sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O "velho"

Em recente confissão, contei a minha visita a uma grã-fina que, de três em três meses, é capa de Manchete. E, de fato, sempre que Justino Martins está em apertos, vai ao arquivo e apanha a cara da minha belíssima anfitriã. O leitor nem desconfia que já viu a mesmíssima capa umas quinze vezes.

Não há nada mais parecido com uma grã-fina do que outra grã-fina. Por dentro e por fora, todas se parecem. Quem viu uma, viu as outras.

Entro no palácio e nada descreve a minha perplexidade. Conheço, de longa data, a dona da casa. Mas como identificá-la, se lá todas se pareciam entre si como soldadinhos de chumbo?

Cumprimentei umas oito, na ilusão de que era a própria. Até que uma delas, ligeiramente mais lânguida, ligeiramente mais afetada do que as demais, suspirou: — "Até que enfim veio à minha casa!". Fez-se luz em meu espírito. Era aquela.

Bem. Estou-me perdendo no secundário em prejuízo do essencial. O que eu queria dizer é que lá passei umas cinco horas. E, até o fim da noite, só se ouviu um nome e só se falou de uma figura: — Marx. Tudo era marxista. O mordomo de casaca devia ser outro marxista. Idem, os garçons dos salgadinhos, uísque e champanhe. E Marx não era apenas Marx. Não. De um momento para outro, passou a ser "o velho". Damas e cavalheiros diziam "o velho" com uma salivação intensa.

Foi quando, a folhas tantas, alguém lembrou que "o velho" era dado a furúnculos. Houve um frêmito de volúpia geral e inconfessável. Parece meio difícil emprestar-se qualquer transcendência a uma furunculose. Pois bem.

Havia, ali, um tal clima marxista que os furúnculos do "velho" pareciam mais resplandecentes do que as chagas de Cristo. Os decotes palpitaram. Os cílios postiços tremeram. Havia como que uma voluptuosidade difusa, volatilizada, atmosférica. E, de repente, Marx deixava de ser o profeta, o gênio, o santo. Parecia mais um fauno de tapete, torpe e senil. Ao passo que as damas presentes seriam ninfas também de tapete.

Por aí se vê que uma simples furunculose pode deflagrar um misterioso surto erótico. Saí de lá às quatro da manhã e sem me despedir.

Não foi incivilidade, absolutamente. É que eu reincidia na mesma confusão visual. Como reconhecer a anfitriã, se todas as presentes eram iguaizinhas umas às outras?

Vim para casa e pensava em tudo que vira e ouvira no sarau grã-fino. Eis o que eu pensava: — "Como a nossa alta burguesia é marxista!". E não só a alta burguesia. Por toda a parte, só esbarramos, só tropeçamos em marxistas. Um turista que por aqui passasse havia de anotar no seu caderninho: — "O Brasil tem 80 milhões de marxistas". Hoje, o não-marxista sente-se marginalizado, uma espécie de leproso político, ideológico, cultural etc. etc.

Só um herói, ou um santo, ou um louco, ousaria confessar, publicamente: — "Meus senhores e minhas senhoras, eu não sou marxista, nunca fui marxista. E mais: — considero os marxistas de minhas relações uns débeis mentais de babar na gravata".

Mas contei o episódio da furunculose para concluir: — como nós conhecemos Marx! E o conhecemos na sua intimidade mais doméstica, prosaica e profunda. Somos autoridades em seus furúnculos. Do mesmo modo, estaremos informadíssimos sobre as suas tosses, bronquites, asmas, aerofagias etc. etc. Resta apenas uma pergunta: — e teremos a mesma intimidade com os seus escritos? Aqui se insinua a minha primeira dúvida.

Senão, vejamos. Há três ou quatro dias, fui eu a um sarau político. Lá, como no grã-finismo, o marxismo reinava. Cheguei disposto às provocações mais sórdidas. Meus bolsos estavam entupidos de notas. Reuni a fina flor da "festiva" e comecei: — "Venham ouvir umas piadas bacanérrimas. Ouçam, ouçam!".

E, de repente, tornei-me extrovertido, plástico, histriônico, como um camelô da rua Santa Luzia. Promovia idéias como quem vende laranjas, canetas-tinteiro, pentes, isqueiros, calicidas.

Logo juntou gente, e comecei a ler frases de recente leitura: — "O imperialismo é a tarefa dos povos dominantes — Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos". Estes últimos "eram o país mais progressista do mundo". "Contra o imperialismo russo, a salvação é o imperialismo britânico."

Outra: — "O defeito dos ingleses é que não são bastante imperialistas". Quanto à história, "avança de leste para oeste". O colonialismo é progressista porque os povos domináveis e colonizáveis só têm para dar "a estupidez primitiva". O budismo é "o culto bestial da natureza". E que dizer da China? É uma "civilização que apodrece".

Por outro lado, a vitória dos Estados Unidos sobre o México, em 1848, foi uma felicidade para o próprio México. Dizia o autor, que eu citava: — "Presenciamos a conquista do México e regozijamo-nos porque este país, fechado em si mesmo, dilacerado por guerras civis e negando-se a toda evolução, seja precipitado violentamente no movimento histórico. No seu próprio interesse, terá que suportar a tutela que, desde este momento, os Estados Unidos exercerão sobre ele".

Por outro lado, é maravilhosa a sujeição da Índia à Inglaterra. "A Alemanha é um povo superior e os latinos e os eslavos, mera gentalha." Ainda sobre os eslavos: — "Povos piolhentos, estes dos Bálcãs, povos de bandidos". Os búlgaros, em especial, são "um povo de suínos" que "melhor estariam sob o domínio turco". Em suma: todos esses povos eslavos são "povos anões", "escórias de uma civilização milenar". Mais ainda: — "A expansão russa para o Ocidente é a expansão da barbárie" etc. etc.

Durante duas horas li para a "festiva". Por fim, embolsei as notas e, arquejante, falei: — "Vocês ouviram. O autor ou autores citados já morreram. Quero saber se teriam coragem de cuspir na cova de quem escreveu tudo isso?". E outra pergunta: — "Quem pensa assim, e escreve assim, é um canalha? Respondam".

Em fulminante resposta, todos disseram: — "É um canalha!".

Ainda os adverti: — "Calma, calma. São dois os autores! Vocês têm certeza de que são dois canalhas? E canalhas abjetos?".

Não houve uma única e escassa dúvida. Os marxistas ali presentes juraram que os dois autores eram "canalhas" e abjetos.

E, então, só então, alcei a fronte e anunciei: — "Agora ouçam os nomes dos canalhas". Pausa e disse: — "Marx e Engels". Fez-se na sala um silêncio ensurdecedor. Repeti: "Marx e Engels, os dois pulhas, segundo vocês".

Tudo aquilo estava em Marx et la politique internationale, por Kostas Papaloanou etc. etc. Os dois, Marx e Engels, eram paladinos fanáticos do imperialismo, do colonialismo, admiradores dos ianques, russófobos. Disseram mais: — "A revolução proletária acarretará um implacável terrorismo até o extermínio de todos esses povos eslavos".

Os marxistas que me ouviam eram poetas, romancistas, sociólogos, ensaístas. Intelectuais da mais alta qualidade. E entendiam tanto de Marx quanto de um texto chinês de cabeça para baixo.

Eis a verdade: somos analfabetos em Marx, dolorosamente analfabetos em Marx.

[3/5/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Gianfrancesco Guarnieri

Gianfrancesco Guarnieri (Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri), ator, diretor, dramaturgo e poeta, nasceu em Milão, Itália, em 6/8/1934, e faleceu na cidade de São Paulo, SP, em 22/7/2006. Foi um artista de destaque no Teatro de Arena de São Paulo e sua mais importante obra foi Eles Não Usam Black-Tie.

Por conta do fascismo que tomava conta da Itália, seus pais, o maestro Edoardo Guarnieri e a harpista Elsa Martinenghi, decidiram vir para o Brasil em 1936 e se estabeleceram no Rio de Janeiro.

No início dos anos 1950 a família se mudou para São Paulo. Líder estudantil desde a adolescência, Guarnieri começou a fazer teatro amador com Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e um grupo de estudantes de São Paulo, e em 1955 criaram o Teatro Paulista do Estudante, com orientação de Ruggero Jacobbi. No ano seguinte, o TPE uniu-se ao Teatro de Arena, fundado e dirigido por José Renato.

Sua peça de estréia, como dramaturgo, foi Eles Não Usam Black-Tie, encenada em 1958 pelo Teatro de Arena. A direção foi de José Renato e o elenco contou com grandes talentos que começavam a despontar no teatro brasileiro, como o próprio Guarnieri (no papel de Tião), com a estreia profissional de Lelia Abramo (Romana), Miriam Mehler (Maria), Flavio Migliaccio (Chiquinho), Eugênio Kusnet, (Otávio), Francisco de Assis (Jesuíno), Henrique César (João), Celeste Lima (Teresinha), Riva Nimtz (Dalva) e Milton Gonçalves (Bráulio).

A partir do final dos anos 50, passou a conciliar sua bem-sucedida atividade no Teatro com uma presença cada vez maior na televisão e no cinema. Virou, assim, um dos nossos melhores e mais populares atores

Programada para encerrar o trabalho do grupo, que vivia uma crise financeira, alcançou sucesso imenso, sendo um dos marcos da renovação do teatro brasileiro da época. A peça, o autor e o elenco foram premiados pelo então governador de São Paulo, Jânio Quadros, e o Arena foi salvo da crise financeira que há tempos assolava o grupo. Paralelamente, o diretor Roberto Santos dava o pontapé inicial no Cinema Novo com o filme O Grande Momento, protagonizado por Guarnieri e Miriam Pérsia, um clássico do nosso cinema.

Atento a isso, o diretor Sandro Polloni encomendou uma peça a Guarnieri para ser encenada pela companhia de Maria Della Costa, esposa de Sandro e de cuja companhia teatral ele era o diretor. Guarnieri saiu do Arena por um tempo para poder realizar esse trabalho com Maria Della Costa e em 1959 veio à luz Gimba, Presidente dos Valentes. Era o primeiro trabalho de Guarnieri em palco italiano e a direção ficou a cargo de Flávio Rangel. Levava à cena de maneira pioneira a realidade dos morros cariocas, em forma de musical, inspirando-se em parte na sua própria experiência de vida. A encenação foi espetacular e a peça passou os meses seguintes excursionando pela Europa, sendo apresentada no Festival das Nações, na França.

A Semente estreou em 1961 no TBC e também contou com a direção de Flávio Rangel. A peça, de cunho abertamente político e inteiramente fora dos padrões do TBC, abordava de forma contundente a militância comunista, criticando tanto os métodos da direita quanto da esquerda. Embora contasse com atores consagrados (como Leonardo Villar, Cleyde Yáconis, Stênio Garcia e Natália Timberg, além do próprio Guarnieri, entre outros), fosse uma montagem grandiosa e contasse com o aval da crítica, a peça teve problemas homéricos com a censura, o que acabou esfriando o interesse dos frequentadores do então chamado "Templo Burguês do Teatro Paulista" e a peça saiu rapidamente de cartaz. Nesse mesmo ano, ainda no TBC, Guarnieri participou de duas montagens de Flávio Rangel: Almas Mortas, de Gogol e a primeira montagem de A Escada, de Jorge Andrade.

Em 1962 ele volta para o Arena, não só como ator e autor, mas como sócio proprietário. José Renato se alternava entre vários trabalhos no Rio e em São Paulo, e o Teatro de Arena acabou se tornando uma sociedade entre Guarnieri, Augusto Boal, Paulo José, Juca de Oliveira e o cenógrafo Flávio Império. Juntos, eles participaram de várias peças nessa nova fase, como A Mandrágora, de Maquiavel (1962) e O Melhor Juiz, o Rei, de Lope de La Vega (1963).

O Filho do Cão, de 1964, primeiro texto de Guarnieri desde A Semente, tratava da questão do misticismo religioso e da reforma agrária já em um turbulento contexto político (ano do Golpe Militar). A partir desse momento, sua carreira, como a de todos os intelectuais ideologicamente filiados à esquerda, passou por momentos difíceis. Opta então por utilizar uma linguagem metafórica e alegórica que tomaria corpo em montagens como os musicais Arena conta Zumbi, tendo como destaque a música Upa Neguinho com parceria de Edu Lobo e Arena conta Tiradentes, feitos em parceria com Augusto Boal. 

Na década seguinte daria prosseguimento a esse estilo em peças como Castro Alves Pede Passagem (1971) e principalmente Um Grito Parado no Ar (1973) (que encenava as dificuldades da classe artística naquele período) e Ponto de Partida (1976) (onde utilizava uma vila da Idade Média como pano de fundo para focalizar a repressão a partir da morte do jornalista Wladimir Herzog), pontos capitais do teatro brasileiro nos anos 70.

Na década de 80, sua carreira como autor de teatro se tornaria cada vez mais esparsa, lançando poucos textos. Em 1988 escreveu Pegando Fogo Lá Fora; em 1995 viria A Canastra de Macário, que é o momento em que sua saúde lhe dá o primeiro susto, com um aneurisma na aorta. Em 1998 escreve com o filho Cláudio a peça Anjo na Contramão e sua última peça foi A Luta Secreta de Maria da Encarnação, realizada em 2001.

Subiu num palco pela última vez no dia 15 de agosto de 2005 (no mesmo Teatro Maria Della Costa onde 46 anos antes apresentara a peça "Gimba"). Fez o papel de Marcelo Belluomo na gravação da peça "Você tem medo do ridículo, Clark Gable?", de Analy Alvarez, com direção de Roberto Lage, para o programa Senta que lá vem comédia da TV Cultura. O programa contou com a participação das atrizes Arlete Montenegro, Sônia Guedes,André Latorre, Neuza Velasco e o ator Luiz Serra, e foi ao ar no dia 24 de setembro do mesmo ano.

No dia 2 de junho de 2006 gravava no Teatro Oficina a telenovela Belíssima, da Rede Globo, em que interpretava o personagem Pepe, e sentiu-se mal, tendo sido internado no Hospital Sírio-Libanês, onde veio a falecer de insuficiência renal crônica, cinquenta dias depois, no dia 22 de julho. Foi enterrado no cemitério Jardim da Serra em cerimônia particular na cidade de Mairiporã onde morava.

Além de parceiro musical de compositores como Adoniran Barbosa, Carlos Lyra, Edu Lobo, Toquinho e Sérgio Ricardo, atuou, na TV, em novelas como A Muralha (1968) e Mulheres de Areia (1973-74), ambas de Ivani Ribeiro, Éramos Seis (1977), Jogo da Vida (1981-82), Cambalacho (1986), Rainha da Sucata (1990) e A Próxima Vítima (1995), todas de Sílvio de Abreu, Sol de Verão (1982-83), de Manoel Carlos, Vereda Tropical (1984-85), de Carlos Lombardi, Mandala (1987-88), de Dias Gomes e Que Rei Sou Eu? (1989), de Cassiano Gabus Mendes, além de várias minisséries.

Fonte: Wikipedia.
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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O maior do mundo

Lima, Zito, Dalmo, Calvet, Gilmar e Mauro; Agachados Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe
Santos (1962 - 1963)

Eram onze camisas brancas vestindo onze corpos negros. Apesar de não ser uma verdade completa, a começar pelo goleiro Gilmar, assim corria pelo mundo a fama do maior esquadrão de todos os tempos.

Não houve títulos que aquele time de Pelé não conquistasse: bicampeão mundial, bicampeão da Libertadores da América, pentacampeão da Taça Brasil, oito campeonatos paulistas, três Rio-São Paulo. Sem falar dos 28 torneios ganhos em todos os cantos do planeta.

Mas o seu apogeu aconteceu em 1962 com a impressionante seqüência de títulos que o levaram ao bicampeonato mundial. Para isso, o time teve que vencer o Peñarol, no tira-teima realizado em Buenos Aires, e o Benfica, em Portugal.

Em 1963, os feitos heróicos se repetiram em cima do Boca Juniors, em pleno estádio de La Bombonera, e contra o poderoso Milan, dando ao Santos o bicampeonato mundial interclubes. A verdade é que nunca houve e muito dificilmente haverá um time como o Santos de Gilmar; Mauro e Calvet; Dalmo, Zito e Lima; Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.

Gerações de ouro

Três gerações de craques gravitaram em torno do deus Pelé. A primeira venceu o campeonato paulista de 1958 com a insuperável marca de 143 gols. Jogavam Manga; Ramiro e Dalmo; Getúlio, Urubatão e Zito; Dorval, Jair, Pagão, Pelé e Pepe. Bem diferente, mas tão bom como o time que venceu o tricampeonato paulista em l969: Cláudio; Carlos Alberto Torres, Ramos Delgado, Djalma Dias e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manuel Maria, Toninho Guerreiro, Pelé e Edu.

Fonte: Revista Placar.
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