O meu secretário chama-se "Pão Doce" (tal apelido, não sei por que, me parece do mais puro Dostoievski. Quero crer que "Pão Doce" é um ser tão prodigioso como Marmeladov, o pai de Sônia).
Mas, como ia dizendo: — chego à redação e o "Pão Doce" vem, correndo, avisar: — "Tem um cara te procurando". E repetia, de olho rútilo: — "Um cara!". Estava excitado como se fosse a polícia.
Tiro o paletó e o ponho na cadeira. O "Pão Doce" indaga: — "Mando entrar?".
Puxo um cigarro: — "Manda".
Com pouco mais, volta o "Pão Doce" acompanhado. Era um senhor, grisalho, bem posto, um ar de major Anthony Eden, quando este era major e tinha 37 anos. Digo: — "Tenha a bondade". Sentou-se: — "Com licença". O "Pão Doce" retira-se.
E, então, começa uma conversa que me deu, do princípio ao fim, uma sensação de um vil pesadelo. Só agora me lembro que o desconhecido não me disse o nome. Vejam vocês: — conversamos duas horas e não sei como se chama (e, como permanece anônimo, o nosso diálogo parece cada vez mais irreal).
Eis como se apresentou: — "Eu sou um pai".
Explicou em seguida: — "Vim de São Paulo, especialmente". (Estou fazendo o suspense que ele fez comigo). Pausa. Diga-se de passagem que o "diálogo" foi um monólogo. Só ele falava, e só eu ouvia.
Durante cerca de duas horas desfiou a sua história ou, melhor dizendo, a história de sua filha. É uma menina de oito anos, linda, linda, de olhos azuis. Digo "olhos azuis" e já não sei se ele falou de "olhos azuis". Matriculou a menina num colégio religioso, o melhor, mais caro de São Paulo. "Sou católico", informa; e ajuntou: — "Praticante". Quase o interrompi para dizer-lhe que, no Brasil de hoje, o verdadeiro católico é um ser em solidão total. O pai baixa a voz: — "Mas não sou católico pra frente".
No colégio referido, só existem meninas de luxo, de famílias também de luxo. O pai estava muito feliz, vendo a garota à sombra das freiras em flor. Aconselhava aos amigos: — "Põe lá a tua filha! Colégio padrão, colégio ideal". Até que, um dia, é convocado para uma reunião de pais e freiras.
Disse no telefone: — "Pois não, pois não! Irei, com muito prazer". E, na hora marcada, estava lá, com a elegância de um major Anthony Eden mais moço. Inclina-se diante de uma freirinha: — "Por obséquio, onde é a reunião dos pais?".
A outra sorria: — "Por aqui". Ele a seguiu.
E houve a reunião. O pai chegou, cumprimentou a madre, sorriu para os outros pais e sentou-se. A madre estava falando com uma mãe grã-fina. Dava explicações: — "A educação sexual, aqui, começa aos quatro anos de idade".
O pai imagina: — "Devo ter ouvido mal". Fez a pergunta: — "A senhora disse 'quatro anos'?". Resposta: — "Quatro anos".
Um outro pai indaga: — "E as crianças entendem?".
Todos, ali, eram pessoas esclarecidas, atualizadas, em dia com as novas verdades. Mas houve, ainda assim, uma dúvida geral.
Os presentes se entreolhavam. Havia, sim, uma perplexidade no ar. E o pai, sem nada dizer, imaginava um jardim de infância, onde, aos quatro anos, as garotinhas teriam suas idéias, seus pontos de vista, sobre Freud.
A diretora explica, deleitada: — "As meninas aprendem vendo figurinhas".
O coração do pai começou a bater mais forte.
Continuava a explicação: — "As meninas vêem as gravuras e aprendem tudo". O major Anthony Eden já não sabia o que pensar, nem o que dizer. Teve vontade de perguntar se não seriam aquelas as tais "gravuras obscenas" que a polícia não deixa vender. Mas nada disse.
E por que garotinhas de quatro anos teriam de ver as "gravuras obscenas" que a madre não achava obscenas? Veio o exlarecimento: — "É preciso acabar com o tabu do sexo!".
Disse isso e sentia-se a sua gloriosa satisfação. Afirmava, olhando em torno exultante: — "Sexo não pode ter mistério. A criança precisa saber que o sexo é como...". A diretora parou, um momento, procurando a imagem exata. Disse, afinal: — "Como beber um copo de água". O sujeito bebe água quando tem sede. Esse copo de água é o sexo. Uma grã-fina cochicha, deliciada: — "Muito interessante".
O pai já está sentindo uma dor do lado esquerdo, com reflexo pelo braço. E continua ouvindo. Então, a propósito não sei de que filme, alguém fala em "prostituição". A freira deu a resposta fulminante: — "Ser prostituta é uma profissão como outra qualquer".
Houve uma concordância quase unânime. Fora umas duas ou três perplexidades, aqueles pais e aquelas mães balançavam a cabeça: — "Realmente; realmente".
O pai balbuciou: — "Profissão como outra qualquer? A senhora tem certeza?". A outra é superiormente irônica: — "Não vamos discutir o óbvio".
E, então, o pai ergueu-se. Estava numa indignação homicida. Mas como um bem-educado, preservava a polidez até no ódio.
Despediu-se de todos, desculpou-se: — "Preciso ir. Estão-me esperando". Saiu, desatinado.
E, agora, diante de mim, dizia: — "Um colégio de religiosas. Entende? De religiosas. E ensina que a prostituta é uma profissional como um ourives, ou um protético, ou um bombeiro hidráulico, ou um estofador. A caftina também não tem nenhum problema. É outra profissional do sexo. Deve descontar para o Instituto".
O outro horror do pobre homem eram as "gravuras obscenas".
Dizia-me: — "O senhor me entende? Um jardim-de-infância de meninas de quatro anos é quase um berçário. O senhor já imaginou freiras mostrando, num berçário, fotografias ignóbeis? Se um jornaleiro vendesse, para velhos bandalhos, faunos senis, tais gravuras, seria preso, apanharia na polícia, seria processado, o diabo. E por que um colégio de luxo, e religioso, pode fazer o que é proibido a um pobre jornaleiro?".
Eu queria falar e não tinha o que dizer. Bati-lhe nas costas: — "É a Igreja pra frente". E repeti: — "É a Igreja pra frente".
O outro concordou, numa amargura hedionda.
Sentiu-se um católico de uma outra Igreja, talvez de um outro Cristo. Estendeu-me a mão, envergonhado do próprio horror.
Suspira: — "Pelo menos, desabafei". E partiu, sem deixar o nome.
É tão anônimo como alguém que jamais tivesse existido.
[14/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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