quarta-feira, 14 de setembro de 2011

História de Assombração

Há muitos anos passados – contou-me um narrador de histórias de assombrações – num lugarejo da ilha de Santa Catarina, morava um pescador que possuía várias embarcações para o serviço da pesca, inclusive uma lancha baleeira.

Homem trabalhador e cuidadoso que era, tratava com todo carinho suas embarcações e equipamento, os quais guardava num rancho bem construído e fechado à chave.

Certa manhã de uma sexta-feira, quando o pescador, junto com seus camaradas abriu o rancho para retirar as embarcações, encontrou a lancha baleeira molhada e com muita areia espalhada sobre o fundo o que causou surpresa a toda tripulação, pois tinham deixado enxuta e limpa quando na véspera a recolheram para o rancho.

Comentado e analisado o fato, eles chegaram à conclusão de que a maré naquela noite tinha sido alta e não encontraram nenhuma pegada de pessoa, na praia, portanto, não havia razão para suspeitarem que alguém tivesse tirado a lancha do rancho, mesmo porque ele estava fechado e a chave se encontrava em poder do seu dono.

Daquele dia em diante, todas as manhãs de sexta-feira, quando o pescador abria o rancho para retirar suas embarcações para retirar suas embarcações para pesca, encontrava a lancha molhada e lodosa.

Como aquele ano e naquele lugar, as endiabradas e perigosas mulheres bruxas vinham desenvolvendo grandes atividades bruxólicas contra as inocentes criancinhas, chupando-lhes o sangue até levá-las à sepultura e zombando sarcasticamente, das fortes rezas e bem urdidas armadilhas que se lhes preparavam – toda a tripulação da lancha foi unânime em concordar com a desconfiança do velho pescador de que aquele serviço só podia ser obra das temíveis mulheres bruxas.

Homem intrépido, acostumado a enfrentar fortes tempestades, o frio, a fome, a sede, etc., em sua árdua profissão, todos os dias, não titubeou em enfrentar mais este estranho caso que o destino lhe apresentou, como um desafio à sua coragem indomável de velho pescador.

Sempre respeitou as coisas do outro mundo, nunca lhes tocou nem de leve com escárnio ou zombarias, e, também, nunca duvidou da sua existência e atividades neste mundo. Apesar de tudo, procurou traçar um plano para cientificar-se verdadeiramente, se de fato eram as terríveis mulheres bruxas, as autoras daqueles embustes que tanto lhe preocuparam.

Seu plano foi o seguinte: colocou uma taramela na porta da gaiuta da lancha, pela parte interior, e ao entardecer de uma sexta-feira meteu-se dentro dela, fechou a porta por dentro e ficou esperando o resultado.

Passado alguns minutos, ele ouviu vozes estranhas e sentiu que abriam o rancho e levavam a lancha para o mar.

Na porta da gaiuta, ele tinha feito um pequeno furo, de onde espiou e viu um quadro horrível e descomunal, nunca imaginado por ele (e pensou consigo mesmo: "nem por ninguém").

Viu dentro da sua lancha uma caterva de mulheres nuas, de fisionomias horríveis, corpo esquelético, mãos com unhas pontiagudas, enfim um quadro dantesco, sinistro, demoníaco.

A mulher bruxa que ocupou o lugar de patrão na lancha, apresentava o corpo coberto de escamas negras, as unhas das mãos eram como ponta de lança. O cabelo muito comprido caía pela popa da lancha a fora e estendia-se sobre o mar, deixando no seu rastro um fogo de ardentia de comprimento incalculável.

Dos olhos chamejavam dois feixes de luz, que clareavam a grande distância, e seus pés eram semelhantes a patas de mula.

Cada banco da lancha estava ocupado por uma bruxa que manejava um remo de voga.

Ao começar a viagem, a misteriosa bruxa que estava governando a lancha, solta gritos enfurecidos, esbravejou e disse para as outras: "Aqui nesta embarcação, está cheirando a sangue real".

A mulher bruxa que estava sentada no banco da proa da lancha, perto da gaiuta onde o pescador estava escondido era comadre dele.

Todas as vezes que a temível bruxa patrão da lancha esbravejava e dizia: "Está cheirando a sangue real nesta embarcação", a mulher bruxa que era comadre do pescador respondia: "Remem, suas éguas, cada remada avance uma légua, que o galo branco já cantou e o amarelo cacarejou".

Vencida a légua por segundo em cada remada que davam, chegaram no porto do lugar que haviam escolhido, em uma sinistra reunião para as suas atividades diabólicas. Em pouco tempo, aí embicaram a lancha na praia e desapareciam.

Logo que elas abandonaram a lancha, o pescador saiu do seu esconderijo, apanhou um punhado de areia, colheu um ramo de rosas e escondeu-se novamente.

Mais tarde, as endiabradas mulheres bruxas chegaram na praia, reocuparam os seus lugares na lancha e saíam mar a fora.

Durante toda viagem de ida e volta, a mulher bruxa, patrão, advertiu insistentemente, às suas colegas de que naquela embarcação havia presença de sangue real.

A bruxa comadre do pescador, que havia notado a presença do seu compadre dentro da gaiuta, desde que chegou no rancho, defendeu-o sempre com muita habilidade também já na volta: "Remem, suas éguas, cada remada vence uma légua, os galos brancos e os amarelos já cantaram e os pretos já cacarejaram".

Com estes argumentos, ela defendeu o compadre das unhas terríveis daquelas mulheres bruxas, mesmo porque não podiam perder tempo à procura do sangue do pescador, senão seriam surpreendidas em estado fadórico pelo canto do galo preto.

E assim continuaram a viagem até chegarem ao porto de partida.

Desembarcaram, abriram o rancho, recolheram a lancha e desapareceram.

O dono da lancha que estava dentro da gaiuta, logo que se viu livre delas, apanhou a areia e as rosas que recolhera no porto onde elas o levaram e retirou-se para a sua casa.

No dia seguinte, tomou a areia e as rosas mostrou a muita gente do lugar para ver si alguém descobria a sua terra de origem.

Ninguém conseguiu, nem mesmo, dar uma opinião aproximada.

Mas acontecia que a mulher bruxa, sua comadre, aparecia quase todos os dias em sua casa – não para visitar o afilhado, pois ela já o havia mandado para o outro mundo, chupando-lhe o sangue – mas sim, para passear com uma filha dele de quem era muito amiga.

Como nenhuma das pessoas a quem ele mostrou a prova de sua coragem, conseguiu identificar o lugar da viagem voltou para casa um pouco desanimado.

Ao chegar em casa encontrou sua comadre bruxa sentada na varanda conversando com pessoas de sua família.

Cumprimentou-a e mostrando a areia e as rosas, perguntou-lhe se era capaz de descobrir o lugar de origem.

Quando a comadre bruxa foi solicitada a responder a pergunta, ela olhou para a areia e as rosas e imediatamente, respondeu o seguinte.

– Compadre, a terra de origem deste punhado de areia e destas rosas é a Índia. Estiveste entre a vida e a morte. Dentro de tua embarcação estavam as mais respeitadas, misteriosas, prepotentes e malignas mulheres bruxas, do reino de satanás. Se não foste assassinado por elas, agradece-o a mim, tua compadre, que estava sentada no banco de proa da lancha, perto da gaiuta, onde estava escondido.

O velho pescador depois de ter ouvido a narrativa da comadre bruxa foi à cozinha, apanhou um rabo de tatu que estava no fumeiro, despiu-a, deu-lhe uma boa surra, salgou as feridas com sal e pimenta e obrigou-a a descobrir o nome de todas as outras suas colegas de aventuras fadóricas.

Florianópolis, 25 de fevereiro de 1957

(Cascaes, Franklin. "História de assombração". A Gazeta. 23 de março de 1957)


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com
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Comunicação telebruxólica


"Mulheres bruxas terrículas e selenitas comunicando-se da terra para a lua e vice-versa, sentadas sobre os famosos elementos representantes da superstição através de linhas telefônicas cósmicas, transcendentais, colocadas em postes aéreos sobre satélites, que também se beneficiam do serviço telebruxólico." (F. Cascaes, 1970)

Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com
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Movido pelo ciúme

Aqui no jornal diz que Luís Caldas matou Rosa Maria dos Santos movido pelo ciúme; e dá antecedentes do crime. Luís foi passar o carnaval num sítio, lá no interior, casa de um amigo. Rosa Maria ficou aqui, nos quatro dias de festas carnavalescas. Diz que os dois eram noivos, mas deviam ser mais do que isso, pois Luís sentiu o ciúme a doer-lhe na carne.

Pobre Luís! Sua inexperiência amorosa levou-o ao mais doloroso dos sentimentos. "Cada um mata aquilo que adora" — dizia o nem sempre ultrapassado Oscar Wilde. E Luís foi nessa. Não soube explicar à amada que há homens cujo amor não suporta o impacto de um carnaval e sentiriam a angústia do ciúme mesmo que enfrentassem as lides carnavalescas de braço com a mulher que querem e que sentem sua. Não soube explicar e depois não soube livrar-se das provocações da amada, porque toda mulher é assim mesmo e é nas reações do homem que busca o alimento do seu amor.

Rosa Maria não tomou a ausência de Luís ou não a sentiu — melhor dizendo — em suas verdadeiras proporções: Luís sumiu por amor, por nutrir pela amada um misto de superconfiança nela e mesquinha insegurança em si mesmo. Vieram as Cinzas, voltaram a se encontrar e ela pôs-se a provocar.

Ó Senhor, é preciso todo um mundo de renúncias íntimas para suportar o que diz a amada, após o reencontro. Pobre Luís, não tinha ainda aprendido a grande lição! No reencontro a amada mostra-se alegre como um passarinho e já aí começa o ciúme a maltratar o homem. Ela deixará escapar frases soltas, pequenas provocações que o homem, para proteger o seu amor por ela, deve deixar que batam contra o escudo do estoicismo.

Ela dirá, por exemplo, "há muito tempo que o carnaval não esteve tão animado". Ao homem, nesta circunstância, resta balançar a cabeça, concordando, mas nunca perguntando: "Você achou, é?". De maneira nenhuma. Passe incólume, amigo, se ama de fato quem o ama.

Ela virá com novas armas. Haverá um momento de pausa na conversa e ela vai cantarolar baixinho: "Tristeza... por favor vai embora!". Algumas, depois de cantarolar, ainda acrescentam: "Chi, esta música não me sai da cabeça". Agüente firme, irmão, e se ânimo sobrar, diga: "Esse samba é lindo, realmente".

Sei que o ciúme está fazendo de você o "palhaço das perdidas ilusões", mas até aí você vai indo bem. Chegará o momento em que ela, a troco de nada, vai dizer: "Lá onde você passou o carnaval tinha televisão?". Responda que não, mesmo que houvesse, pois ela arrematará: "No Baile do Monte Líbano eu fui focalizada diversas vezes". Finja que não vê o olhar que ela estará usando contra você e faça de si a estátua da renúncia, quando ela informar que a fantasia dela fez muito sucesso: "Era aberta de um lado e deixava a perna toda de fora. Recebi elogios totais".

Sei que é hora do bofetão, amigo, mas — por favor — não deixe que o fantasma do ciúme invada o seu castelo. Para que sua amada continue a ser a sua amada, respire fundo e esqueça, ela poderá insistir com mais umas duas ou três, no estilo "que beleza é ver o sol nascer no carnaval", mas está cada vez amando mais você. E então, quando ela telefonar com aquela mesma voz dengosa que tinha em janeiro, você estará de parabéns: venceu a batalha, irmão!

Mas lembre-se: vencer uma batalha não é vencer a guerra. Aguarde, que outros carnavais virão.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
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