quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A expectativa matrimonial

Bernardino, Bolão e Madureira eram três amigos inseparáveis. Viviam juntos e onde ia um, ia o resto. Pois bem: de repente o Bernardino sumiu. Passou uma semana sem aparecer no botequim e os amigos já estavam ficando preocupados.

Ficaram tão preocupados que chegaram a telefonar para o DOPS. É a atual conjuntura. Nego quando some, atualmente, ou tá viajando ou tá hospedado no Hotel Palace DOPS. Mas, felizmente, não era nada disso e dias depois o Bernardino apareceu.

Vinha com cara de cachorro que quebrou panela, e sentou-se à mesa do bar meio constrangido. Pediu uma cachaça e, enquanto era crivado de perguntas pelos outros dois pinguços, dava um riso de experiente e depois contava:

— Bem... eu fui dar uma de casado e me dei mal.

— Ué, por quê? — perguntaram os caneados de sousa.

— Não dá pedal, meu camaradinha. Eu arrumei uma grinfa e me maloquei uns dois dias. Depois, bem, depois eu pensei que dava pra gente fazer um casório pelo facilitário e foi aí que eu me estrepei. Foi só ela chegar lá em casa e começar a mandar brasa na minha felicidade.

E foi desfiando o seu rosário de queixas. A grinfa chegou no modesto apartamento de Bernardino e mandou logo pintar a sala. Jogou fora todas as garrafas vazias que estavam na área e que, embora vazias, já tinham dado algum prazer a ele. Era tudo coleção: Praga de Mãe, Respeita a Mulher do Sargento, Mocotolina, Sabugo de Ve¬lha, E Então? Cachaças de rótulos originais e que nunca mais apare¬ciam outras iguais. E o Bernardino continuava se queixando com justa razão.

— Além disso, mandou limpar a cozinha, arrumou meus sapatos, passou meus ternos, minhas camisas e mandou eu cortar o ca¬belo e fazer a barba.

— Bem, olha aqui, Bernardino — falou o Madureira — quanto à cachaça eu não dou razão a ela, mas quanto à arrumação, vamos lá...

— Que nada, rapaz! Dois dias depois ela estava igualzinha à minha primeira mulher. Cheia de intimidades, querendo beber no meu copo e querendo dormir agarrada comigo. O que é que há?

— Mas espera aí, Bernardino — disse Bolão — isto é onda de mulher casada. Elas faz tudo isso. Será que você não sabia?

— Você é gozado... Claro que eu sabia. Por isso é que não deu nada certo. O apartamento, além de pequeno, tinha o problema da Margarida, que não gostava dela.

— Ué, eu não sabia que você tinha cachorra!

— Que cachorra, rapaz! Margarida é o nome de minha esposa.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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Os abnegados

 Há uma página de Os Maias que não consigo esquecer.

Imaginem um ministro de Educação que não tinha cara, só tinha testa. Nem um mísero e escasso fio de cabelo.

Tamanha testa foi o seu destino e sua glória. Ele não precisava ciciar uma palavra, ou desdenhar um gesto, ou piscar um olho. A testa bastava e repito: — a testa era a evidência mesma do gênio.

Uma noite, está o nosso ministro numa recepção. Cercado de damas e cavalheiros por todos os lados. E, súbito, alguém fala na Inglaterra. S. exª achou bonito o nome, o som. Inglaterra.

E vira-se, então, para o Ega, que estava a dois passos. Pergunta-lhe:

— "Sabe se, na Inglaterra, há folhetinistas de pulso, como aqui? Talentos como os nossos?".

Primeiro, o Ega tem uma vertigem diante da testa inaudita.

Em seguida, informa: — "Lá não há literatura".

Diz então o ministro: — "Logo vi. Povo prático, essencialmente prático".

Eis o que eu queria dizer: — sou um pouco essa admirável testa de Os Maias. Em criança, só li folhetim. E ainda hoje, tanto tempo depois, ainda preservo a nostalgia dos Sue, dos Perez Scrich, dos Dumas pai, dos Ponson du Terrail. Outro dia, vou a uma festinha em casa de um amigo. E, de repente, vem a dona de casa, com um pratinho.

Pergunta: — "Aceita rocambole?". Esse nome arremessou-me no passado profundo. "Rocambole" era o nome de um herói de Ponson du Terrail e título também do próprio folhetim.

Disse, radiante: — "Pois não, pois não". E os dois ficaram justapostos na minha memória: — o personagem e o doce, o folhetim e o prato.

Essa mesma experiência proustiana tenho eu quando me chega uma carta anônima. E aí está uma marca de leituras pasmas. Como se sabe, a carta anônima é um dos artifícios mais felizes do velho folhetim. O marido a recebia (e o marido era sempre sórdido e obeso). Lá vinha escrito: — "Considere-se miseravelmente enganado". E se disparava a intriga romanesca. Na altura dos meus oito, nove, dez anos, daria tudo para receber uma torpe carta anônima.

Fiz a introdução acima para contar o que me sucedeu ontem.

Vou ler a minha correspondência e já no primeiro envelope tenho o impacto. É que a carta não trazia assinatura. Ah, o homem diz, na carta anônima, o que não ousaria dizer ao padre, ao psicanalista e ao médium, depois de morto. O menino do folhetim veio à tona. Comecei a ler.

Começava assim: — "Nelson, você é um traidor". Minha curiosidade assumiu proporções inéditas. Traidor, eu? Da pátria, talvez. Entre parênteses, assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.

Em seguida, a carta anônima informa que sou traidor da própria classe. Qual delas? Tenho duas: — por um lado, faço jornalismo; por outro lado, faço teatro.

Segundo a carta, era traidor da classe teatral. Quando cheguei à última linha, voltei à primeira e reli tudo. Só então fui-me olhar no espelho. E vi, na minha cara, o esgar hediondo da traição.

Fica de pé a pergunta: — e por que traidor? Vejamos os fatos.

O Estado de S. Paulo fez um editorial, ou dois editoriais, que desagradaram a classe. E que faz a classe?

Reúne-se e, por unanimidade, resolve devolver os Sacis que o velho órgão distribui entre os melhores de cada ano, no cinema e no teatro. E, não satisfeita, a assembléia decidiu, e por outra unanimidade, uma passeata-monstro.

Mas, vejamos. A classe ia marchar contra quem? Aqui começa o doloroso, o comprometedor, o humilhante: — contra um jornal. Se os meus colegas saíssem pelas ruas paulistas decapitando marias antonietas e derrubando bastilhas, eu estaria admirando a ferocidade teatral. Mas a nossa vítima é uma redação, vejam vocês, uma redação.

Por outro lado, tenho algumas dúvidas perturbadoras.

O Saci é uma pequena estatueta. E se fosse um prêmio em dinheiro? Repito: — se o Saci fosse um cheque de 5 milhões de cruzeiros? E nem precisa tanto. Imaginemos um cheque mais modesto de 1 milhão ou menos do que isso: — de 500 mil cruzeiros antigos. Pergunto se os manifestantes devolveriam o dinheiro vivo.

Duvido, isto é, afirmo que ninguém devolveria um centavo. Portanto, vamos desconfiar de um desprendimento que não desembolsa um tostão. Nem considero a unanimidade um argumento decente.

Quanto ao meu caso pessoal, estou farto de repudiar unanimidades. Além disso, como eu sou um premiado, e não vou devolver Saci nenhum, não existe tal unanimidade. Mas, vamos admitir que todos, absolutamente todos, estejam contra O Estado de S. Paulo. Eu estaria a favor. Não me solidarizo com os erros, os equívocos, de minha classe. Diz a carta anônima: — "Uma classe não erra. Uma classe sempre tem razão".

Nada mais falso. Homens, classes ou povos são suscetíveis dos mais sinistros enganos ou das mais hediondas torpezas. O motivo e a origem de tudo foram dois editoriais. Que fossem duzentos. Qualquer jornal tem o direito de escrever como quiser e o que quiser, sem dar satisfações a ninguém. Falo por experiência própria.

Ao longo de vinte anos, fui o único autor obsceno do Brasil. E, durante esse período, fui chamado de "tarado" em manchete. Os críticos me xingavam de "cérebro doentio", de "caso de polícia", de "louco varrido". O dr. Alceu Amoroso Lima disse horrores de mim. Em momento nenhum, neguei-lhe o direito de me dizer tais horrores. Sempre quis a imprensa livre.

Diz a carta que a classe quer a liberdade. Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade. Dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura. A passeata que se fez é, precisamente, contra a liberdade de imprensa.

Queremos um teatro livre. E, ao mesmo tempo, pretendemos exercer uma censura, vejam vocês. Os censores da imprensa somos nós, atores, atrizes, autores. Em nome da liberdade, agredimos a liberdade. Ainda bem que o nosso heroísmo começou e acabou na devolução dos Sacis.

E assim o pessoal de teatro desceu do palco e foi às ruas, representar de libertário.

[22/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Jair da Rosa Pinto, o Jajá-da-Barra-Mansa

As pernas muitos finas e o corpo muito magro de Jair escondiam uma canhota poderosíssima e um craque incansável que por 26 anos encantou a torcida brasileira. Mas não se limitava aos chutes terríveis. Era um armador espetacular, organizador de jogadas e exato nos passes que fizeram a festa de muitos artilheiros (caso do garoto Pelé, que Jair encontrou no Santos). Jogava mais com a cabeça do que com o coração, fato que muitas vezes era confundido com falta de fibra.

Jair Rosa Pinto nasceu em Quatis, RJ, em 21/3/1921, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28/7/2005 e foi um dos principais futebolistas das décadas de 1940 e 1950, ídolo da história do Palmeiras, Santos e Vasco.

Conhecido como Jajá-da-Barra-Mansa (visto que Quatis, hoje município emancipado, na época era distrito de Barra Mansa), começou jogando no Vasco da Gama, como amador nas categorias de base. Contudo, acabou saindo do clube por haver atletas demais, segundo o próprio jogador.

Começou a carreira profissional no Madureira, atuando como meia-esquerda, em 1938, quando formou um trio com os jogadores Lelé e Isaías, conhecido como Os Três Patetas. O trio fez tanto sucesso que acabou sendo contratado pelo Vasco da Gama em 1943, onde participou do Expresso da Vitória, considerado um dos maiores elencos da história do clube. Pelo Vasco fez 71 jogos, com 44 vitórias, 18 empates e nove derrotas, marcando 27 gols (média de 0,39 gol por jogo).

Ademir, Lelé, Isaias, Jair e Chico,  ataque demolidor do Expresso da Vitória de 1945

Em 1946 saiu do Vasco e foi para o Flamengo, segundo ele, por receber menos que outros jogadores no elenco.

Do Flamengo se transferiu para o Palmeiras em 1949, após a acusação de ter sido subornado no jogo em que o clube perdeu de 5x2 para o Vasco e ter tido sua camisa queimada pela torcida. Segundo Jajá, tudo não passou de um mal entendido espalhado pelo rubro-negro Ary Barroso, devido a um almoço entre ele e Major Póvoas, dirigente vascaíno da época.

No clube do Parque Antártica Jair ganhou o Paulista de 1950, o Torneio Rio-São Paulo de 1951 e a Copa Rio (Mundial Interclubes) de 1951.

Jair  pedindo raça, no "Jogo da Lama".
A passagem marcante no Palmeiras foi na final do Paulistão de 1950, quando o Alviverde enfrentou o São Paulo na final e precisava de um empate para ser campeão. No 1o tempo, o Tricolor abriu o placar. No intervalo, Jair gritou com o time pedindo raça e incentivando os palestrinos, ocorreu o empate debaixo de uma chuva torrencial no Pacaembu e com muita lama. Ao fim do jogo, os palestrinos saíram campeões, impedindo o tricampeonato do São Paulo. E a torcida, às lágrimas, comemorou carregando Jair,num dia de festa na cidade de São Paulo. O fato ficou conhecido como o "Jogo da Lama" e está registrado como um dia em que o Palmeiras venceu o campeonato com muita garra, enfrentando o poderoso São Paulo.

Em 1956 foi para o Santos, onde venceu três campeonatos paulistas (1956, 1958 e 1960). Ainda em 1957 voltar a vestir a camisa do Vasco num combinado Vasco-Santos numa série de três amistosos no Maracanã. Jair jogou no Santos F.C. já quando veterano (tinha quase 40 anos), mas é lembrado até hoje como membro da melhor linha do Santos (que não tinha Mengálvio e Coutinho). O melhor ataque do Santos foi a que o Palmeiras enfrentou no famoso 7X6 do Torneio Rio-São Paulo de 1958, formada por Dorval, Jair, Pagão, Pelé e Pepe. Esse ataque bateu o recorde de gols do paulistão em 58, com 143 gols, e o aumentou em 59 para 151 gols.

Dorval, Jair Rosa Pinto, Pagão, Pelé e Pepe. Um ataque arrasador em 1957.

Jair atuou em 41 partidas pela Seleção Brasileira (39 oficiais), com 25 vitórias, cinco empates, onze derrotas, marcando 24 gols (22 oficiais). Foi o artilheiro da Copa América de 1949, com 9 gols, recorde até hoje não batido. Foi vice-campeão na Copa do Mundo de 1950, jogada no Brasil, onde marcou um gol em cinco jogos disputados. Sobre a derrota para o time do Uruguai, na final travada no estádio do Maracanã, Jair declararia: "Isso eu vou levar para a cova, mas, lá em cima, perguntarei para Deus por que perdemos o título mais ganho de todas as copas, desde 1930".

Ainda jogou com brilho no São Paulo e depois na Ponte Preta onde encerrou a carreira em 1963, aos 42 anos. Foi ainda técnico de oito clubes, mas sem conseguir alcançar o sucesso que teve como jogador.

Depois de aposentado, estabeleceu-se no bairro da Tijuca, onde era um popular freqüentador dos cafés da Praça Sáenz Peña. Jair morreu aos 84 anos, de embolia pulmonar após uma cirurgia e teve seu corpo cremado.

Fontes: Wikipedia; Revista Placar.
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