Tempos atrás, o Walter Clark telefonou-me. Foi sumário: — "Preciso de ti". Ainda perguntei: — "Qual é o drama?". Fez suspense, fez mistério: — "Só pessoalmente". E já se despedia: — "Te espero. Vem já".
Meia hora depois, entro no seu gabinete, ali, na TV Globo. Tenho que esperar, porque ele despachava alguém. E, então, para fazer hora, vou espiar os quadros do meu amigo.
Walter Clark gosta de pintura e, pior, entende de pintura. Ao passo que eu, como o Otto Lara Resende, sou um idiota plástico. Certa vez, aconteceu uma, que considero antológica. Estávamos, eu e o Otto, na casa do Hélio Pellegrino. E paramos, um momento, diante de um Volpi. Veio o Hélio e jurou que o Volpi era "melhor que Portinari". Uma abjeta pusilanimidade crítica tapou-nos a boca. Mas, assim que o anfitrião virou as costas; ciciei para o Otto e o Otto ciciou para mim: — "Abominável Volpi! Horrendo Volpi!". Essa sinceridade cochichada lavou-nos a alma.
E, justamente, o escritório do Walter Clark está cheio de belas cópias de Cézanne, Gauguin, Degas, Monet etc. etc.
Aqui há um jóquei, ali uma bailarina, acolá uma mulata e, mais adiante, um clown. Falta-me entusiasmo visual. Para mim e o Otto, a boa pintura é como um texto chinês de cabeça para baixo. Súbito, ouço o Walter balbuciar, de puro assombro: — "Você veio da Hungria só para me tomar dinheiro?". Era verdade. O sujeito que lá estava viera, sim, de Budapeste, pedir-lhe setenta contos emprestados.
Walter quis um abatimento para cinqüenta. O patriota húngaro não transigiu: — "Setenta". E daí não saía. Walter subiu para sessenta. E ninguém percebeu que os papéis já se invertiam. O pedinte agora era o meu amigo. Sim, era ele que crispava as mãos numa súplica abjeta. O outro estava quase ofendido e quase enojado.
Houve um momento em que, nauseado, ergueu-se: — "Ou setenta ou nada". Então, batido, o Walter encheu o cheque dos setenta. O sujeito olha o papel, verifica a quantia, a data e a assinatura. E vai-se embora sem agradecer e sem se despedir.
Só então o Walter me chama. E confesso: — pasmei para o esplendor dos seus suspensórios. Não sei se me entendem. O meu amigo usa, hoje, os suspensórios dos gângsteres de Chicago, na Grande Depressão. São, por assim dizer, suspensórios paisagísticos, com figurinhas de flores, bezerros, vaquinhas, bodes, arvoredos, corações flechados.
Essas tatuagens encantadas fascinam, não só os visitantes da TV Globo, como os funcionários da casa. Eu diria que a única vaidade física do Walter Clark está nos suspensórios.
Começamos a conversar e ele foi direto ao assunto: — "Bola um programa de televisão. Coisa interessante. Pra você fazer com o Otto e o Hélio".
Seria um programa sem limite de tempo. E, todas as noites, ou mais precisamente, no fim da noite, eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino passaríamos em revista, e com a maior imodéstia, os grandes problemas do Brasil e do mundo.
Prometi ao Walter: — "Vou pensar".
Fui para casa e não me saíam da cabeça as vaquinhas desenhadas nos suspensórios. Quebrava a cabeça e não me ocorria uma idéia, um título, nada. Até que, de repente, fez-se luz. Imaginei um programa que se chamasse assim: — Os falsos canalhas. Repeti para mim mesmo: — Os falsos canalhas. Uma das vantagens do título era fazer mistério, fazer suspense. De resto, "canalha" era uma das palavras mais fortes, mais densas, mais patéticas da língua.
Quando liguei para o Walter, propondo o título, ele fez espanto: "Por que falsos canalhas?". Tratei de explicar. Todos os países e todos os idiomas têm uma seletíssima elite de "canalhas aparentes". Darei um exemplo. Imaginem um político, ou um poeta, ou um artista, ou um ministro, ou um funcionário. Parecem esculpidos em ignomínia.
Lembro-me de um rapaz que conheci, uma flor de rapaz. E todos o apontavam e cochichavam: — "Pulha da pior espécie!". Mas ninguém sabia de um gesto seu menos correto, de uma ação menos digna, de um sentimento menos nobre. Até que, uma tarde, eu próprio o vi passar, de braço, com a esposa linda.
Estava aí o mistério de sua reputação: — a mulher bonita.
E, de fato, não custa chamar de "escroque", de "gatuno", de "crápula", aquele que tem, em casa, uma Ava Gardner. O fato é que os "falsos canalhas" existem, por toda a parte. E o triste é quando o sujeito morre sem reabilitação.
Todos pensam, inclusive a própria família, que o morto foi realmente um pulha. Há sempre alguém, no dia de Finados, com vontade de lhe cuspir na cova.
Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu irmão Mário Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exatamente a pessoa: — Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista etc. etc.
Eu já o conhecia de nome e de vista. Vira-o, uma madrugada, nos Três Patetas, tomando café. Não sei se café ou sei lá. Não, não: Estava em pé, nos Três Patetas, junto ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apresentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa, e não um artista. Um cachimbo.
Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava: — que sujeito indesejável, irrespirável e cínico.
Eis a palavra: — cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo abjeto e total. E não entendia por que Mário se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: — "O Cony! O Cony!". Em suma: — com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: — era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na primeira pausa, aproveitei para me despedir.
Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade.
Mas sentia uma angústia intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.
E quantas vezes, depois disso, Mário me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mário ia ser, e para sempre, amigo do canalha.
Até que, uma madrugada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: — Mário acabara de morrer. Corri para vê-lo.
Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia seguinte, uma chopada com o Hélio Pellegrino. Debrucei-me sobre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.
Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mário, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: — "Como foi isso? Como foi isso?". O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando por entre mesas e cadeiras — tão órfão de Mário.
Foi aí e só então que entendi a amizade que os unia.
O irreal, o absurdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afundou o rosto nas duas mãos, chorou alto, chorou forte.
E, naquele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre.
Era, sim, o falso canalha.
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Meia hora depois, entro no seu gabinete, ali, na TV Globo. Tenho que esperar, porque ele despachava alguém. E, então, para fazer hora, vou espiar os quadros do meu amigo.
Walter Clark gosta de pintura e, pior, entende de pintura. Ao passo que eu, como o Otto Lara Resende, sou um idiota plástico. Certa vez, aconteceu uma, que considero antológica. Estávamos, eu e o Otto, na casa do Hélio Pellegrino. E paramos, um momento, diante de um Volpi. Veio o Hélio e jurou que o Volpi era "melhor que Portinari". Uma abjeta pusilanimidade crítica tapou-nos a boca. Mas, assim que o anfitrião virou as costas; ciciei para o Otto e o Otto ciciou para mim: — "Abominável Volpi! Horrendo Volpi!". Essa sinceridade cochichada lavou-nos a alma.
E, justamente, o escritório do Walter Clark está cheio de belas cópias de Cézanne, Gauguin, Degas, Monet etc. etc.
Aqui há um jóquei, ali uma bailarina, acolá uma mulata e, mais adiante, um clown. Falta-me entusiasmo visual. Para mim e o Otto, a boa pintura é como um texto chinês de cabeça para baixo. Súbito, ouço o Walter balbuciar, de puro assombro: — "Você veio da Hungria só para me tomar dinheiro?". Era verdade. O sujeito que lá estava viera, sim, de Budapeste, pedir-lhe setenta contos emprestados.
Walter quis um abatimento para cinqüenta. O patriota húngaro não transigiu: — "Setenta". E daí não saía. Walter subiu para sessenta. E ninguém percebeu que os papéis já se invertiam. O pedinte agora era o meu amigo. Sim, era ele que crispava as mãos numa súplica abjeta. O outro estava quase ofendido e quase enojado.
Houve um momento em que, nauseado, ergueu-se: — "Ou setenta ou nada". Então, batido, o Walter encheu o cheque dos setenta. O sujeito olha o papel, verifica a quantia, a data e a assinatura. E vai-se embora sem agradecer e sem se despedir.
Só então o Walter me chama. E confesso: — pasmei para o esplendor dos seus suspensórios. Não sei se me entendem. O meu amigo usa, hoje, os suspensórios dos gângsteres de Chicago, na Grande Depressão. São, por assim dizer, suspensórios paisagísticos, com figurinhas de flores, bezerros, vaquinhas, bodes, arvoredos, corações flechados.
Essas tatuagens encantadas fascinam, não só os visitantes da TV Globo, como os funcionários da casa. Eu diria que a única vaidade física do Walter Clark está nos suspensórios.
Começamos a conversar e ele foi direto ao assunto: — "Bola um programa de televisão. Coisa interessante. Pra você fazer com o Otto e o Hélio".
Seria um programa sem limite de tempo. E, todas as noites, ou mais precisamente, no fim da noite, eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino passaríamos em revista, e com a maior imodéstia, os grandes problemas do Brasil e do mundo.
Prometi ao Walter: — "Vou pensar".
Fui para casa e não me saíam da cabeça as vaquinhas desenhadas nos suspensórios. Quebrava a cabeça e não me ocorria uma idéia, um título, nada. Até que, de repente, fez-se luz. Imaginei um programa que se chamasse assim: — Os falsos canalhas. Repeti para mim mesmo: — Os falsos canalhas. Uma das vantagens do título era fazer mistério, fazer suspense. De resto, "canalha" era uma das palavras mais fortes, mais densas, mais patéticas da língua.
Quando liguei para o Walter, propondo o título, ele fez espanto: "Por que falsos canalhas?". Tratei de explicar. Todos os países e todos os idiomas têm uma seletíssima elite de "canalhas aparentes". Darei um exemplo. Imaginem um político, ou um poeta, ou um artista, ou um ministro, ou um funcionário. Parecem esculpidos em ignomínia.
Lembro-me de um rapaz que conheci, uma flor de rapaz. E todos o apontavam e cochichavam: — "Pulha da pior espécie!". Mas ninguém sabia de um gesto seu menos correto, de uma ação menos digna, de um sentimento menos nobre. Até que, uma tarde, eu próprio o vi passar, de braço, com a esposa linda.
Estava aí o mistério de sua reputação: — a mulher bonita.
E, de fato, não custa chamar de "escroque", de "gatuno", de "crápula", aquele que tem, em casa, uma Ava Gardner. O fato é que os "falsos canalhas" existem, por toda a parte. E o triste é quando o sujeito morre sem reabilitação.
Todos pensam, inclusive a própria família, que o morto foi realmente um pulha. Há sempre alguém, no dia de Finados, com vontade de lhe cuspir na cova.
Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu irmão Mário Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exatamente a pessoa: — Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista etc. etc.
Eu já o conhecia de nome e de vista. Vira-o, uma madrugada, nos Três Patetas, tomando café. Não sei se café ou sei lá. Não, não: Estava em pé, nos Três Patetas, junto ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apresentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa, e não um artista. Um cachimbo.
Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava: — que sujeito indesejável, irrespirável e cínico.
Eis a palavra: — cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo abjeto e total. E não entendia por que Mário se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: — "O Cony! O Cony!". Em suma: — com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: — era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na primeira pausa, aproveitei para me despedir.
Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade.
Mas sentia uma angústia intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.
E quantas vezes, depois disso, Mário me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mário ia ser, e para sempre, amigo do canalha.
Até que, uma madrugada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: — Mário acabara de morrer. Corri para vê-lo.
Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia seguinte, uma chopada com o Hélio Pellegrino. Debrucei-me sobre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.
Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mário, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: — "Como foi isso? Como foi isso?". O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando por entre mesas e cadeiras — tão órfão de Mário.
Foi aí e só então que entendi a amizade que os unia.
O irreal, o absurdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afundou o rosto nas duas mãos, chorou alto, chorou forte.
E, naquele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre.
Era, sim, o falso canalha.
[25/6/1968]
______________________________________________________________________A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.