa e explico. Foi tudo o medo antigo, pueril e insuportável de uma palavra, de um som, de um efeito auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer o script do programa e escrevi a palavra canalha, aconteceu isto: — senti a minha úlcera vibrando como uma víbora. Tirei o papel da máquina e o rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: — "Olha. Nada feito. Esse título me dá vômito".

Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo não chamar ninguém, jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito que nasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, a mais cruel e inapelável das palavras.

E, no entanto, vejam vocês, nem pensei nas surpresas do mundo.

Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um artigo do dr. Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel e obstinado leitor.

Diga-se de passagem que, quando repasso os seus escritos, caio em frustração e pena. Durante vários anos, tentei ser seu amigo e fracassei. Muito bem: — e que diz em tal artigo o notável pensador católico?

Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que o valha, de quatrocentos intelectuais. E começa o dr. Alceu: — "Não sei, realmente, se os quatrocentos intelectuais reunidos em Cuba se esqueceram ou não de protestar contra o resultado iníquo de mais esse crime contra a liberdade de inteligência que acaba de ser cometido em Moscou". Bem. Em primeiro lugar, ninguém esqueceu" nada.

Os totalitários são insuscetíveis de tais lapsos. Simplesmente, os quatrocentos intelectuais estão inteiramente a favor da polícia soviética e apóiam, de alto a baixo, "mais esse crime".

Mas o que me faz rilhar os dentes de horror é que venha o dr. Alceu, para a imprensa, dizer que "não sabe". Não sabe que, por trás de toda a Cortina de Ferro, e em qualquer regime totalitário, inclusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de pensamento, de criação artística, de inteligência ou que seja? E se o dr. Alceu "não sabe", nem desconfia do óbvio ululante, como ousa assinar uma coluna de jornal?

Insisto: — se "não sabe", então que devolva o dinheiro que o dr. Britto lhe paga pela colaboração tão cega e tão surda.

Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o inconcebível: — o dr. Alceu sabe. Sabe que, há pouco tempo, um poeta foi processado, em Moscou, por vadiagem, e condenado.

Quando lhe perguntaram pela profissão, respondeu: — "Sou poeta". E o juiz, fulminante: — "Isso não é profissão!". A Rússia encarcerou o poeta pelo crime de ser poeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira abjeto.

Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr. Alceu tem uma boa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E insisto na pergunta: — "E, se sabe, por que vem dizer, de olhos baixos:

— 'Eu não sei'?". Mas, se sabe, não deve nem rezar. O dr. Alceu pode enganar, a mim, ou ao dr. Britto, ou aos seus leitores. Mas não enganará a Deus. Deus também sabe e sabe que o dr. Alceu sabe. Ou achará que Deus é um dr. Britto?

Mas eu direi ao eminente sábio, sob minha palavra de honra:

— Deus não é o dr. Britto. Amém.

O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer que o dr. Alceu vê a torpeza e não a identifica, vê a podridão e não lhe sente o cheiro.

Direi, por fim, que os quatrocentos intelectuais de Cuba em nada diferem dos oitocentos que, na Rússia, assassinaram Pasternak. São canalhas uns e outros.

[5/2/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O palhaço Dudu

Eduardo Sebastião das Neves (Dudu), palhaço de circo, poeta e principalmente cantor, foi o nosso artista negro mais popular do começo do século XX. Nasceu em 1874 no Rio de Janeiro e morreu na mesma cidade em 11 de novembro de 1919. Foi pai do famoso cantor e compositor Cândido das Neves (Índio).

Aos 21 anos foi guarda-freios da Estrada de Ferro Central do Brasil. Demitido passou a ser soldado do Corpo de Bombeiros, de onde também foi expulso por freqüentar fardado rodas boêmias.

Em 1895 tornou-se palhaço e cantor, apresentando-se em circos e pavilhões. Nesta profissão percorreu vários estados brasileiros.

A partir de 1906, igualmente a Bahiano, Mário Pinheiro, Cadete e Nozinho era cantor contratado da Casa Edison. Seu extenso repertório versava entre cançonetas, chulas, canções, lundus e modinhas.

Foi Eduardo das Neves quem aproveitou a canção napolitana Vieni sul mare e fez a adaptação para glorificar a chegada do encouraçado Minas Gerais, que se juntaria à esquadra brasileira. Mais tarde, adulterada pelo povo, passou a celebrar tão somente o estado brasileiro e não mais ao navio. 

Entre seus sucessos estão: A conquista do ar (Santos Dumont), de 1902. Ficou conhecido também como Palhaço Negro, Diamante Negro, Dudu das Neves e Crioulo Dudu.

Fonte: Cifrantiga - História da MPB e Cifras; Enciclopédia da Música Brasileira - Editora Art PubliFolha.
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O diabo no corpo


Manuelinha era uma mulata dos seus 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de mestiça bonita e apetitosa.  Não tinha alta estatura; pelo contrário, era toda miudinha de corpo e de formas, porém enxuta de carnes, de braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente espontado debaixo da chita do corpete, pescoço cilíndrico...

Os seus olhos eram grandes, amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito, pele fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa em demasia.

Muito viva, tinha movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, adêmanes rápidos, e sabia rir-se de qualquer coisa com graça encantadora; o muxoxo na sua boca tinha um quê especial.

Demais Manuelinha tinha consciência da sua beleza e sabia fazê-la valer. Debalde muito cabra valente, num pé de viola, lhe tinha feito roda. Inutilmente os arrieiros faziam piegas nos seus cavalos aparelhados de prata, quando passavam junto à sua porta. Manuelinha olhava a todos por cima do ombro; e se algum mais ousado animava-se a dirigir-lhe uma graçola qualquer, por exemplo, um:

– Puxa, mulata, machucadeira de coração!.. – era infalível da sua parte um atrevido:

– Não se enxerga seu sujo?!

ou então:

– Vai te lavar na maré, pato choco!

E assim vivia Manuelinha, contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre esquiva e orgulhosa da sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como que atraídos pela interessante rapariga.

* * *

Toda a rapaziada da vizinhança derretia-se por Manuelinha. Mas dentre a chusma de seus adoradores um merece ser destacado com certo relevo, não só pelo importante papel que vai representar na seqüência desta história, como pela extravagância do tipo.

Esse apaixonado era, nada mais, nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70 anos, e tio-avô da mulatinha.

Por artes do diabo, aquele "cação", como lhe chamava a malcriada mulatinha, enamorou-se perdidamente da sobrinha-neta, e lavava todo o santo dia a importuná-la, apesar das insolentes rebatidas da rapariga.

Pedro Camundá, ou antes, para dizer exatamente o seu nome com todos os seus estrambólicos apelidos, por ele mesmo forjados, Pedro Camundá Lopes Martins Júnior, Filho do Gama Pesca de Dia, de Noite Escama, Cócôriôcô, Galo Quando Canta É Dia, entendia lá no seu bestunto que, sendo-se tio-avô de Manuelinha tinha mais do que qualquer outro direito de possuí-la, e pouco se lhe dava a diferença de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata sente pelo negro.

Pedro Camundá não refletia nisso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele suficiente para destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer render a rapariga à sua concupiscência.

É claro, porém, que a moça, por mais depravado que fosse o seu gosto, nunca poderia entregar-se voluntàriamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha enredada, cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava para agradá-la diversas habilidades que possuía, tais como: tocar flauta de taquara pelo nariz, pegar cobras com a mão, tirar ponto de jongo e outras astúcias mais.

Manuelinha cada vez o aborrecia mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro Camundá tinha fama de grande feiticeiro. Nessa qualidade ela o temia extraordinàriamente; maus tratos, porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava epítetos os mais injuriosos.

* * *

Era de uso antigo em casa de Manuelinha festejar-se com uma grande pagodeira o dia de Nossa Senhora da Conceição, que era a madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia, começaram a afluir visitas de toda a parte, tanto homens como mulheres, pois essa festa tinha fama na vizinhança.

Cantava-se uma ladainha, ia-se depois para uma mesa bem servida de suculentas iguarias, e depois caía-se no batuque, que durava até amanhecer.

Entre outras pessoas estranhas que vieram pela primeira vez a essa pândega, notava-se o sr. Antônio Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão de uma fazenda da vizinhança.

Era um sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e beiço raspado.

Ainda vinha metido na pesada saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos fundilhos, e trazia atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande e revirada, guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.

Guimarães logo que pousou a vista na mulŽtinha, nesse dia vestida e penteada a capricho, começou a sentir umas comichões na garganta e pôs-se a mexer no banco, todo esquerdo, todo casmurro. Via-se logo que aquela alma ilhoa queria reza; mas, o que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana que havia orgulhosamente desprezado o amor da mais desempenada caipiragem, simpatizou igualmente com o forasteiro, e logo todos, inclusive Camundá, perceberam que os dois, no fim de meia hora, estavam de namoro trançado.

Muitos se arreliaram com isto. O negro velho. porém, encheu-se da maior das raivas, e os seus olhos, que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da sobrinha, como que ameaçando-a.

* * *

Todavia este incidente não desmanchou a festa.

Ao contrário, como Manuelinha parecia ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa ao namoro com o ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de qualquer preocupação. Ora bolas! ela era senhora de gostar de quem quisesse.

Muitos, até, começaram logo a lançar os seus olhares para as outras raparigas, quando mais não fosse para moerem a impostora que tinha desprezado os seus patrícios e estava agora a derreter-se com um sujeito à-toa, vindo da Estranja ou de onde o diabo perdeu as botas, isto só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem mistura.

– A negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga, – diziam uns para os outros despeitados.

No entanto estrugia o sapateado e quando cessava era apenas para se fazer ouvir algum cantador que extravasava os seus queixumes ou os seus fingidos desdéns numa quadrilha estribilhada pelo Quero mana, lerê, quero mana! ou pelo Vai de roda, siá dona Geralda e outros.

Todos folgavam ou pareciam folgar com a maior alegria. Só Pedro Camundá, o preto velho, acocorado a um canto da sala, remoia a sua grande raiva concentrada.

* * *

Em um dos intervalos do batuque, e depois que alguns cantadores trocaram algumas trovas em desafio, Manuelinha chegou-se ao Guimarães, que não tirava os olhos de cima dela, e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:

– Cante alguma coisa para a gente ouvir seu Antônio.

Guimarães, assim rogado tão agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e a torcer a tramela da porta, para disfarçar a confusão, disse:

– Lá o cantar eu cantava, pois com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas é que eu sei somente cantar à moda da minha terra e talvez as pessoas que aqui estão não gostem.

– Por que não se há de gostar? – disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora vivera amasiada com um português. – Por que não se há de gostar? Até tem mais graça porque é uma coisa nova.

– Decerto que sim, – confirmaram algumas outras mulheres. – A gente já anda tão enfarada dessas modas daqui.

– Cante seu Antônio, – rematou Manuelinha arrebitando o nariz. – Se alguém não gostar, não faltará quem lhe aprecie.

Ao ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim falou:

– A sora dona Manuela manda em quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá pelas nossas terras antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom picheI de vinho. Mas como ele não há por cá, mandem-me uma pouca de aguardente para desencatarrar o peito.

Sendo logo servido no que pedira, o Antônio tomou uma viola, afinou-a a seu jeito, e, ao som de um estabanado rasgado, cantou o seguinte:

Ai! belas manhãs da Lapa,
E eu fui aos caramujos,
Quando bejo mulher belha,
Tiro meu chapéu e fujo.

Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.

Riram-se todos a bandeiras despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou de contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia não era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, ou por muito estúpidos, ou simplesmente por serem novidade naquele meio, afeito às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições matutas. Todos gostaram, exceto, porém, Pedro Camundá. Esse sempre sentado, ao canto da sala tornava-se cada vez mais sério e embezerrado. Dir-se-ia que tinha ciúmes do triunfo que o português alcançava.

No entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, animando-se aos poucos, destampou outra vez o peito e berrou:

Oh! munina da labada,
Rega o teu manjaricão,
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não.

Senhor João do Norte
Bem todo ratado,
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.

Novas gargalhadas acolheram tal destempero poético: a caipirada achava um cômico irresistível nos versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como sinais de admiração, no tamborete em que se achava, remexia-se de contentamento.

Pedro Camundá, cada vez mais enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães, impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de recursos no braço de uma viola, variando a música e o ritmo despejou de um só fôlego toda essa embrulhada:

Quando Cristo frumou Judas,
Palácios de grande altura,
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura

Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais,
Comem-n'as aves o milho,
Quaim paga são-n'os pardais.

Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca,
Pau furado é biola
De caracol é raveca.

E deixando pender o corpo todo para Manuelinha, que se achava sentada a seu lado, rematou por esta forma extravagante a sua lengalenga:

E agora, senhores meus,
Uma coisa bou dizeire,
Andam cabras pelo monte,
Muito custa um bem quereire.

Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvôa
Na mesa da consciência.

Todos compreenderam perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que havia realizado a sua conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam por aquele monte, e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela declaração brutal.

Um murmúrio surdo de indignação fez-se ouvir logo. Os caipiras olhavam uns para os outros, como se quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já estava cheirando a desaforo grosso, e Pedro Camundá, que tinha ouvido toda a versalhada do Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de indignação, entendeu que devia mostrar a todos que também sabia cantar. Deslumbraria o português, e conjuntamente a mulatinha, que não podia deixar de preferir o seu canto.

* * *
Assim, logo que o português se calou, Pedro Camundá, como se houvesse sido mordido pela tarântula, pulou para o meio da sala e a desengonçar-se todo e a bater palmas, berrou descompassadamente na sua meia língua:

Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro,
Bunda teremê,
Coração min dóe.

Pedro Camundá não pôde continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada estapafúrdia do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi ao seu encontro, e gritou-lhe com a insolência que lhe era própria:

– Cala a boca, burro.

– Burro não, sua malcriada. Mais respeito com seu tio! – retrucou Camundá enfurecido.

– Que tio! que nada! Vocemecê não vê que não sabe cantar? Para que está aborrecendo a gente com essa porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!...

Manuelinha não chegou a terminar bem a frase.

Pedro Camundá, enciumado e ferido no seu amor-próprio de modo tão público, desandou-lhe tão violenta bofetada, que a mulatinha estendeu-se a fio comprido no chão.

Levantou-se logo grande celeuma entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado com aquela ofensa à mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do pé o grosso tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e cibrou-o com toda a força na cabeça do negro, de onde escorreu pronto um fio de sangue.

Então ferveu o sarceiro. Diversos caipiras, querendo tornar-se agradável a Manuelinha, colocaram-se ao lado do português. Outros, porém, declararam-se em favor de Camundá, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande berreiro.

Quebraram-se diversas cabeças e muitos ficaram cheios de contusões, mas, afinal, todos se reconciliaram. Houve explicações de parte a parte, trocaram-se desculpas; e todos mostraram-se dispostos a recomeçar o pagode.

Quem não se acalmou, porém, foi Pedro Camundá. Recusando lavar o sangue que lhe escorria da cabeça lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoninhado, e vendo que todos se voltavam contra ele, pela sua obstinação em insultar a sobrinha, pôs arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha, dirigiu-se à porta, e dali, cuspindo três vezes para dentro da sala e lançando à mulatinha um olhar terrível, disse:

– Negro, hein?! Negro?! Tu me pagarás!... – Acabando de pronunciar tais palavras, desapareceu na escuridão da noite, deixando todos sob o peso daquela terrível ameaça dirigida à rainha da festa.

* * *

Não era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto velho.

Todos o tinham por feiticeiro terrível, e sabia-se que ele fazia de rei nos canjerês arranjados pela negrada das fazendas vizinhas.

A sua habitação, uma choupana esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da lomba de uma serra onde ele vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror: eram cobras mansas, morcegos espetados pelas paredes, sapos, braços de crianças pagãs que desenterrava dos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e outras bruzundangas.

Ali vivia ele desde que se libertara, e muita gente se queixava dos seus feitiços. Dizia-se que o seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava moléstia nas criaturas. Pelas suas artes realizava desuniões nos casais. Mil outras perversidades se lhe atribuíam.

Por isso ficaram todos apreensivos com a sua ameaça. Pedro Camundá não era para graças; aquilo era negro danado, negro do couro azul, diziam os caipiras uns para os outros, comia brasa de fogo, fazia vez de cururu.

* * *

Decorreram alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.

Assustada durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha esqueceu-a completamente.

Guimarães pouco e pouco foi se insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça, sabendo conquistá-la, seduzi-la, até que veio a assenhorear-se completamente do seu coração, dos seus desejos, das suas vontades, chegando a possuí-la. Falava-se num futuro casamento, mas ninguém acreditava nele, porquanto o português já quase que morava em casa de Manuelinha, dormindo lá nos sábados, passando o domingo todo, para só se retirar na segunda-feira.

A ameaça de Pedro Camundá não fora entretanto vã, e durante certo tempo veio transtornar a paz em que a rapariga vivia.

Num domingo pela manhã, achando-se em casa o Guimarães, como de costume, Manuelinha pôs à cabeça um pote de barro e dirigiu-se à fonte, a fim de trazer água para cozinhar o almoço.

A fonte era pouco distante da casa. Descia-se apenas uma pequenina ribanceira, e ela surgia, a jorrar cristalina água, cantante, muito clara, muito fresca, deslizando por entre imensas pedras limosas, e toda cercada pelas largas folhas de inhames e de taiobas.

A moça chegou ao puríssimo veio d'água, lavou o rosto e os braços, encheu o pote, e preparava-se para pô-lo à cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do matal vizinho.

Tornando a descansar o pote no chão, procurou observar o que se passava e, agachando-se, para olhar por baixo da ramaria, avistou um moleque muito preto, coberto de andrajos, e com grande quantidade de latas velhas amarradas pelo corpo.

Assim que os seus olhos pousaram sobre ele, o moleque começou a fazer-lhe trejeitos e caretas. A moça, assustadíssima, correu para casa a relatar o que tinha visto à mãe e ao amante.

Guiados por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito nervosa, gritou, apontando para o mato:

– Lá está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! T'esconjuro, diabo!...

A mulata velha e o português olharam atentamente para o lugar indicado por Manuelinha, porém nada viram.

– Onde? onde? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.

– Ali, gente! mesmo em frente de nós. É moleque muito preto, todo coberto de molambos e com uma porção de latas velhas penduradas pelo corpo. Ouçam como batem as latas umas nas outras!...

– Eu não bejo nada! – exclamou Guimarães esfregando os olhos já cansados de tanto olhar.

– Nem eu! – disse a mulata velha.

– Ó homem! vocês estão cegos? – disse Manuelinha tornando-se cada vez mais agitada. – Credo! o moleque virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa mandada com certeza. Olhem como o sapo está inchando?!...

– Raios parta o sapo mal-o o moleque! –disse Guimarães já um tanto aborrecido. – Pelas cinco chagas de Cristo que eu nãn bejo nada!

– Xi... – continuou a mulatinha. – O sapo virou numa cobra vermelha. T'arrenego, coisa ruim!

– Tu estás douda, rapariga! – exclamou Guimarães. – Ali não há cobra, nem cousa biba nenhuma! Tu não estás voa, com certeza!

– Pois você não vê ali uma cobra tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos paus e dá botes para todos os lados. Ai, meu Deus! virou agora num lagarto. E lá vem ele para cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe... Aquilo é coisa mandada!

E não pôde dizer mais nada. Caiu redondamente no chão e entrou a estrebuchar em convulsões medonhas. Num momento as roupas lhe ficaram em tiras, e ela, com a barriga e as pernas nuas, torcia-se doidamente pelo chão, a ferir-se no saibro da vereda.

Os olhos viraram-lhe para trás, a boca torceu-se e dos cantos dos lábios começou a borbulhar uma espuma esverdeada.

– Meu Deus! que é isso que estou vendo? – disse a mãe, tomada de assombro. – Minha filha que é isso? Fala, responde a tua mãe.

Entrementes, Guimarães observava atentamente todos os movimentos da rapariga e transformações que se operavam no seu semblante transtornado. Dir-se-ia um médico embaraçado com um diagnóstico difícil.

Afinal bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior convicção:

– Bocemecê quer saber que tem sua filha?

– Diga, seu Antônio, pelo amor de Deus!

– Sua filha está com o diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.

* * *

Depressa correu por toda aquela redondeza que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão, estava com o diabo no corpo; e à sua casa começou a afluir visitas de mulheres e homens. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso estranho, e depois que examinavam a enferma, saíam plenamente convencidos de que a infeliz era presa de um demônio que se comprazia em torturá-la. E choviam as maldições sobre Pedro Camundá. Pois quem, a não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?

Na verdade os sintomas da moléstia eram muito singulares. A barriga começou a crescer-lhe de um modo espantoso, dir-se-ia em adiantada gravidez, e nas crises agudas ela torcia-se como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia obscenidades, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar durante um ou dois minutos. Nesses momentos, os seus olhos viravam mostrando somente o branco, a boca entortava, e dela escorria copiosa espuma.

Outras vezes discutia com o demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de Caviru. Insultava-o ou rogava-lhe que a deixasse. Outras ainda a sua voz mudava: parecia a de uma outra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou de sentido misterioso.

Vieram muitos curandeiros visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres fizeram-na engolir drogas nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que de dia para dia definhava sobre o catre.

Todos se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Antônio Guimarães estava inconsolável.

* * *

Essa triste situação durou algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio visitá-la uma preta velha, que era a sua madrinha de apresentação.

Manuelinha, assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a cruciassem dores pungentíssimas.

Todos se admiraram com o que estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e disse aos mais que ficassem tranqüilos, pois ela ia tirar o diabo do corpo de sua afilhada.

– O coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.

– Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece: a rapariga há de daire um grande bufa.

– É tal e qual, – confirmou tia Maria.

E dizendo isso a preta agarrou a afilhada pelos pulsos e gritou:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina? Fala coisa-ruim!

A moça torceu-se toda, porém seus lábios não se descerraram.

– Você fala ou não fala, Caviru?

Nada; nenhuma resposta se ouviu.

– Ah! – disse a preta, – essa Peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda. Ah! negro velho caborgeiro, eu bem conheço as tuas maldades! Fazer isso com a pobre da minha afilhada!

E a velha pôs-se a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.

Daí a pouco trouxeram-lhe a vara de guiné e o galho de arruda.

– Vão agora buscar um gato preto, para o diabo passar para o corpo dele.

– E só quando a rapariga der um bufo é que ele sai.

Enquanto procuravam o gato, tia Maria amarrava com um largo cinteiro o galho de arruda sobre o roliço ventre da rapariga, e chegando o gato, ordenou ao Guimarães que o sugigasse.

* * *

Todos acompanhavam esses preparativos com o maior interesse, e tia Maria, depois de riscar três cruzes com o dedo molhado em azeite, sobre os seios da moça, que se achava completamente nua sobre a cama, pegou da flexível vara de pau-guiné e gritou de novo:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina?

Como das outras vezes nenhuma resposta se fez ouvir. Então a preta velha vibrou com a vara de guiné uma forte vergastada nas nádegas carnudas da rapariga.

Manuelinha deu um grande grito e espernegou na cama.

– Anda, peste! – tornou de novo tia Maria. – Quem te meteu aí?

Ainda nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre as carnes da moça.

– Fala, desgraçado! Quem foi que te meteu aí?

E como o demônio se obstinasse em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos gritos da infeliz que pinoteava no leito, até que afinal a rapariga, como que fazendo um grande esforço sobre si mesma, gritou convulsivamente:

– Foi Pedro Camundá!

– Eu nãn lhes havia dito que era aquele estapaire! – disse logo Guimarães.

– Segure o gato, seu Antônio! – exclamou a preta. – Caviru já obedece, agora ele tem que sair, quer queira quer não.

E toca a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! sai maldito!

A moça, já com as carnes todas lanhadas, cada vez gritava mais.

– Segure o gato, seu Antônio! O bicho está aqui, está fora. Segure o gato, seu Antônio!

– Cá o tainho bem preso pelo toutiço.

Entrementes a vara não descansava. A mãe de Manuelinha segurava-a pelos braços, uma outra agarrava-lhe as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato pelo cangote.

De repente a rapariga inteiriçou-se toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo o seu ventre, que até então se conservara duro como o diafragma de um zabumba, emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico, acompanhado de estrondo, espalhou-se pelo aposento.

– Solte o gato, seu Antônio!

Guimarães soltou o bicho dizendo:

– Eu nãn lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da rapariga, quando ela desse uma grande bufa?

O gato, assim que se viu livre das garras do ilhéu, ganhou a janela de um salto e a miar como um desesperado fugiu para o mato com a cauda erguida e o pêlo todo eriçado.

– Vai-te, excomungado; vai-te para as areias gordas, – gritava tia Maria. – Graças a Nossa Senhora da Conceição, saiu o diabo do corpo de minha afilhada. Ah! Pedro Camundá! feiticeiro danado! No inferno tu hás de pagar esta grande maldade. Te, esconjuro, coisa ruim!

Todos ficaram convencidos de que o tinhoso escapulira do corpo da rapariga; e, por conseguinte, estavam terminados os seus sofrimentos.

Efetivamente Manuelinha, caindo primeiro numa grande prostração, foi depois se restabelecendo a poder de gordos caldos de galinha, e no fim de algumas semanas estava completamente curada.

Guimarães, daí a uns seis meses comprou um pequeno sítio, e lá foi viver com a mulatinha. Dentro de anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos a grande bufa que a rapariga soltara, quando o diabo lhe saiu das entranhas.
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(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.239-251)
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