Sobraçando uma enorme pasta preta o homem chegou-se para perto da nossa mesa e esperou que levantássemos a cabeça. Fingimos não dar pela sua presença, mas a situação foi ficando meio velhaca e fomos obrigados a perguntar se desejava alguma coisa. Ora se.
Bastou dar a deixa para ele explicar que era um emissário do saber, da cultura, da ilustração. Representante dos mais famosos editores, o homem de indisfarçável sotaque espanhol pôs-se a oferecer livros e mais livros, tudo a preços de ocasião, com descontos formidáveis, com facilidades de pagamento.
— O senhor precisa aproveitar el momento que es oportuno. Las livrarias fazem um desconto especial ahora.
Para ganhar tempo, perguntamos por que as livrarias estão fazendo desconto especial agora. Ele, muito naturalmente, explicou:
— Junho!
Não sabemos porque Balzac é mais barato em junho e jamais saberemos, pois o homem não é de dar tempo para pensar. Ali estava, sobre a mesa, toda a Comédia Humana, mais barata à vista, com um pequeno acréscimo para as tais suaves prestações mensais.
Ficou absolutamente bestificado quando soube que Balzac não interessava. E o Anatole France de bolso, também não? Mas isso era desconcertante! Um cavalheiro com a nossa cultura, com a nossa posição social... E perguntou:
— O amigo, naturalmente, tiene su posición dentro do café-society?
— Jogamos na defesa.
Ele achou a resposta de um fino humor. Grande espírito. E aproveitou para sapecar Eça de Queiroz inteiramente revisto pelo filho do próprio. Inclusive — garantiu — com notas muito oportunas. Explicamos que já tínhamos o Eça lá em casa. O Eça, o Ramalho, o Camilo, o Fialho, o Antero. Em matéria de literatura portuguesa, lá em casa vamos bem.
Subiu a Península Ibérica e abriu um folheto que demonstrava e provava que nunca, em nenhum país do mundo, se fez — numa só edição — um apanhado tão completo da obra de Cervantes. Já impacientes, declaramos:
— Cervantes dá azia!
Não sabemos se azia em espanhol é diferente. O fato é que não entendeu. Fechou o folheto e abriu outro. Este elucidava os interessados numa coleção enciclopédica. Eram vinte volumes que condensavam curiosidades matemáticas, as chamadas maravilhas da natureza e outros alicerces do saber. O homem que lesse com atenção a obra toda poderia fazer um figurão, respondendo perguntas nos programas de televisão.
Um a um, fomos recusando poetas e prosadores, biógrafos e historiadores, gramáticos, metafísicos, astrônomos e astrólogos. Da fina-flor da literatura, passou a meros catálogos. O senhor tem disco? É amante da pesca?
— Quem nos dera ter amante!
Nem sequer sorriu. Gosta de fotografias? Quer aprender a desenhar? Deseja ser mecânico de rádio em 20 lições? A arte da decoração.
O nosso corpo. O mar que nos cerca. A vida no subsolo. No mundo das bactérias. A culinária de todo o mundo.
Nesta última oferta apelamos para o ofendido. Imediatamente pediu desculpas. Realmente, um homem do nosso trato não iria cozinhar nunca. Por fim, esgotado o estoque, sentindo que não venderia coisa nenhuma, apelou pra ignorância. Olhou para os lados certificou-se de que estávamos a sós e segredou:
— Tengo aqui umas coisas mui lindas. Para leitura íntima.
E mostrou um livro com uma mulher nua na capa. Nem assim...
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte:
O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização
de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio -
1979 - Livraria José Olympio Editora
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