terça-feira, 18 de outubro de 2011

Lapinha, a cantora pioneira

Lapinha (Joaquina Maria da Conceição Lapa), cantora, floresceu no Rio de Janeiro, RJ, entre fins do séc. XVIII e inícios do séc. XIX. Brasileira de nascimento, adquiriu renome no Rio de Janeiro exibindo-se no teatro como atriz e cantora (ao lado reconstituição do rosto da cantora pelo artista plástico Mello Menezes).

A Gazeta, de Lisboa, Portugal, noticia a sua apresentação no Porto, Portugal, em concertos realizados nos dias 27 de dezembro de 1794 e 3 de janeiro de 1795. O mesmo jornal, exaltando as qualidades excepcionais da cantora, dá notícia do concerto que se realizaria no Teatro São Carlos, de Lisboa, no dia 24 de janeiro de 1795.

"A célebre cantora americana", como a ela se referem as notícias da época, exibiu-se ainda em Coimbra, Portugal, onde foi alvo de grandes homenagens prestadas pelos estudantes da universidade.

Para ela o padre José Maurício Nunes Garcia escreveu o Coro para o entremês, em 1808, e uma ária do drama O triunfo da América, em 1809.

Pioneira em aplausos

Ela arrancou aplausos de plateias exigentes e elogios de críticos europeus no século XIX. Mulata, Joaquina Maria da Conceição da Lapa, a Lapinha, venceu preconceitos e se tornou a primeira cantora brasileira aplaudida fora do Brasil.

O pesquisador e músico Sérgio Bittencourt-Sampaio, em seu livro Negras líricas: duas intérpretes brasileiras na música de concerto (Sete Letras, 2008), narra o quanto a artista foi pioneira nas artes e na emancipação da mulher. “Houve outras mulheres dedicadas à música, em seu tempo e antes, mas estavam longe de conseguir tal prestígio”, diz Bittencourt-Sampaio.

"O nome da Lapinha tem aparecido esporadicamente em textos sobre música brasileira e memórias da cidade do Rio de Janeiro voltados para o final do Vice-Reinado e Período Joanino, mas sempre limitados a uns poucos parágrafos, ou, mesmo poucas linhas. Por isso, nas minhas pesquisas bibliográficas passava por esse nome, mas não me chamava a atenção.

Meu interesse surgiu quando comecei a pesquisar cantoras líricas negras brasileiras do século XIX, há pouco mais de cinco anos. A primeira foi Camila da Conceição, que me despertou o interesse quando encontrei uma fotografia dela na Escola de Música da UFRJ. Os dados biográficos então existentes eram raríssimos. Resolvi, então, recompor sua história, em busca das possíveis fontes.

Logo encontrei referências à carreira da Lapinha que imediatamente mereceu minha atenção, a princípio por ser de etnia negra (por isso, se enquadrava na pesquisa) e, depois, pelo seu mérito artístico. Não havia então nenhum livro publicado no Brasil sobre o assunto. Logo me aprofundei nos estudos para elaborar uma pequena biografia, não só relativa à carreira musical da cantora, mas à sua vida artística em geral e aos seus triunfos."

"À medida que a pesquisa progredia, foi o enorme sucesso que ela obteve no Brasil e em Portugal, em função do talento tanto como cantora quanto como atriz dramática, exaltado de maneira acentuada por pessoas que a conheceram. E também o prestígio que ela obteve junto à Família Real, na Metrópole e no Brasil.

Basta você pensar que ela foi a primeira mulher a se apresentar no Teatro de S. Carlos em Lisboa (pouco após a inauguração), isso revela o valor de seus dotes artísticos. A apresentação no Porto também foi extraordinária. Tinha tanta gente querendo assistir à estreia que foi necessário fazer uma outra apresentação poucos dias depois. A isto, podemos acrescentar a atuação em solenidades como o aniversário do Príncipe Regente e o enlace matrimonial de D. Maria Teresa, a Princesa da Beira, com D. Pedro Carlos de Bourbon, em 13 de maio de 1810, no Rio de Janeiro.

Na época (final do Vice-Reinado e início da Monarquia), uma cantora lírica obter tal repercussão, se distinguindo de outras atrizes e atingindo um nível de fama ainda não conquistado por nenhuma brasileira na área lírica, até mesmo no século XIX era um fato notável e único.

Se considerarmos a condição étnica, vemos que foi a primeira mulher negra a ter imenso sucesso na arte. Houve outras dedicadas à música, em seu tempo e antes, mas estavam longe de conseguir tal prestígio."

Fontes: Revista de História da Biblioteca Nacional - Pioneira em Aplausos; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha - 2a. Edição - 1998.
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A celebração das descobertas

"E Deus quis que o Novo Mundo fosse descoberto pelos reis cristãos e seus vassalos, e que eles aceitassem alegremente o trabalho de converter e conquistar os idólatras. Bendito seja o Senhor!"

Assim Gonçalo Fernandes de Oviedo (Madrid, 1478 - Valladolid, 1557), escritor, cronista e colonizador espanhol, descreve o espírito de sua época, na obra Historia General de las Indias e de las Tierras del Mar Oceano, escrita em 1535 (figura ao lado).

Tempo em que os espanhóis invadiam e dominavam as terras descobertas por Colombo, "para maior Glória de Deus". E foram os próprios conquistadores que começaram a transformar sua aventura em história:

Oviedo, um fidalgo que veio às Américas para colonizar, foi o primeiro "cronista de Indias" da coroa espanhola - em outras palavras, historiador oficial encarregado de justificar e glorificar a conquista. A "descoberta" foi descrita como uma vontade divina. Os índios eram infiéis sem civilização, como os negros africanos: deviam se converter ou virar escravos.

Cronistas da época também esculpiram a versão de que nenhum outro povo "civilizado" alcançara o Novo Mundo antes dos ibéricos. Não à toa: o dono, claro, era quem chegou primeiro e a ele cabia o direito de ficar rico com isso.

O mesmo raciocínio foi adotado uns dois séculos depois pelos colonizadores ingleses da Austrália: embora a ilha já tivesse sido avistada pelos portugueses em 1522, pelos holandeses em 1614 e talvez pelos chineses bem antes disso, o "descobridor oficial" foi o britânico James Cook, que tomou posse da terra em nome da Coroa inglesa. (De todos os possíveis descobridores da Oceania, só os chineses vestiam "longas túnicas", como os misteriosos visitantes das lendas aborígenes e maoris).

No Brasil, a transformação de Pedro Álvares Cabral em herói só ocorreu no século 19. Até então, livros de história mal falavam nele. Em Portugal, também era pouco lembrado: a casa que pertencera à sua família, na cidade de Santarém, ficou abandonada por séculos e chegou a virar um prostíbulo, até ser restaurada em meados do século 20. "Depois da Proclamação da República, em 1889, o país buscava uma identidade nacional, precisava de um herói em suas origens", diz Leandro Karnal, da USP.

Colombo também permaneceu nas sombras por séculos e só foi reabilitado em 1866, quando americanos de origem italiana inventaram o Columbus Day, ou Dia de Colombo. O objetivo era sublinhar o papel da Itália na colonização da América - truque ideológico numa época em que os imigrantes italianos eram desprezados e até linchados pela elite anglo-saxã.

Com o tempo, a celebração da "descoberta" foi exportada para a América Central e do Sul e até hoje faz parte de muitos calendários nacionais. É um bom exemplo de história contada pelos vencedores: europeus, brancos e cristãos. Se nossos livros tivessem sido escritos pelos perdedores, talvez todos esses relatos não fossem contados como épicos, mas em tom apocalíptico.


O frei dominicano Bartolomé de Las Casas em sua obra Brevíssima relação da destruição das Índias, escrita em 1542, faz uma série de denúncias a respeito da exploração e dos abusos dos colonizadores:

[...] e tendo experiência que em nenhuma parte podiam escapar dos espanhóis, sofriam e morriam nas minas e nos outros trabalhos, quase como pasmados, insensíveis e pusilânimes, degenerados e deixando-se morrer, calando desesperados, não vendo pessoas no mundo a quem pudessem queixar-se nem que delas tivesse piedade”.

No México e no Peru, sacerdotes indígenas decretavam que seus deuses nativos estavam mortos e anunciavam o fim da civilização. O que os "descobertos" pensavam sobre a tal Idade dos Descobrimentos pode ser resumido em um verso, escrito por um poeta indígena do México na aurora do Novo Mundo:

"Oh meus filhos, em que tempos detestáveis vocês foram nascer!"

Fontes: Passeiweb; Wikipedia; Para entender história...
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Da linha chinesa

Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo de leite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo.

Eu tenho, se assim posso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora certa. Nunca houve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhas analgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa, excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta de sua dor e, quase diria, saudades de sua acidez.

Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional, começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e constato a sua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.

Levanto-me e vou para o Cabaré dos Bandidos, a dois passos do trabalho. Quando chego na esquina, paro em cima do meio-fio. Fechara o sinal para os pedestres. Ao meu lado estava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensas costeletas, blusão de couro. De propósito, e não sei por que, esperou que o sinal abrisse para os carros. Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou esperando.

E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, desceu do meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estaria testando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirante velocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, sempre de perfil, sem pressa, uma morosidade insolente. A princípio, imaginei: — "Vai morrer".

Se fosse um velho, ou uma senhora, ou alguém de mais de 35 anos, seria fatalmente arrastado, esmagado.

Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — não aconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamente intacto.

Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens, buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarra lancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um desses milagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótese nenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua travessia encantada. A velocidade o poupou como a um santo.

Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovem levaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tempo, por três automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguém talvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficaria lambendo o silêncio.

Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, o jovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério.

Hoje, não. Há, por toda a parte, a "jovem revolução". É um movimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confirmam, é o Carlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se levantam?

Segundo se diz, porque estão insatisfeitos com os valores até então vigentes. Só que tais valores, ninguém os realizou e todos os traíram. E os jovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carros e incendiaram a Bolsa.

Na China, a guarda vermelha caça os inimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao são exterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas.

Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a "jovem revolução" é mundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamente positivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimensões mundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos, também minoritários, afirmam o seguinte: — a "jovem revolução" nada tem de jovem. São precisamente os velhos que a promovem.

E, com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem, já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmente, a sua arteriosclerose.

Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os "mais velhos" resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a própria onipotência?

Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que, insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e só então atravessou a rua. Não foi atropelado porque os veículos também bajulam a "jovem revolução".

Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de teatro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático.

Pára na minha mesa. Diz, gravíssimo: — "Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler". Era um recorte de jornal; explica:  — "É uma entrevista da Cacilda Becker". Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: — "Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem".

Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira divergência.

Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente.

Expliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturidade.

De vez em quando, isto é, de quatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos, fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezessete anos.

Viro-me para o rapaz: — "Queres que eu te admire? E te faça manchetes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud".

Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estava interessado em poesia.

Fiz um alegre escândalo: — "Não é possível! Um estudante de teatro tem que estar interessado em poesia!".

Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estava interessado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo de irritação. Disse-lhe: — "Escuta cá. Se não te interessas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?".

Disse, ofegante da vaidade: — "Sou da linha chinesa".

Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista da minha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapaz algumas observações de minha experiência teatral.

Eis a minha tese: — uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Por exigência contratual, não poderia deixar o palco, nunca. Justifiquei meu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outra grande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferia uma Cacilda dramática, lírica, romântica, e não impressa.

A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder. Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece que eu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — "O mundo é dos jovens". A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada.

O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.

Não era bem assim que eu queria dizer. Faltam-me palavras.

[20/6/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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