sábado, 8 de outubro de 2011

Alienação

Faço anos dia 23 de agosto e confesso: — tenho, como o José Lino Grünewald, a alma do aniversariante. Nos meus sete, oito anos, minha família nem sempre teve uma fatia de pão com um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Não importa. Mesmo sem uma mísera cocada, sem uma mísera mãe-benta, eu celebrava, sozinho, a feliz data.

E, hoje, quero crer que o aniversário apagado e triste é mais lindo. Também o José Lino Grünewald sabe fazer anos como ninguém, e repito: — é um aniversariante vocacional.

Muito bem. Fiz esta introdução para dizer o seguinte: — lembro-me, com implacável nitidez, de cada dia 23 de agosto de minha vida.

Dirão vocês que dou muita importância a meu próprio aniversário. Exato, exato. Dou, sim, uma importância capital. Todavia, há um 23 de agosto que me doeu com uma pungência mais aguda. E isso por dois motivos: — primeiro, porque eu fazia anos; e, segundo, porque era véspera de um suicídio histórico. Vocês já perceberam que falo de Getúlio.

Um suicida não se improvisa, assim como não se improvisa o artista, o poeta, o mágico, o mímico, o arquiteto. Portanto, teremos de antedatar a tragédia getuliana. Não sei se me entendem e tentarei explicar. O suicídio é anterior a si mesmo. Começa muito antes e direi mesmo: — começa no berço. Não sei se cabe falar em gesto nato.

Ao vir ao mundo, o homem traz um repertório de atos facultativos e de atos obrigatórios. Quando Getúlio nasceu, o tiro no peito estava inserido entre seus gestos obrigatórios.

Em 30, ao assumir o poder, já era o suicida. E, dia após dia, foi ainda e sempre o suicida. Até que, já aos setenta anos ou pouco mais, matou-se. Mas atirou no peito. Não estourou os miolos, como o faria um suicida banal. Quis preservar o rosto, o último rosto, para a história, para a lenda. O povo quer olhar a cara do líder morto.

Mas o que eu queria dizer é o seguinte: — Getúlio foi o último grande enterro do Brasil. Parou a cidade, parou o Brasil.

Lembro-me de uma crioula, de gloriosas ventas raciais, que desmaiou junto ao caixão. Foi levada, arrastada por dois ou três. Que crioula, gorda como a babá de ...E o vento levou, retinta como a babá de ...E o vento levou, que crioula, repito, desmaiaria por um morto contemporâneo?

Somos 80 milhões. Examinemos, um por um, os 80 milhões. Façamos um censo de possíveis defuntos. E chegaremos à conclusão de que ninguém, no momento, justificaria um grande enterro. Por isso, falo na solidão do Brasil. Não há a perspectiva do "grande enterro" porque não há "grande homem" para enterrar.

Parece enfático falar em "solidão do Brasil". Mas é a límpida e inapelável verdade. E como é árida a época que não consegue dar um defunto monumental!

De repente, entendemos o mistério brasileiro. Somos uma rala, uma tênue orla litorânea. O que existe, fora de nós, é uma imensa sibéria florestal. E nunca o deserto siberiano daria um radiante cadáver.

Aqui, passo às nossas esquerdas. Sou uma flor de obsessão e, nos meus últimos escritos, tenho insistido no papel e destino das esquerdas brasileiras. Elas não faziam nada, senão beber no Antonio's, dourar-se na praia e rabiscar nos suplementos dominicais. Até que uma data universal deu-lhes a oportunidade sonhada: — o 1º de maio. As esquerdas se prepararam para entoar o que se chama, em ópera, o dó de peito.

No mesmo dia 1º de maio, o Estádio Mário Filho apresentava um Flamengo x Vasco. O paralelo pode ser feito nos seguintes termos: — o jogo trouxe, em seu ventre, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E ao comício compareceram apenas os oradores. Minto. Em verdade, compareceram alguns familiares dos oradores. E o comício foi desses fatos íntimos, confidencialíssimos.

O pior vocês não sabem. O pior é que, em pleno e furioso ato cívico, dois ou três oradores ligaram o rádio de pilha e ficaram ouvindo o jogo. Travou-se, ali, um duelo inesperado entre as duas retóricas: — de um lado, a libertária; de outro lado, a futebolística.

Enquanto em São Cristóvão o orador fazia anti-imperialismo, no Mário Filho o locutor tratava de botinadas.

No dia seguinte, encontro-me com um esquerdista feroz. Numa cava depressão, gemeu: — "Como pode? Como pode?". Ele não entendia os quinze gatos pingados do comício e as 200 mil pessoas do jogo. E, por uma boa meia hora, rosnou de impotência e frustração. Por fim, despediu-se.

Mas estava de pé o problema, a saber: — por que o povo ignora as esquerdas? Pelo simples motivo de que as esquerdas também ignoram o povo. Não se conhece, na Terra, caso mais prodigioso de alienação.

Por outro lado, volto ao dado fúnebre, que me parece decisivo: — onde não há perspectiva de "grande enterro", também não é viável o "grande comício". E vêm as esquerdas e começam a falar do Vietnã, de Cuba, dos Estados Unidos.

Se o problema é racismo, falam do norte-americano. E não há uma palavra, ou um palavrão, em favor do negro brasileiro. Simplesmente, o nosso negro não existe. Poderão objetar que não há racismo em nosso país. Como não há, se nunca vimos um negro de casaca?

Mas a fatal alienação das esquerdas começa na própria língua. Já citei uma passeata recente.

Vários cartazes davam morras ao imperialismo. Mas a palavra escrita, a piche, era "Muerte". Não morte, e sim "Muerte". Os gaiatos odiavam em castelhano, queriam matar em castelhano. Punham sotaque até nos cartazes. Claro que ali se insinua a influência cubana.

Mas Cuba é uma Paquetá ou, se preferirem outra imagem, eu diria que é uma pulga e o Brasil um fabuloso elefante geográfico. A troco de que a pulga vai montar no elefante? Os gringos das nossas esquerdas representam o anti-Brasil, a negação do Brasil. As esquerdas não entendem o povo, nem o povo as entende.

[10/5/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Bravos, bravíssimos!

Eu me lembro do gráfico Arlindo, que foi, há trinta anos ou mais, chefe de oficina de O Globo. Jamais poderei esquecê-lo. Imaginem vocês que o velho Arlindo não bebia café na xícara, como qualquer um de nós. Não. Derramava o café no pires e bebia do próprio pires. E nada descreve a volúpia com que o fazia. Parecia um desses prazeres jamais concebidos.

Aquilo me impressionava muito. Eis o que me perguntava: — por que o pires e não a xícara?

Até que, na madrugada de ontem, resolvi fazer uma experiência. A úlcera começou a doer e fui apanhar leite na geladeira. E, como o velho e finado Arlindo, bebi um pires de leite. Por uma dessas ingenuidades fatais, eu estava esperando um efeito mágico.

Mas vejam vocês: — o pires não dá nenhum sabor encantado e repito: — o leite em pires, copo ou xícara é a mesma bebida hedionda.

E, então, meio frustrado, lá vou eu para a janela da madrugada. Súbito, começo a pensar no meu ex-inimigo Paulo Francis.

Já nos chamamos de "palhaços", de "analfabetos", de "burros". Lembro-me da estréia de minha peça Perdoa-me por me traíres.

Era, ali, no Municipal. Ao baixar o pano sobre o terceiro ato, a platéia explodiu. Metade vaiando, metade aplaudindo. O então vereador Wilson Leite Passos puxou um revólver e queria fuzilar o texto. (O patético, ou sublime, como queiram, é que eu representei. Foi, da minha parte, um gesto suicida. Eu sabia que era o pior ator do mundo, o pior. Mas como se tratava de uma peça desesperada, quis ser solidário com a obra, o produtor, o diretor e os artistas. E representei. O prodigioso é que a platéia falava mais do que o elenco. Na primeira fila estava uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Passou os três atos me chamando de "tarado". E outras senhoras, e outros cavalheiros, me xingavam, o tempo todo, em cena aberta).

E, no final, tive a vaia e tive a apoteose. Do palco, vi grã-finas subindo nas cadeiras, aos uivos, contra e a favor. E estava lá o Paulo Francis, com o Edmundo Moniz. Berrava para mim: — "Burro! Burro!". Contam-me que o Edmundo Moniz protestava: — "Não faça isso! Não faça isso!".

Nada me ofendeu, e digo mais: — achei a vaia estimulante. Nem me impressionou o vereador, de revólver, querendo dar tiros como um Tom Mix. Mas sofri quando o crítico me chamou de "burro".

Um mês depois, caí doente. Circulou que fora um derrame e que eu estava paralítico de um lado, sei lá. E, então, o Paulo Francis não pensou duas vezes: — foi para a redação e escreveu uma página crispada de ternura. Foi aí que, subitamente, descobri tudo. Era um pobre ser, de intensa, desesperada fragilidade. O meu caso clínico não foi trombose, nem eu estava hemiplégico. Seja como for, tive a visão de sua dilacerada, envergonhadíssima bondade. Era um falso cínico.

Mas ainda assim, passamos anos sem um cumprimento, sem um "olá", sem um aperto de mão. Até que, no aniversário do José Lino Grünewald, o anfitrião ofereceu-nos uma noite de ópera. Houve um desfile dos divos de velhas gerações. Foi uma rajada de carusos, de muros, lauri volpi, totti dal monte, schipa, tita rufo.

E, súbito, o Paulo Francis começa a falar comigo. O teatro dramático nos separou e o teatro lírico nos uniu. Eu, o Paulo Francis e o José Lino Grünewald somos loucos por ópera.

Foi esta a última vez que o vi. Depois do aniversário, ele desapareceu. E, pouco a pouco, a sua ausência foi adquirindo uma densidade, uma tensão insuportável. Houve um momento em que me ocorreu a seguinte e fascinante hipótese: — "O Paulo Francis entrou para um convento".

Imaginem: — o Paulo Francis franciscano, beneditino ou jesuíta. Ontem, porém, almoço com o José Lino Grünewald. E o meu amigo solta a notícia: — "O Paulo Francis chegou". Estava viajando.

Não era absurda a idéia do convento. Viajar é também uma forma de solidão. Pergunto ao José Lino: — "E que tal?".

O Paulo Francis andara pela Europa e dera um pulo aos Estados Unidos. Não sei de tudo que ele viu e ouviu. Só sei de duas coisas que o assombraram: — primeiro, a liberdade americana. Nos Estados Unidos, tudo se diz e tudo se faz. A liberdade estourou todos os limites. Outra coisa que o impressionou: a Alemanha Oriental. Na Alemanha Oriental, não entram nem Sartre, nem Le Monde. Segundo as autoridades comunistas, o povo, lá, ainda não está preparado para ler Le Monde.

Quanto a Sartre, não sei por que expulsaram os seus textos. Mas o que importa é o simples fato: — a Alemanha Oriental abomina Sartre. E, como uma ditadura analfabeta, há de perseguir outros autores, e livros, e idéias, e jornais.

Mas imagino que, ao desembarcar no Galeão, o Paulo Francis tenha feito a pergunta dramática: — "E aqui? E aqui?". Como se comportara o Brasil na sua ausência? Como agiram e reagiram os nossos intelectuais? E qual foi a ação das esquerdas? Se eu estivesse no aeroporto, contaria o histórico comício de 1º de maio, no campo de São Cristóvão.

Foi um ato longamente concebido do e amorosamente eecutado. Tratando-se do "Dia so Trabalhador", as esquerdas aproveitaram a data univeral para uma demonstração de força.

O d. Hélder fala muito em "conscientização". Outros exaltam "a maturidade política" do nosso povo. E há, por todo o Brasil, um furioso ímpeto libertário. Portanto, o comício do campo de São Cristóvão devia dar, segundo os cálculos mais modestos, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E, de fato, a partir das dez horas da manhã, hordas ululantes começavam a varar a cidade. Da Zona Sul, Norte e Centro, partiam multidões ventando fogo. E havia, também, uma tempestade de bandeiras. Um turista que por aqui passasse e visse esse vendaval humano havia de imaginar que começava, aqui, outra revolução francesa. D. Hélder diria que era a "conscientização". E era a "conscientização".

Só que houve um ligeiro desvio de itinerário. Em vez de ir para o campo de São Cristóvão, o povo rumava para o Estádio Mário Filho.

Imagino a perplexidade amarga do Paulo Francis: — "E o comício?".

Diria eu: — "Houve o comício". Insistiria o Paulo Francis: — "Não foi ninguém?".

Resposta: — "Foi. Compareceram os oradores". Se o Paulo Francis perguntasse — "E o público?" — eu responderia que os oradores eram oradores e público.

Faço uma idéia do imenso e divertido espanto do meu ex-inimigo. Desembarca no Brasil e sabe de um orador que faz o discurso e urra "bravos", "bravíssimo", para a própria retórica.

[9/5/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Friedenreich, o " El Tigre"

O primeiro monstro sagrado que o futebol brasileiro produziu era um mulato claro, de olhos verdes, filho de alemão com brasileira. Chamava-se Arthur Friedenreich e, de acordo com as estatísticas, teria feito mais gols que Pelé. Precisamente 1.329 gols, o que dá a média de um gol por semana durante os seus 26 anos de carreira.

Arthur nasceu no bairro da Luz, São Paulo, em 18/7/1892, e faleceu na mesma cidade, em 6/9/1969. Filho de um comerciante alemão e de uma lavadeira negra brasileira aprendeu a jogar bola com bexiga de boi. Poucos anos depois de Charles Miller chegar ao país, em 1894, trazendo o futebol como novidade, o Brasil revelou seu primeiro ídolo.

Começou a jogar futebol ainda adolescente na cidade de São Paulo, nos clubes Germânia (atual Pinheiros), Mackenzie, Ypiranga e o Paulistano, que hoje são apenas clubes sociais e já não atuam no futebol profissional. Destacou-se pela imaginação, técnica, estilo e pela capacidade de improvisar. O apelido de "El Tigre" foi dado pelos uruguaios após a conquista do Campeonato Sul-Americano de 1919, atual Copa América.

A sua posição de origem foi a de centroavante. "El Tigre" acabou introduzindo novas jogadas no ainda menino futebol brasileiro, na época ainda amador, como o drible curto, o chute de efeito e a finta de corpo. Foi campeão paulista em diversas oportunidades pelo clube Paulistano. Também atuou pelo São Paulo Futebol Clube, conquistando mais um campeonato paulista em 1931. O time do São Paulo campeão naquele ano ficou conhecido por "Esquadrão de Aço", e era formado por Nestor; Clodô e Bartô; Mílton, Bino e Fabio; Luizinho, Siriri, Araken e Junqueirinha.

Depois de ter jogado em 1917 no Flamengo Friedenreich volta ao Rio na década de 30 para de novo jogar pelo Flamengo. Clube onde ele afirmava ter orgulho de jogar e onde fez seu gol mil até o 1.046.

Era considerado pelos cronistas da época um jogador inteligente dentro de campo. Friedenreich talvez tenha sido o jogador mais objetivo e um dos mais corajosos de sua época. Parecia conhecer todos os segredos do futebol e sabia quando e como ia marcar um gol.

Nos dias atuais, ainda é considerado um dos maiores centroavantes que o Brasil já teve. No ano de 1925, voltou da Europa como um dos "melhores do mundo", depois de vencer, pelo Paulistano, nove dos dez jogos disputados.

Um de seus mais incríveis feitos, ocorrido em 1928, foi a marca de sete gols numa única partida contra o União da Lapa, batendo o recorde da época. Ele jogava pelo Paulistano e o resultado final foi de 9 a 0, no dia 16 de setembro; a curiosidade fica por conta do pênalti perdido por Fried. Encerrou a carreira no Flamengo, em julho de 1935, aos 43 anos de idade. Depois de abandonar os gramados, viveu na pobreza um bom tempo até morrer em 6 de setembro de 1969, em uma casa cedida pelo São Paulo.

Seleção Brasileira

Sua estréia na seleção se deu no ano de 1912 em um amistoso contra a seleção paulista, quando o escrete brasileiro venceu por 7 a 0 com dois gols de "Fried". Sua despedida aconteceu em 1935, em um jogo contra o River Plate no dia 23 de fevereiro, no qual o Brasil ganhou por 2 a 1. Friendenreich fez pela seleção principal 23 jogos e marcou 10 gols.

No ano de 1914 ganhou o primeiro título do Brasil na história: a Copa Roca, taça amistosa realizada para melhorar as relações diplomáticas entre Brasil e Argentina. Outras conquistas importantes que conseguiu foram os sul-americanos de 1919, marcando o gol do título na prorrogação contra os uruguaios, e 1922, primeiras conquistas relevantes da Seleção Brasileira.

Fontes: Wikipedia; Revista Placar.
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