sábado, 26 de novembro de 2011

Cadelinha puro-sangue

Quando ela passava, pisando com garbo o asfalto da ruazinha sossegada, deixava a masculinidade local indócil. Mesmo os casados fingiam que vinham à janela para espiar o tempo, ou para jogar fora uma ponta de cigarro, ou para ver se as crianças-estavam-brincando-direitinho. Enfim, quando ela passava marcava ponto.

Também pudera! Mulher certinha estava ali. Aquilo era mulher para banquete de quatrocentos talheres. Bonita, sadia, corpo tamanho universal. Era de vê-la, irmãos, era de vê-la.

Trabalhar não trabalhava. Bastava olhar para ver o ócio a se derramar de seu olhar, pidão. Corria à boca pequena que era sustentada por um coronel.

Como toda mulher vaidosa e ociosa, tinha um cachorrinho. À noitinha costumava sair com seu cachorrinho, para passeá-lo um pouco. Aliás, minto... não era um cachorrinho: era uma cadelinha. Dessas ridiculamente poodles. Um dia, Mirinho estava atrás da persiana, olhando-a como sempre, quando ouviu ela dizer para uma doméstica que chamara a cadelinha de "um amor":

— É raça pura.

— Já cruzou? — perguntou a doméstica, numa curiosidade um tanto ou quanto grossa.

— Com esses vira-latas aqui da rua? Deus me livre! — e a boa fez cara de nojo, mesmo assim continuando uma gracinha. E acrescentou: — Esta só cruza com cão da mesma raça.

Mirinho ouviu, anotou e, quando conseguiu uma mesada mais gorda pouquinha coisa da sempre benemerente Tia Zulmira, comprou um cachorrinho poodle. Na tardinha seguinte, quando o pirão-da-redondeza deu a sua voltinha para passear a cadelinha, Mirinho entreabriu a porta e disse para o cachorrinho:

— Vai, Conquistador (Mirinho botou o nome no cachorrinho de "Conquistador" por motivos óbvios).

O cachorrinho saiu e foi direto fazer amizade de cachorro com a cadelinha. A dona da cadelinha achou Conquistador um amor. Levantou-o nos braços, deu beijinho no focinho e estava curiosa sobre sua procedência, quando Mirinho apareceu na calçada, fingindo-se preocupado, olhando em torno.

Nesse dia voltou com Conquistador debaixo do braço, mas conversou um pouquinho com a boa.

No segundo dia soltou Conquistador quando a boa já estava retornando ao lar. No terceiro, depois que ela já tinha entrado em casa. Enfim, do quinto ou sexto dia em diante, Conquistador já era íntimo da residência da moça. E Mirinho também.

Como, minha senhora? O coronel dela? Ah... o coronel já estava queimando óleo 40. Só vinha uma vez por semana.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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Preguinho, o estilista do gol

O orgulho do escritor Coelho Netto não eram só os seus livros, mas também o filho João Coelho Netto, aliás, Preguinho, o maior artilheiro da história do Fluminense com 184 gols. Meia-esquerda veloz e dono de um poderoso chute, Preguinho se notabilizava pela raça e pelo espírito amador. Nunca ganhou nada para defender o tricolor. Também ficou famoso por alguns gols célebres, como o primeiro marcado pelo Brasil em Copas do Mundo. O artilheiro também foi autor de um gol antológico quando chutou do meio campo, encobrindo o goleiro do Botafogo numa partida disputada em 7 de dezembro de 1930. No Campeonato Carioca, foi artilheiro em 1923 com 12 gols, em 1928 com 16 e em 1932 com 21.

João Coelho Netto, conhecido como Preguinho, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 08/02/1905, e faleceu na mesma cidade, em 1º/10/1979. Filho do escritor Coelho Neto, era sócio do Fluminense antes mesmo de nascer, ingressando nas equipes infantis do clube carioca em em 1916, com 11 anos.

Sua estréia como jogador do tricolor carioca ocorreu em 19 de abril de 1925: naquela tarde, Preguinho havia conquistado o tricampeonato estadual de natação, na categoria de 600 metros. Ainda com a medalha no peito, pegou um táxi até o Estádio das Laranjeiras para ajudar o Fluminense a conquistar o Torneio Início do Rio de Janeiro.

Passou toda sua carreira no Fluminense e foi o primeiro capitão e artilheiro da Seleção Brasileira. Foi autor do primeiro gol do Brasil em uma Copa do Mundo, em jogo contra a Iugoslávia, na Copa do Mundo de 1930, em época em que seu apelido era Prego, sem o diminutivo. Foi o artilheiro do tricolor nos campeonatos cariocas de 1928, 1929, 1930, 1931 e 1932, sendo que em 1930 e 1932 foi o artilheiro do Campeonato Carioca.

Além do futebol, praticou outras nove modalidades: remo, vôlei, basquete, polo aquático, saltos ornamentais, atletismo, hóquei, tênis de mesa e natação, detendo 387 medalhas e 55 títulos nessas modalidades.

Após a profissionalização do futebol, em 1933, Preguinho continuou a atuar de forma amadora, recusando-se a receber dinheiro do seu clube. Afora seu desempenho dentro das quatro linhas, é também um dos maiores pontuadores da história do basquete tricolor, com 711 pontos anotados.

Em 22 de janeiro de 1952, recebeu o título de "Benemérito-Atleta" do Fluminense. À ocasião, ele disse: "Eu nem sabia falar direito e o Fluminense já estava em minha alma, meu coração e em meu corpo."

Preguinho morreu em 1979, aos 74 anos, devido a problemas pulmonares.

Fonte: Wikipédia; Revista Placar.
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Mãe

Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Mas sei escutar. Direi, com a maior e deslavada imodéstia, que sou um maravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver. Qualquer conversa me fascina e repito: — não há conversa intranscendente. E, se duas pessoas se falam, a minha vontade é parar e ficar escutando.

Uma simples frase, ainda que pouco inteligente, tem a sua melodia irresistível.

Ontem, por exemplo. Eu ia passando e vi duas senhoras no poste de ônibus. Conversavam. Estaquei e resolvi ouvi-las. Eram duas gordas e uma delas perguntava à outra: — "Sabe onde fica a praça Serzedelo Correia?". A outra respondeu: — "É pertinho daqui. Ali". E mostrava, com o dedo: — "Está vendo? Ali". A primeira olha e suspira: — "Então vou tomar o ônibus".

A distância que a separava da praça era de uma quadra. Comecei a ver, ali, um mistério insuportável. Por que tomar um ônibus para ir de uma esquina a outra esquina?

Foi mais ou menos o que disse a segunda senhora: — "Não precisa ônibus. Para que ônibus? Tão pertinho". Novo suspiro da primeira: — "Estou tão machucada. Vou mesmo de ônibus".

Foi aí, e só aí, que eu e a outra percebemos a evidência total. Estava, sim, bem machucada. Na minha infância, dizia-se "amarrotada". E ela estava amarrotada. O olho esquerdo, ou direito, tinha um halo negro, um halo que parecia feito de rolha queimada. Uma das orelhas (não vi a outra) estava enorme como a de um boxeur. Enorme e vermelha ou roxa. A simples palavra repercutia, dolorosamente, lá por dentro. E, então, compadecida, a outra quis saber: — "Mas que foi isso? Desastre?".

Parecia um bárbaro atropelamento. E havia, na conversa, um clima folhetinesco. Não perco uma palavra. Veio a resposta: — "Foi meu filho que me deu uma surra". Dizia isso sem nenhum horror, em tom castamente informativo.

Era como se não fosse ela a mãe, e fosse o espancador o filho da vizinha. A segunda senhora deixa passar um momento.

Ainda espicha o pescoço para ver o ônibus. E pergunta, com relativo interesse: — "Bateu na senhora?". Geme: — "Bateu".

E havia no que uma perguntava, e no que a outra dizia, uma naturalidade hedionda.

A primeira olha no relógio de pulso: — "Já são onze horas, meu Deus!". E, como o ônibus não vinha, a outra indaga: — "Bateu por quê?". Disse: — "Me pediu dinheiro. Eu não tinha. Já sabe. Meu filho tem um gênio que Deus te livre. Muito nervoso". A segunda olha no fim da rua: — "E esse ônibus que não vem?". Espia de novo o relógio. Suspira: — "Caso sério". A primeira está dizendo: — "Quando respiro...".

Respira fundo: — "Dói aqui". Espeta o dedo: — "Aqui".

E, súbito, chega o ônibus. Uma subiu, fácil e lépida. Mas a mãe espancada foi uma dificuldade. Dizia baixinho, como se o motorista pudesse ouvi-la: — "Espera, espera". O trocador fica olhando e reclamando: — "Como é, minha tia?".

Lá fui eu ajudá-la. Um outro apareceu. Foi empurrada, quase carregada. Gemia: — "Ai, ai". Finalmente, entrou. Arquejou para mim e para o outro: — "Deus te abençoe, Deus te abençoe!". O trocador deu o sinal, o ônibus partiu. Começou, para ela, a longa viagem de uma esquina para outra esquina.

Pouco depois, estava eu no táxi. E pensava: — "Será que essa mãe não tem marido? Ou um outro filho? Ou vizinho?". Vamos crer que fosse viúva de filho único. Mas teria vizinhos. E, além disso, há a imprensa, o rádio, a televisão, as duas casas do Congresso, as Forças Armadas etc. etc. E toda essa maravilhosa estrutura não faz nada, não exala um pio? Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo é que ninguém se espante. O brasileiro cada vez se espanta menos.

A própria vítima não me pareceu espantada. Vejam bem: — não a espantou a surra do filho, usara um tom impessoal e, repito, apenas informativo. Já falei das orelhas? Acho que não. Uma delas estava roxa, um roxo de orquídea e de gangrena. Agora me lembro: — falei, sim, da orelha.

Paciência. Lembro-me de que, ao contar a surra, inflexionava como se tivesse pena, não ódio (ódio nenhum), pena do filho. Era uma espécie de ternura apiedada. Se a outra condenasse o rapaz, ela o teria defendido, talvez. Talvez, não. Estou certo
de que o teria defendido. E, se a apertassem muito, acabaria dando razão à surra. E iria para o espelho acusar a própria imagem: — "Bem feito, bem feito!".

Eis o que eu queria dizer: — essa mãe, capaz de dar razão à surra, existe e aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e em todos os idiomas. É o próprio mundo — não, não —, é a própria família que atira pela janela todos os seus valores.

Há poucos dias, um pai amargurado escreveu-me: — "Meu filho sabe mais do que eu! Minha filha sabe mais do que a mãe!". Porque fez dezoito, ou vinte, ou 23 anos, o sujeito passa a ter a "verdade da idade", a "razão da idade", o "direito da idade", o "poder da idade", a "virtude da idade".

E todos assumem a mesma atitude da abdicação: — o jornalista, o político, o psicólogo, o sociólogo, o sacerdote, os artistas. O pintor Raul Brandão berrava numa galeria de pintura: — "O jovem tem todos os defeitos dos mais velhos e mais um: — a imaturidade!".

Outro dia, tivemos a jovem revolução francesa. Os estudantes da França explodiram. A princípio, pensou-se que eram as vítimas da fome, furiosas contra a fome. Mas logo se percebeu que era a antifome. Sim, a antifome que devastava a França. E o mundo viu os filhos da alta burguesia virando carros, arrancando paralelepípedos. Ninguém entendia nada.

Certo parisiense, perfeito idiota da objetividade, escreveu: — "A desgraça da França são os franceses". Outro propôs uma Resistência contra os franceses. Um terceiro queria uma nova invasão da Normandia que salvasse a França da brutal ocupação francesa.

E eram os jovens, os jovens, os jovens. Como eram os jovens, todo mundo lhes deu razão. Cabe a pergunta: — e que fizeram eles, além de arrancar paralelepípedos e de quebrar vidraças? Foram pichar as obras-primas do teatro Odeon. Passaram a gilete ou a brocha nas telas famosíssimas. Por que esse ódio, esse estupro plástico? Porque os estudantes eram contra a "arte oficial". Mas fecharam a Bienal, por se tratar de arte moderna, capitalista etc. etc. O festival de Cannes foi também fechado, a tapa. Alguém que acordasse, de repente, havia de imaginar que era uma nova ocupação nazista.

Os nazistas nunca se lembraram de humilhar, degradar os belos quadros, as obras-primas de todos os tempos. E o curioso é que jamais ocorreu aos estudantes franceses que eram eles a alta burguesia, eles o capitalismo, eles as classes dominantes.

Volto à mãe que apanhou do filho e deu razão à surra.

Foi um pouco o papel da França ao ser agredida pela própria juventude. Lá ninguém insinuou um protesto. Igualmente suicida é a posição da família diante dos seus filhos.

Dizia-me, ontem, um padre de passeata: — "A família tem seus dias contados". Viu a minha perplexidade e perguntou: — "Ou você não percebe que a família é uma instituição falida?".

Bem. Não direi falida. Suicida, talvez.
[5/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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