De princípio me declarou que na hora em que tudo aconteceu não estava bêbedo. E insistiu: "Eu estava absolutamente lúcido, embora tivesse bebido o bastante para ficar de quatro na grama".
Evidentemente, se não tivesse bebido nada, não teria nem descido do carro, quanto mais ficado de quatro na grama! Mas o fato é que ficou, e agora — diante do acontecido — está a se perguntar se estava realmente lúcido, o que de resto não importa, uma vez que a conseqüência intriga-o mais do que a ocorrência.
Estava muito alegre e ria muito, e isto não era nem sequer por conta da bebida. Era um pouco por causa do uísque que tomara e mais o momento, a mulher, enfim um estado de espírito que tomou conta dele e que já fazia por merecer.
Depois de muitos dias seguidos de pequenos aborrecimentos, muito trabalho, um resfriado. "Estas coisas — dizia-me — vão deixando a gente sem reservas de humor. Mas, quando terminou a festa e ela pediu-me que a levasse em casa, veio-me de súbito aquele estado de espírito. A prova de que eu estava raciocinando perfeitamente é me lembrar deste detalhe: tenho certeza de que já vinha alegre lá de dentro e, quando fui tomar o carro, senti o perfume de jasmim dos jardins do vizinho. Eu nasci e morei durante anos numa casa cheia de jasmineiros, você entende?"
Eu entendia. Já vinha alegre da festa, na hora de entrar no carro, com uma bela mulher que o tinha escolhido para levá-la em casa, tudo isso e mais um cheiro da infância deram-lhe aquela alegria interior que conservou até o momento em que viu, sobre a grama, as pernas do guarda, firmes, como que plantadas no gramado — aquelas duas colunas negras, porque era um guarda de perneiras, desses que passam solenes, de motocicleta, altivos e barulhentos.
"Mas eu não ouvi barulho nenhum —explicava ele —, eu estava de quatro, rindo, na grama, quando vi as pernas e, em seguida, o guarda. Aquele bruto guarda, de mãos na cintura, me olhando."
É estranho que uma pessoa, justamente na hora em que se sente eufórica, vivendo um momento raro, meio sonho meio realidade, possa explicar cada minuto desse momento que já está passado e, no entanto, no presente, absolutamente sóbrio e sério, não consiga encontrar uma explicação que satisfaça a si mesmo, que possa acalmar uma dúvida sem apelar para o sobrenatural.
Recorda-se que entrou no carro e perguntou à mulher onde morava e ela deu-lhe o endereço. A noite era fresca e o ar livre, o carro deslizava pelas ruas tranqüilas e desertas. Então pôs-se a cantar a canção que ela também cantarolou junto com ele, e iam tão felizes que começou a guinar o carro de um lado para outro, ao ritmo da música.
A mulher morava num recanto do maior bucolismo, em frente a uma praça toda gramada. Ele parou o carro e propôs à mulher que fumassem mais um cigarro, e ficaram ali fumando, num silêncio convidativo; tão convidativo que ele começou a fazer-lhe cócegas na nuca, os dois rindo, ele se chegando e — de repente — deu-lhe uma mordidinha no lóbulo da orelha. A mulher sentiu um arrepio, riu mais: "Ai, Carlos, você é um cachorrinho e está me mordendo" — ela disse.
Isto foi o que bastou para que descesse do carro e fosse lá para o meio do gramado, onde ficou de quatro, a latir para ela.
A mulher ria e, como estivesse escuro, começou a gritar: "Onde você está, Carlos?" — e como ele calasse os latidos para fazer-lhe uma surpresa, ela manobrou o carro e acendeu os faróis na direção do gramado, mas numa direção em que as luzes não o atingiam. Pôs-se a caminhar de quatro para se esconder atrás de um arbusto, quando viu que ela saíra do carro e já caminhava também sobre a grama — embora sem latir e sem usar os braços à guisa de patas dianteiras.
Foi aí que viu o guarda. Ou antes: as pernas do guarda. Levantou a cabeça e notou o quanto ele estava sério, e assim ficaram um tempo indefinido, que deve ter durado alguns segundos, mas que lhe pareceu uma eternidade. Notou também que a mulher voltara para o carro e ria muito da situação.
Por certo o guarda tinha todo o direito de pensar outra coisa, e quando lhe perguntou "o que é que o senhor está fazendo aí?" — já tinha opinião formada. Contar a verdade lhe pareceu pior, o que prova a sua lucidez na ocasião. E então, porque precisava dar uma resposta qualquer ao guarda, disse que estava procurando o isqueiro. Daí passou a mentir, uma mentira em cima da outra, sobre o isqueiro, que era de ouro e tinha seu nome gravado de um lado.
"Como é seu nome?" — quis saber o guarda.
E foi a única verdade que disse: "Carlos Silva. E está escrito do lado do isqueiro. É um isqueiro francês Dupont".
Falava e olhava para os lados, fingindo que procurava. O guarda continuava a não aceitar nada do que dizia, mas mantinha-se sério, perturbando-o ainda mais.
Quando perguntou como conseguira perder o isqueiro ali na grama se estava com a mulher no carro, fingiu que não ouviu e acrescentou: "É um isqueiro de estimação. Foi minha mãe que me deu. Ela já morreu".
Falava e caminhava devagar, tentando se aproximar do carro. O guarda caminhava também, mantendo a distância entre os dois, até o instante em que se abaixou para apanhar algo que brilhou em sua mão, apesar da escuridão.
"Aqui está o seu isqueiro, cavalheiro" — disse o guarda, enquanto ele engolia o próprio espanto, diante do espanto do guarda, que conservava o isqueiro de ouro na palma da mão aberta.
Agora repetia — de certa maneira — a atitude do guarda da véspera. Estava com o isqueiro na palma da mão aberta e me dizia: "E te juro! Eu nunca tive nenhum isqueiro!"
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Evidentemente, se não tivesse bebido nada, não teria nem descido do carro, quanto mais ficado de quatro na grama! Mas o fato é que ficou, e agora — diante do acontecido — está a se perguntar se estava realmente lúcido, o que de resto não importa, uma vez que a conseqüência intriga-o mais do que a ocorrência.
Estava muito alegre e ria muito, e isto não era nem sequer por conta da bebida. Era um pouco por causa do uísque que tomara e mais o momento, a mulher, enfim um estado de espírito que tomou conta dele e que já fazia por merecer.
Depois de muitos dias seguidos de pequenos aborrecimentos, muito trabalho, um resfriado. "Estas coisas — dizia-me — vão deixando a gente sem reservas de humor. Mas, quando terminou a festa e ela pediu-me que a levasse em casa, veio-me de súbito aquele estado de espírito. A prova de que eu estava raciocinando perfeitamente é me lembrar deste detalhe: tenho certeza de que já vinha alegre lá de dentro e, quando fui tomar o carro, senti o perfume de jasmim dos jardins do vizinho. Eu nasci e morei durante anos numa casa cheia de jasmineiros, você entende?"
Eu entendia. Já vinha alegre da festa, na hora de entrar no carro, com uma bela mulher que o tinha escolhido para levá-la em casa, tudo isso e mais um cheiro da infância deram-lhe aquela alegria interior que conservou até o momento em que viu, sobre a grama, as pernas do guarda, firmes, como que plantadas no gramado — aquelas duas colunas negras, porque era um guarda de perneiras, desses que passam solenes, de motocicleta, altivos e barulhentos.
"Mas eu não ouvi barulho nenhum —explicava ele —, eu estava de quatro, rindo, na grama, quando vi as pernas e, em seguida, o guarda. Aquele bruto guarda, de mãos na cintura, me olhando."
É estranho que uma pessoa, justamente na hora em que se sente eufórica, vivendo um momento raro, meio sonho meio realidade, possa explicar cada minuto desse momento que já está passado e, no entanto, no presente, absolutamente sóbrio e sério, não consiga encontrar uma explicação que satisfaça a si mesmo, que possa acalmar uma dúvida sem apelar para o sobrenatural.
Recorda-se que entrou no carro e perguntou à mulher onde morava e ela deu-lhe o endereço. A noite era fresca e o ar livre, o carro deslizava pelas ruas tranqüilas e desertas. Então pôs-se a cantar a canção que ela também cantarolou junto com ele, e iam tão felizes que começou a guinar o carro de um lado para outro, ao ritmo da música.
A mulher morava num recanto do maior bucolismo, em frente a uma praça toda gramada. Ele parou o carro e propôs à mulher que fumassem mais um cigarro, e ficaram ali fumando, num silêncio convidativo; tão convidativo que ele começou a fazer-lhe cócegas na nuca, os dois rindo, ele se chegando e — de repente — deu-lhe uma mordidinha no lóbulo da orelha. A mulher sentiu um arrepio, riu mais: "Ai, Carlos, você é um cachorrinho e está me mordendo" — ela disse.
Isto foi o que bastou para que descesse do carro e fosse lá para o meio do gramado, onde ficou de quatro, a latir para ela.
A mulher ria e, como estivesse escuro, começou a gritar: "Onde você está, Carlos?" — e como ele calasse os latidos para fazer-lhe uma surpresa, ela manobrou o carro e acendeu os faróis na direção do gramado, mas numa direção em que as luzes não o atingiam. Pôs-se a caminhar de quatro para se esconder atrás de um arbusto, quando viu que ela saíra do carro e já caminhava também sobre a grama — embora sem latir e sem usar os braços à guisa de patas dianteiras.
Foi aí que viu o guarda. Ou antes: as pernas do guarda. Levantou a cabeça e notou o quanto ele estava sério, e assim ficaram um tempo indefinido, que deve ter durado alguns segundos, mas que lhe pareceu uma eternidade. Notou também que a mulher voltara para o carro e ria muito da situação.
Por certo o guarda tinha todo o direito de pensar outra coisa, e quando lhe perguntou "o que é que o senhor está fazendo aí?" — já tinha opinião formada. Contar a verdade lhe pareceu pior, o que prova a sua lucidez na ocasião. E então, porque precisava dar uma resposta qualquer ao guarda, disse que estava procurando o isqueiro. Daí passou a mentir, uma mentira em cima da outra, sobre o isqueiro, que era de ouro e tinha seu nome gravado de um lado.
"Como é seu nome?" — quis saber o guarda.
E foi a única verdade que disse: "Carlos Silva. E está escrito do lado do isqueiro. É um isqueiro francês Dupont".
Falava e olhava para os lados, fingindo que procurava. O guarda continuava a não aceitar nada do que dizia, mas mantinha-se sério, perturbando-o ainda mais.
Quando perguntou como conseguira perder o isqueiro ali na grama se estava com a mulher no carro, fingiu que não ouviu e acrescentou: "É um isqueiro de estimação. Foi minha mãe que me deu. Ela já morreu".
Falava e caminhava devagar, tentando se aproximar do carro. O guarda caminhava também, mantendo a distância entre os dois, até o instante em que se abaixou para apanhar algo que brilhou em sua mão, apesar da escuridão.
"Aqui está o seu isqueiro, cavalheiro" — disse o guarda, enquanto ele engolia o próprio espanto, diante do espanto do guarda, que conservava o isqueiro de ouro na palma da mão aberta.
Agora repetia — de certa maneira — a atitude do guarda da véspera. Estava com o isqueiro na palma da mão aberta e me dizia: "E te juro! Eu nunca tive nenhum isqueiro!"
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.