terça-feira, 11 de outubro de 2011

Razões de ordem técnica

A moça viajou no ônibus em que viajava este que ora batuca, intimorato e altivo, as teclas macias de sua Remington semi-portátil, todas recentemente azeitadas para novas campanhas.

Não somos de viajar nesses incômodos coletivos. Stanislaw é uma vítima contumaz de táxi e não teria se rebaixado a freguês da Copanorte se não estivesse de caixa baixa. Estávamos mais por baixo do que calcinha de nylon.

Mas — dizíamos — a moça entrou e era o que se poderia desejar em matéria de mulher de qualidade superior. Tanto era, que houve como que um minuto de silêncio respeitoso, no coletivo. Aliás, minuto de silêncio respeitoso, não. Seria mais justo dizer minuto de silêncio para que todos os coleguinhas de viagem pensassem em besteira.

Depois — pouco a pouco — todos nos acostumaríamos à sua presença. Naquele momento, ela ainda fazia mais sucesso que Vicente Celestino em Barra do Piraí. Todos queriam lhe ceder o lugar. Um velhote, mais ou menos sem dignidade, levantou-se do banco e quis ser cavalheiro. Ela recusou com a altivez das que têm noivo.

O velhote desistiu e sentou. Havia um bonitão no ônibus. Como, minha senhora? Se o bonitão éramos nós? Não, senhora, era outro. A senhora desculpe. Havia dois bonitões; nós e o outro. Foi o outro que se levantou e disse, com voz de locutor da Rádio Nacional (programação matinal):

— Queira sentar, senhorinha.

O senhorinha soou falso como borderô de companhia de revistas musicais. Mas todos esperamos o êxito do bacano. Não foi bem sucedido, porém. Ela sorriu agradecida e respondeu:

— Não se incomode.

Era difícil a gente não se incomodar com aquele monumento ali na nossa frente, balançando no corredor do ônibus. Depois, foi saindo gente e os que estavam em pé iam sentando. Mas, antes, ofereciam a vez à bonitona. Ela sorria, agradecia e continuava em pé.

Chegou o momento, porém, em que o número de lugares era maior que o número de passageiros. Mesmo assim, ela ficou firme, viajando de pé.

Foi aí que, com aquela timidez que é o nosso maior sucesso com mulher, pigarreamos legal e perguntamos à distinta:

— Você não quer sentar? E ela respondeu:

— Não. E nós:

— Por quê?

E ela:

— Furúnculo.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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O homem da pasta preta

Sobraçando uma enorme pasta preta o homem chegou-se para perto da nossa mesa e esperou que levantássemos a cabeça. Fingimos não dar pela sua presença, mas a situação foi ficando meio velhaca e fomos obrigados a perguntar se desejava alguma coisa. Ora se.

Bastou dar a deixa para ele explicar que era um emissário do saber, da cultura, da ilustração. Representante dos mais famosos editores, o homem de indisfarçável sotaque espanhol pôs-se a oferecer livros e mais livros, tudo a preços de ocasião, com descontos formidáveis, com facilidades de pagamento.

— O senhor precisa aproveitar el momento que es oportuno. Las livrarias fazem um desconto especial ahora.

Para ganhar tempo, perguntamos por que as livrarias estão fazendo desconto especial agora. Ele, muito naturalmente, explicou:

— Junho!

Não sabemos porque Balzac é mais barato em junho e jamais saberemos, pois o homem não é de dar tempo para pensar. Ali estava, sobre a mesa, toda a Comédia Humana, mais barata à vista, com um pequeno acréscimo para as tais suaves prestações mensais.

Ficou absolutamente bestificado quando soube que Balzac não interessava. E o Anatole France de bolso, também não? Mas isso era desconcertante! Um cavalheiro com a nossa cultura, com a nossa posição social... E perguntou:

— O amigo, naturalmente, tiene su posición dentro do café-society?

— Jogamos na defesa.

Ele achou a resposta de um fino humor. Grande espírito. E aproveitou para sapecar Eça de Queiroz inteiramente revisto pelo filho do próprio. Inclusive — garantiu — com notas muito oportunas. Explicamos que já tínhamos o Eça lá em casa. O Eça, o Ramalho, o Camilo, o Fialho, o Antero. Em matéria de literatura portuguesa, lá em casa vamos bem.

Subiu a Península Ibérica e abriu um folheto que demonstrava e provava que nunca, em nenhum país do mundo, se fez — numa só edição — um apanhado tão completo da obra de Cervantes. Já impacientes, declaramos:

— Cervantes dá azia!

Não sabemos se azia em espanhol é diferente. O fato é que não entendeu. Fechou o folheto e abriu outro. Este elucidava os interessados numa coleção enciclopédica. Eram vinte volumes que condensavam curiosidades matemáticas, as chamadas maravilhas da natureza e outros alicerces do saber. O homem que lesse com atenção a obra toda poderia fazer um figurão, respondendo perguntas nos programas de televisão.

Um a um, fomos recusando poetas e prosadores, biógrafos e historiadores, gramáticos, metafísicos, astrônomos e astrólogos. Da fina-flor da literatura, passou a meros catálogos. O senhor tem disco? É amante da pesca?

— Quem nos dera ter amante!

Nem sequer sorriu. Gosta de fotografias? Quer aprender a desenhar? Deseja ser mecânico de rádio em 20 lições? A arte da decoração.

O nosso corpo. O mar que nos cerca. A vida no subsolo. No mundo das bactérias. A culinária de todo o mundo.

Nesta última oferta apelamos para o ofendido. Imediatamente pediu desculpas. Realmente, um homem do nosso trato não iria cozinhar nunca. Por fim, esgotado o estoque, sentindo que não venderia coisa nenhuma, apelou pra ignorância. Olhou para os lados certificou-se de que estávamos a sós e segredou:

— Tengo aqui umas coisas mui lindas. Para leitura íntima.

E mostrou um livro com uma mulher nua na capa. Nem assim...

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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Um homem e seu complexo

Era um homem. Era um desses homens que não resistem à pergunta: "Você é um homem ou um rato?"

Dizemos que era dos que não resistem porque, sem dúvida, quando inquirido, não saberia o que responder. E isto é mais doloroso porque sua dúvida não era a de que não pudesse ser um homem, e sim a de que talvez não chegasse a ser um rato.

Sim, companheiros, o homem era um poço de complexos, figurinha capaz de dar dor de cabeça em aspirina, tipo que se considerava tão inferior que tinha vergonha de assinar o próprio nome.

E para isto também tinha uma explicação viável: chamava-se Eugênio e era incapaz — na sua infinita modéstia — de considerar o próprio "Eu", quanto mais ser simplesmente um "Gênio".

Vai daí, Eugênio ficou sendo Z. Não era Ze, com "Z" e "E", mais um acento (ou assento? Botamos os dois, Osvaldo, para que você escolha o certo). Eugênio assinava só a letra "Z" na certeza de que esta é que lhe servia, por ser a última do alfabeto.

Tantos eram os complexos de "Z" que, lá um dia, alguém lhe deu dinheiro para consultar um psicanalista. Morem no detalhe de alguém lhe dar dinheiro. Tudo porque "Z" não andava com cruzeiros no bolso, convencido de que, se assim o fizesse, desvalorizaria ainda mais a nossa moeda.

Mas — como ficou dito — pagaram a consulta e "Z" foi ao psicanalista. O médico mandou que ele deitasse naquele divã regulamentar e o paciente deu a primeira prova de seu estado de espírito ao responder que se consultaria de pé, pois não se sentia com direito de ficar deitado, enquanto o outro trabalhava.

O psicanalista achou aquilo muito estranho, percebeu que estava diante de um caso de complexo de inferioridade incurável e deu umas pílulas. Mas deu sem nenhuma esperança porque "Z" era tão sincero em seus complexos que chegou a confessar que só se sentia bem numa lata de lixo, ocasião em que pagou a consulta e se atirou pela lixeira do edifício, com um sorriso de superioridade.

Mas mesmo o lixo tem seu valor, embora a Limpeza Pública não saiba. "Z" foi piorando de tal forma que acabou achando que nem como lixo prestava. E — um dia — deu-se o trágico e amargo fim: seu complexo chegou ao máximo.

Ia sair de casa e, para colocar a gravata, foi até o espelho.

Qual não foi a sua surpresa? Chegou diante do espelho... olhou... e não viu mais ninguém.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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