terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pepa Delgado

Pepa Delgado (Maria Pepa Delgado), cantora e atriz de teatro de revistas nasceu em 21/7/1887 em Piracicaba, SP e faleceu em 11/3/1945, no Rio de Janeiro, RJ. Era filha Ana Alves e do toureiro espanhol Lourenço Delgado, que se tornou fotógrafo ao chegar ao Brasil.

Em 1902 veio com o pai para o Rio de Janeiro e, aos 15 anos de idade, se tornou atriz e cantora. Entre 1902 e 1920, atuou em várias revistas encenadas no Teatro São José, no Rio de Janeiro.

Em 1905, gravou para a Casa Edison a cançoneta O abacate e o maxixe Café ideal, ambos da revista Cá e lá, com música da maestrina Chiquinha Gonzaga. No mesmo ano, gravou Um samba na Penha, da revista Avança e A recomendação, de Assis Pacheco.

Em 1912, a Columbia lançou discos seus, nos quais se lia em uma das faces: "Atriz brasileira que tem feito sucesso e arrancado (sic) de nosssas platéias as mais ruidosas manifestacoes (sic)". Em algumas dessas gravações, se apresentou cantando em duetos com Mário Pinheiro, registrando, entre outras, o tango Vatapá, de Paulino Sacramento.

Entre suas gravações, destacam-se ainda a canção Iara (Rasga o coração), de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense e, principalmente, Corta-jaca (Gaúcho), de Chiquinha Gonzaga, sua gravação de maior sucesso, ao lado do cantor Mário Pinheiro.

Em 1920, casou-se com o oficial do Exército Almerindo Álvaro de Moraes, que era tesoureiro do Clube dos Democráticos, onde se tornara mais conhecido pelo apelido de Lambada.

Pepa muitas vezes saiu integrando a comissão de frente no desfile dos Préstitos da terça-feira gorda. Nesse mesmo ano seguiu com o marido para a cidade de Campos-RJ, onde se apresentou em teatros.

Encerrou sua carreira artística em 1924, aos 37 anos de idade. Foi ela quem solicitou a Fred Figner, proprietário da Casa Edison e diretor-geral da Odeon Brasileira, que doasse um terreno em Jacarepaguá para construir o Retiro dos Artistas, situado na Rua dos Artistas, ainda hoje em funcionamento.

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Velho mito

Imaginem vocês a Irlanda de 1919 ou 20. Havia lá, numa cidadezinha obscura, um prefeito igualmente obscuro.

Não se notava entre ele e os demais nenhuma forte e crespa dessemelhança. Absolutamente. Não era pior nem melhor do que milhões de irlandeses, vivos ou mortos. E tinha essa mediocridade de virtudes e defeitos que exigimos do bom marido e do exemplar funcionário.

Até que, um dia, esse burocrata apagado resolve fazer um protesto contra a Inglaterra. Hoje, todo mundo protesta. Há sujeitos que acordam indignados e não sabem contra quem, nem por quê. Naquele tempo, não.

Depois de uma guerra, o mundo estava exausto do próprio ódio. Havia um tédio da violência e da paixão. Mas o homem resolveu desafiar todo o império inglês. Anunciou a greve de fome e a começou.

Claro que, em nosso tempo, as técnicas de comunicação têm uma eficácia e uma instantaneidade prodigiosas. Faz-se um gênio ou idiota, um santo ou herói em quinze minutos de fulminante promoção.

Em 1920 ou 21, porém, uma notícia ainda levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina. Assim mesmo, o mundo soube, já no dia seguinte, que alguém estava morrendo pela liberdade. (Não existe, hoje, palavra mais vã, mais sem caráter, e, direi mesmo, mais pulha do que "liberdade". Como a corromperam em todos os idiomas!) Sim, o martírio do vago funcionário irlandês teve uma platéia mundial.

Dia após dia, o prefeito ia morrendo, ia agonizando nas manchetes. A Inglaterra fez o diabo para salvá-lo. Mas aquele santo nacional não se corrompeu. A morte amadurecia no seu coração atormentado e puro. Mas falei em "platéia mundial" e preciso acrescentar que eu, garoto de seis anos, de pé no chão, fui um dos espectadores. Na minha rua, em Aldeia Campista, os moradores apostavam na sua vida e na sua morte.

E quando, finalmente, ele morreu, e morreu de fome e de sede, houve uma misteriosa irritação. Quero crer que, em Aldeia Campista, o patriota irlandês só foi amado por mim. E amado porque eu era um menino, um pobre ser ainda incorrupto.

Mais tarde, compreenderia que o santo, ou herói, ou mártir, ofende e humilha os demais. Na própria Irlanda, agonizou só e morreu só. A solidão do seu gesto, até hoje, ainda me fere de espanto. Foi talvez o último herói do século. Não sei se exatamente o último. Vá lá — "o último".

Em nosso tempo, só conhecemos o heroísmo coletivo. Na guerra, não se viu uma Joana D'Arc. A heroína era Varsóvia, Roterdã, Londres ou Hiroshima. E, depois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício, uma assembléia, uma unanimidade. Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão.

Um camelô de caneta-tinteiro é mais ouvido do que os profetas antigos. E, quando está só, o homem começa a babar de pusilanimidade. As maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de onipotência.

Hoje, o prefeito irlandês seria uma rigorosa impossibilidade. Não teria sentido a sua feroz solidão. Sentiríamos falta, no episódio, da assembléia, do comício, da massa. E daí porque há, em nosso tempo, o ódio ao herói. Não existe figura mais indesejável, antiga, inválida, espectral.

Ainda há pouco, viu-se a França levantar-se contra De Gaulle. Lembro-me de uma fotografia das greves francesas. É uma rua de paralelepípedos arrancados. É como se até os paralelepípedos estivessem contra o herói. Disse eu, linhas atrás, que o prefeito irlandês, em sua inútil greve de fome, fora o último caso de heroísmo solitário. Faço a correção: — existe também De Gaulle.

Outro dia, uma estagiária do Jornal do Brasil veio perguntar-me: — "Qual a sua opinião sobre De Gaulle?". Eu poderia ter dito: — "De Gaulle é o passado". E estaria certo. O herói é o passado.

Mas como ia dizendo: — o país se levantou contra o mito. Estudantes levavam cartazes assim: — "De Gaulle assassino", "Fora De Gaulle" etc. etc. E o prodigioso é que a França foi a pátria dos heróis. Mas não se iludam. A própria França é o passado.

Diante de nós está a anti-França. No momento em que o país se matava em greves, De Gaulle fez um pronunciamento. Disse: — "Eu sou a Revolução". Mas vejam a obstinação com que ele se diz "eu". Usa uma linguagem morta, até o último vestígio. Ao se apresentar como o último "eu" do século, De Gaulle pôs entre ele e o seu povo toda uma distância irreversível.

Dirá alguém que os paralelepípedos foram repostos, que não há mais carros virados e que apagaram o incêndio da Bolsa. Por outro lado, os operários que seqüestraram os gerentes já os devolveram. Tudo isso é certo. Mas nada impede que De Gaulle seja o puro e irremediável passado. O herói está só e cada vez mais só. Sei que o resultado das eleições parece uma ressurreição. De Gaulle ganha por toda a parte. Mas é preciso ver o que há de aparente, de ilusório, de efêmero em tal vitória. São os cem dias napoleônicos.

O que se passou entre ele e o seu povo é uma incompatibilidade irremediável, fatal.

A França das assembléias, das maiorias, das unanimidades, não aceita mais o herói solitário e formidável.

De Gaulle não sabe que está morto, e faz discursos.

[27/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Luís Pierre e o túnel

Tudo começou por causa do procedimento da mulher do Luís Pierre! Ela não era sequer bonitona, mas se achava. Mulher que se acha o fino, quando não é, costuma ser um perigo. Adora dar bolas prós outros num complexo de auto-afirmação que deixaria qualquer Freud doido.

Pois a mulher do Luís Pierre era assim e, de bola em bola, acabou saindo por cima do travessão. Aí vocês sabem como é: prevaricou a primeira vez, fica freguês.

Todo mundo lamentava o procedimento dela, que nas primeiras prevaricações ainda tomou um certo cuidado, mas depois se mandava, pouco ligando à boca do povo, uma boca que, para essas coisas, não se cala nem para mastigar.

Foi então que o blá-blá-blá chegou aos ouvidos do Pereirão que era amigo de Luís Pierre e nunca tinha reparado em nada. Porém, alertado, foi conferir e ficou chateadíssimo:

— Ora, para o que deu essa sirigaita — dizia ele na roda do clube. — O Luís Pierre casou com ela quase que amarrado. Fingia-se de apaixonado e agora está aí que nem chuchu no mercado, subindo pelas paredes.

Mas o Pereirão não podia ir dizer ao amigo. Essas coisas dão sempre em besteira, quando o amigo tenta desentortar o que está torto. No entanto, na qualidade de amigo, tratou de fazer sentir ao Luís Pierre que tinha lingüiça por debaixo do angu. Uma insinuaçãozinha aqui, outra ali, na esperança de que o outro se mancasse e tomasse uma atitude.

Estas coisas, todavia, são sempre parecidas. O pobre do marido, se não desconfia por si mesmo, se não pega num flagra ocasional, não adianta insinuar, pois é dos inocentes o direito de não desconfiar. Vendo o seu trabalho ir por água abaixo, o Pereirão começou a se irritar ao contrário, isto é, começou a achar que um marido tão boboca merecia. E mais de uma vez disse na roda do clube.

— O idiota merece.

No fim de certo tempo, dava razão à sirigaita (conforme ele mesmo classificara a mulher) e começou a implicar com o Luís Pierre. Uma tarde — na roda do clube —, comentou-se qualquer coisa sobre a mais recente aventura de Mme. Luís Pierre, e o Pereirão foi mordaz, afirmando que Luís Pierre não podia nem passar mais no túnel. Houve uma gargalhada geral e a piada de mau gosto se espalhou, não demorando muito para que um safado qualquer mandasse uma carta anônima ao marido enganado contando tudo.

Luís Pierre ficou estarrecido. Em vez de dar a bronca na mulher, comentou com ela a safadeza do Pereirão, seu amigo do peito, à dizer aquelas maldades. A mulher aproveitou para insuflar, dizendo que — "ou você toma uma atitude ou tomo eu", enfim, essas bossas.

À tarde, no clube, Luís Pierre chegou mais cedo, para esperar o Pereirão, mas lá chegando só encontrou o Gustavinho, velho aposentado, que bebia muito para esperar a morte. Não valia nada, o Gustavinho.

Caneca vai caneca vem, os dois foram ficando meio caneados e Luís Pierre contou por que viera mais cedo. Contou tudinho: que o Pereirão era um safado, que ele ia tomar satisfações, que aquela história de ele não poder passar mais no túnel era ofensa que não ia ficar assim. E arrematou:

— Hoje eu arrebento a cara daquele safado.

O Gustavinho era contra violências. Aconselhou a quebrar o galho de outra maneira. Afinal, aquilo de não poder passar mais no túnel, francamente. E como Luís Pierre insistisse, perguntou:

— Vem cá, velhinho, seu escritório não é na Esplanada do Castelo?

— É — respondeu Luís Pierre.

— E você não mora em Botafogo?

Nova confirmação de Luís Pierre. E aí Gustavinho aconselhou:

— Então, rapaz, você para ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa, não tem a menor necessidade de passar no túnel!
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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