quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A messalina gaga

Tenho um amigo curiosíssimo. Dá-se comigo há mais de trinta anos. Mas não há, digamos assim, continuidade em nossos encontros. De vez em quando, desaparece; e, de vez em quando, volta (é cíclico como a minha úlcera).

Quando some, sua ausência tem a densidade da morte. E, quando reaparece, está sempre comigo, grudado a mim como um gêmeo. Mas eu disse "amigo curiosíssimo". Pelo seguinte: — nunca sei se ele se chama Meireles ou Marcondes. Pode ser Marcondes e pode ser Meireles.

Tal singularidade empresta à nossa relação um tom meio alucinatório. Eis o que eu queria dizer: — não o via há mais de seis meses. E, ontem, de repente, dou com o Meireles na esquina, em cima do meio-fio, esperando que o sinal abrisse para os pedestres.

Quando nos vimos, foi uma festa recíproca eescandalosa. O Meireles caiu nos meus braços e eu nos dele. Dizia ele, de olho rútilo: — "Há quanto tempo!". Em seguida, gabou-me a aparência. Disse e repetiu: — "Você está ótimo, ótimo". E eu: — "Você também".

Afirmei que a sua aparência era um poema. Depois dos mútuos rapapés, o Marcondes (ou será Meireles?) limpa um pigarro e começa: — "Preciso de um favor teu". Digo-lhe: — "Dois". Põe a mão no meu ombro: — "É o seguinte: — faz outra entrevista imaginária com o d. Hélder, faz".

Era esse o favor. No meu espanto, exclamo: — "Outra vez?".

Tentei explicar-lhe que um colunista diário vive da variedade de assuntos e de figuras. O leitor não gosta de fixações. E repeti: — "O segredo é a variedade". O Marcondes não se conforma. Retruca com um argumento engenhoso: — "D. Hélder é a própria variedade, é a antimonotonia".

Terminou com um novo apelo: — "Te peço, encarecidamente, uma nova entrevista imaginária com o d. Hélder".

Digo, por fim: — "Está bem. Farei". O Marcondes se despediu num arroubo: — "És uma mãe!".

Isso foi ontem. Hoje, estou na máquina, escrevendo mais uma imaginária. Como se sabe, nada mais falso do que a entrevista verdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o que sabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da primeira à última linha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade. Tais entrevistas imaginárias só ocorrem à meia-noite em ponto.

Eis a paisagem obrigatória: — um terreno baldio que tenha, no alto, uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes. Além de mim e d. Hélder, a única presença consentida é a de uma cabra vadia. O arcebispo foi pontualíssimo. Chega exatamente quando o sino da matriz dava as doze badaladas. Alhures, uma coruja pia. D. Hélder pergunta: — "E o pessoal? Não vem ninguém?".

Explico-lhe que o charme das entrevistas imaginárias é o pudor, o sigilo, o mistério. É preciso que ninguém as veja e ninguém as ouça, a não ser a cabra. D. Hélder vira-se: — "Em que jornal trabalha a cabra?". Respondo-lhe que a cabra tem vários defeitos, menos o de ser jornalista.

Esclareço ainda: — "A única função da cabra é paisagística". A frustração do sacerdote foi total. Fechou a questão: — "Só falo para jornal, rádio, televisão". Pergunto: — "É sua última palavra?". Era.

E, já que não havia outro remédio, tratei de convocar uma imprensa também imaginária para o local.

Instantaneamente, apareceram lá o caminhão da Globo e os locutores-volantes, o Washington Rodrigues, o Pallut, o Paradelas, fotógrafos, correspondentes estrangeiros, a BBC de Londres etc. etc. Essa platéia espectral foi um afrodisíaco para o bom padre. O Justino Martins surgiu e prometeu uma capa de Manchete. O Cláudio Mello e Souza daria uma capa de Fatos & Fotos. Mas d. Hélder parecia ainda insatisfeito: — "E a Life não mandou ninguém?".

Tive que providenciar um enviado imaginário da Life.

Todos presentes, comecei: — "D. Hélder, a diretora de um colégio religioso de São Paulo disse o seguinte: — que ser prostituta é uma profissão como outra qualquer. O senhor concorda?". D. Hélder não respondeu logo. Semicerrou os olhos, juntou as mãos, como se rezasse. Os faunos e as ninfas, que costumam infestar os terrenos baldios, vieram espiar. Suspense aterrador.

E, súbito, o arcebispo pula: — "Não! Não!".

Flashes assustam os grilos e os sapos do terreno baldio. Todos sentiram que d. Hélder ia fulminar a iniqüidade. De braços abertos, vai falando: — "Nunca, jamais! Ser prostituta não é uma profissão como outra qualquer. Absolutamente. É uma profissão que exige prendas raras. Raras".

Instalou-se, ali, no mato, o caos profundo. A imprensa imaginária já não sabia se d. Hélder estava contra ou a favor. Os taquígrafos não perdem um suspiro do orador. Mais didático, d. Hélder está falando: — "Qualquer uma pode ser datilógrafa, não é exato? Mas uma messalina tem que possuir dons outros, atrativos especiais. Uma gaga não pode ser messalina. Uma bruxa de disco infantil não pode fazer a prostituição. Tanto a gaga como o bucho morreriam de fome. Portanto, é injusto falar em 'uma profissão como outra qualquer'. Ou estou enganado?".

O orador é aplaudido como um tenor no dó de peito.

O representante imaginário da Life faz a sua pergunta: — "É verdade que o senhor brigou com os 2 mil anos da Igreja?". D. Hélder não ouviu direito. O outro repete: — "É verdade que o senhor brigou com o passado da Igreja?".

A resposta foi de uma rara felicidade: — "Meu amigo, quem tem passado é a adúltera recuperada".

Neste momento, uma admiradora de J. G. de Araújo Jorge aparece com um livro: — "O senhor quer escrever isso no meu álbum?".

D. Hélder arranca da batina uma caneta e põe lá: — "Quem tem passado é a adúltera recuperada". Na sua vaidade autoral, o arcebispo pergunta: — "Gostou?". E a moça: — "Lindinho!".

Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis a pergunta: — "O que é que o senhor acha do amor?".

D. Hélder fez um risonho escândalo. Diz: — "Oh, oh!". E responde com outra pergunta: — "Que idade você tem?".

Resposta: — "Dezenove".

D. Hélder ralhou, alegremente: — "E como é que você, aos dezenove anos, fala em amor? O que é amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é a doença do sexo". Estaca ao som da própria frase. Diz: — "Acho que fui feliz". E repete: — "O amor é a doença do sexo". Estimulado pela frase, foi adiante: — "O amor tem que ser exterminado. Nunca a morbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, de uma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas e dos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece um Werther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-lata matou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia. Precisamos matar o amor!".

Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária.

O Justino Martins tornou-se diáfano, o Cláudio Mello e Souza, incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapatos, tudo se volatilizou.

E, por muito tempo, o terreno baldio ficou ressoante da sábia frase: — "O amor é a doença do sexo".

[15/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O homem, o bonde e a mulher

Cada um dá o golpe que quer. Uns ainda se escudam no manjadíssimo serão no escritório; outros preferem telefonar dizendo que chegou um amigo do interior; há os que só arranjam uma desculpa na hora de chegar.

Desta ou daquela maneira, maridos retardatários têm seus respectivos estilos, de acordo com as respectivas esposas.

As esposas, por sua vez, acreditam ou não; fingem acreditar ou não, e — por conta própria — têm suas maneiras de verificar se o que o marido contou ao chegar era verdade. Nunca é, mas... não custa nada admitir a hipótese, pois hipótese existe é para ser admitida.

Stanislaw tem um amigo que mora numa praça, cuja tem muitas árvores onde dormem muitos pardais. Para chegar em casa tem que passar pela praça e, quando chega depois que os passarinhos acordaram, a mulher controla a hora em que ele entrou pelo sujo que os passarinhos fizeram na roupa dele. Por isso o nosso amigo tem horror a passarinho.

Não sabemos se vocês leram a notícia de um bonde que perdeu a direção e entrou numa casa, na madrugada de 22 passada.

Nessa mesma noite, cavalheiro de nossas relações — cujo nome é impossível escrever aqui, pois não somos cronista mundano que nasceu para incrementar o desquite — saiu pela aí, desgarrado de casa, local para onde telefonou por volta de 7 da noitinha, avisando que ia à convenção do PSD (ele na hora esqueceu que votara no Jânio).

Calçado o regresso, pelo menos no seu entender, tomou umas e outras e telefonou mais uma vez, agora para uma desajustada em disponibilidade amorosa, que, quando se encontra em estado de "jogada fora", sai com ele.

Meteram um boteco legal, espalharam muita brasa e, quando os leiteiros já tinham recolhido as carrocinhas, ele chegou em casa. Eram 4 e lá vai perdigoto.

Tirou a roupa e deitou, como bom pessedista, fingindo que vinha da convenção, embora o bafo.

A mulher, no dia seguinte, não lhe dirigiu a palavra e ele, para confraternizar, puxou conversa de todo jeito, acabando por pegar o jornal e começar a ler. Ao passar os olhos na coluna de polícia, deu com o cabeçalho:

"De madrugada — bonde entra em casa."

Virou-se para a mulher, para tentar mais uma vez a pacificação, e disse:

— Ouve só, querida, que notícia curiosa. — E leu: — "De madrugada — bonde entra em casa."

A mulher olhou-o com desprezo e comentou apenas:

— Aposto como entrou mais cedo do que você

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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Educação sexual

O meu secretário chama-se "Pão Doce" (tal apelido, não sei por que, me parece do mais puro Dostoievski. Quero crer que "Pão Doce" é um ser tão prodigioso como Marmeladov, o pai de Sônia).

Mas, como ia dizendo: — chego à redação e o "Pão Doce" vem, correndo, avisar: — "Tem um cara te procurando". E repetia, de olho rútilo: — "Um cara!". Estava excitado como se fosse a polícia.

Tiro o paletó e o ponho na cadeira. O "Pão Doce" indaga: — "Mando entrar?".

Puxo um cigarro: — "Manda".

Com pouco mais, volta o "Pão Doce" acompanhado. Era um senhor, grisalho, bem posto, um ar de major Anthony Eden, quando este era major e tinha 37 anos. Digo: — "Tenha a bondade". Sentou-se: — "Com licença". O "Pão Doce" retira-se.

E, então, começa uma conversa que me deu, do princípio ao fim, uma sensação de um vil pesadelo. Só agora me lembro que o desconhecido não me disse o nome. Vejam vocês: — conversamos duas horas e não sei como se chama (e, como permanece anônimo, o nosso diálogo parece cada vez mais irreal).

Eis como se apresentou: — "Eu sou um pai".

Explicou em seguida: — "Vim de São Paulo, especialmente". (Estou fazendo o suspense que ele fez comigo). Pausa. Diga-se de passagem que o "diálogo" foi um monólogo. Só ele falava, e só eu ouvia.

Durante cerca de duas horas desfiou a sua história ou, melhor dizendo, a história de sua filha. É uma menina de oito anos, linda, linda, de olhos azuis. Digo "olhos azuis" e já não sei se ele falou de "olhos azuis". Matriculou a menina num colégio religioso, o melhor, mais caro de São Paulo. "Sou católico", informa; e ajuntou: — "Praticante". Quase o interrompi para dizer-lhe que, no Brasil de hoje, o verdadeiro católico é um ser em solidão total. O pai baixa a voz: — "Mas não sou católico pra frente".

No colégio referido, só existem meninas de luxo, de famílias também de luxo. O pai estava muito feliz, vendo a garota à sombra das freiras em flor. Aconselhava aos amigos: — "Põe lá a tua filha! Colégio padrão, colégio ideal". Até que, um dia, é convocado para uma reunião de pais e freiras.

Disse no telefone: — "Pois não, pois não! Irei, com muito prazer". E, na hora marcada, estava lá, com a elegância de um major Anthony Eden mais moço. Inclina-se diante de uma freirinha: — "Por obséquio, onde é a reunião dos pais?".

A outra sorria: — "Por aqui". Ele a seguiu.

E houve a reunião. O pai chegou, cumprimentou a madre, sorriu para os outros pais e sentou-se. A madre estava falando com uma mãe grã-fina. Dava explicações: — "A educação sexual, aqui, começa aos quatro anos de idade".

O pai imagina: — "Devo ter ouvido mal". Fez a pergunta: — "A senhora disse 'quatro anos'?". Resposta: — "Quatro anos".

Um outro pai indaga: — "E as crianças entendem?".

Todos, ali, eram pessoas esclarecidas, atualizadas, em dia com as novas verdades. Mas houve, ainda assim, uma dúvida geral.

Os presentes se entreolhavam. Havia, sim, uma perplexidade no ar. E o pai, sem nada dizer, imaginava um jardim de infância, onde, aos quatro anos, as garotinhas teriam suas idéias, seus pontos de vista, sobre Freud.

A diretora explica, deleitada: — "As meninas aprendem vendo figurinhas".

O coração do pai começou a bater mais forte.

Continuava a explicação: — "As meninas vêem as gravuras e aprendem tudo". O major Anthony Eden já não sabia o que pensar, nem o que dizer. Teve vontade de perguntar se não seriam aquelas as tais "gravuras obscenas" que a polícia não deixa vender. Mas nada disse.

E por que garotinhas de quatro anos teriam de ver as "gravuras obscenas" que a madre não achava obscenas? Veio o exlarecimento: — "É preciso acabar com o tabu do sexo!".

Disse isso e sentia-se a sua gloriosa satisfação. Afirmava, olhando em torno exultante: — "Sexo não pode ter mistério. A criança precisa saber que o sexo é como...". A diretora parou, um momento, procurando a imagem exata. Disse, afinal: — "Como beber um copo de água". O sujeito bebe água quando tem sede. Esse copo de água é o sexo. Uma grã-fina cochicha, deliciada: — "Muito interessante".

O pai já está sentindo uma dor do lado esquerdo, com reflexo pelo braço. E continua ouvindo. Então, a propósito não sei de que filme, alguém fala em "prostituição". A freira deu a resposta fulminante: — "Ser prostituta é uma profissão como outra qualquer".

Houve uma concordância quase unânime. Fora umas duas ou três perplexidades, aqueles pais e aquelas mães balançavam a cabeça: — "Realmente; realmente".

O pai balbuciou: — "Profissão como outra qualquer? A senhora tem certeza?". A outra é superiormente irônica: — "Não vamos discutir o óbvio".

E, então, o pai ergueu-se. Estava numa indignação homicida. Mas como um bem-educado, preservava a polidez até no ódio.

Despediu-se de todos, desculpou-se: — "Preciso ir. Estão-me esperando". Saiu, desatinado.

E, agora, diante de mim, dizia: — "Um colégio de religiosas. Entende? De religiosas. E ensina que a prostituta é uma profissional como um ourives, ou um protético, ou um bombeiro hidráulico, ou um estofador. A caftina também não tem nenhum problema. É outra profissional do sexo. Deve descontar para o Instituto".

O outro horror do pobre homem eram as "gravuras obscenas".

Dizia-me: — "O senhor me entende? Um jardim-de-infância de meninas de quatro anos é quase um berçário. O senhor já imaginou freiras mostrando, num berçário, fotografias ignóbeis? Se um jornaleiro vendesse, para velhos bandalhos, faunos senis, tais gravuras, seria preso, apanharia na polícia, seria processado, o diabo. E por que um colégio de luxo, e religioso, pode fazer o que é proibido a um pobre jornaleiro?".

Eu queria falar e não tinha o que dizer. Bati-lhe nas costas: — "É a Igreja pra frente". E repeti: — "É a Igreja pra frente".

O outro concordou, numa amargura hedionda.

Sentiu-se um católico de uma outra Igreja, talvez de um outro Cristo. Estendeu-me a mão, envergonhado do próprio horror.

Suspira: — "Pelo menos, desabafei". E partiu, sem deixar o nome.

É tão anônimo como alguém que jamais tivesse existido.

[14/6/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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