Cada
época tem suas palavras encantadas. No tempo de Dumas velho, era
"cáspite". Ninguém sabe, até hoje, o que se esconde por trás de
"cáspite". Anos atrás, o poeta Murilo Mendes foi ao Municipal. Não me
lembro se era ópera ou companhia francesa.
No primeiro intervalo, lá foi ele para o corredor, fumar o seu
cigarrinho. E, súbito, começa a ouvir uma série de vozes. Não vozes das
grã-finas que cacarejavam nas imediações. Não.
Era uma única voz, absurda, fantástica, que repetia, junto ao seu ouvido, a mesma palavra: — "Cáspite! Cáspite!".
Demais a mais, não parecia um som terreno. Não era a primeira vez que um
poeta tinha delírios auditivos como uma Joana D'Arc. Aqui abro
parêntese, para referir um episódio que consta da história e lenda de
Murilo Mendes.
Não sei em que dia ou ano, nem importa a data. Era o mesmo Municipal e
estava levando uma peça francesa (alguém diria, mais tarde, e
textualmente, que era uma peça "chatérrima"). Lá foi o nosso Murilo para
uma das primeiras filas. Olhou em torno e viu uma fauna impressionante
de casacas e decotes. E cada decote ou casaca humilhava e agredia o seu
traje de passeio, surrado e sebento. Muito bem: — e, no fim dos
primeiros cinco minutos, o poeta achava o texto irrespirável.
Não teve mais dúvidas. Abriu um guarda-chuva na platéia. Na frisa, o
embaixador francês, de monóculo, já não entendia mais nada. O elenco, no
palco, esbugalhou-se. Por um momento, não se ouviu aquela pronúncia
perfeita, irretocável dos artistas de França.
Era uma experiência inédita aquele guarda-chuva solitário e
sobrenatural. E não havia sequer uma goteira que o justificasse. Por
outro lado, nenhum regulamento de teatro prevê a hipótese de um
guarda-chuva.
Que fazer diante de um fato novo, revolucionário e alucinatório?
Houve uns dois ou três minutos de um suspense geral e pânico. E, súbito,
aquelas casacas e aqueles decotes começaram a aplaudir. Primeiro, uma
meia dúzia de palmas ainda envergonhadas e pioneiras. Depois, explodiu a
unanimidade. Pela primeira vez, um guarda-chuva foi longamente
ovacionado, como um tenor italiano.
Naquele tempo, o intelectual era louco (hoje, o próprio Murilo é apenas
um funcionário corretíssimo, que faz do livro de ponto a sua bíblia).
Volto ao "cáspite". E, então, no corredor do Municipal, Murilo Mendes começa a repetir: — "Cáspite! Cáspite!".
Houve um fluxo e refluxo de casacas e decotes. Não satisfeito, ele cai,
entorna-se no ladrilho, como um fuzilado. No ar ficou aquela palavra em
flor: — "cáspite, cáspite". A queda do poeta impressionou menos do que o
som apavorante. As senhoras perguntavam umas às outras: — "Por que
cáspite?".
Era a pergunta que todos faziam sem lhe achar resposta. O fato é que a
exumação de uma gíria velhíssima deflagrou todo um processo de terror
coletivo.
Mas "cáspite" é, repito, do tempo do Dumas velho. Outra palavra que vem
injetada de passado é "biltre". Se perguntarmos às novas gerações o que é
"biltre", nem todos saberão responder. Mas reparem como o som é
fascinante.
Ninguém chama mais ninguém de "biltre". Em nosso repertório de
palavrões, falta este. E alguém que, em nosso tempo, fosse chamado de
"biltre" não sentiria o ultraje fatal, a mácula indelével.
Todavia, há uma palavra que não passa, que não envelhece, uma palavra
que mantém, através dos tempos, a sua eficácia mortífera. Ei-la: —
"canalha".
Na minha confissão de ontem ou anteontem (já não me lembro mais), tratei
do destino da inteligência. Sem nenhum dramatismo, e apenas com a maior
isenção e objetividade, observei um fato patético do nosso tempo.
Referi-me à "inteligência degradada".
Outro dia passou por mim pintor estimadíssimo. Alguém cochichou: — "Olha
um canalha plástico!". E, de repente, vi tudo. Sim, do cinema, do
teatro, da pintura, da poesia, do romance — sai todo um elenco de
canalhas.
O leitor, perplexo, há de perguntar: — "Mas como e por quê?".
É preciso explicar: — são os artistas que, por motivos políticos,
ideológicos, rolam de abjeção em abjeção. E assim desponta, como uma
nova classe, a dos "canalhas da inteligência". Fiz a pura constatação e
citei dois exemplos: — o poeta Éluard, que se recusou a assinar um
pedido de clemência para um outro poeta, condenado à morte. E o poeta
foi enforcado. Outro exemplo: — de Sartre, que, depois do extermínio de
Pasternak, dizia: — "Um escritor que não é lido em sua própria língua".
Não era lido porque a polícia russa não deixava. E Sartre achava corretíssimo o assassinato de um maravilhoso artista.
Eu poderia ir buscar, na Cortina de Ferro, centenas de exemplos. E é
óbvio que a inteligência passa, em nossa época, por um processo de
desumanização. Ninguém era mais humano do que o poeta, o romancista, o
pintor, o escultor. O artista era o seu povo. E, hoje, nós vemos o nosso
intelectual dando vivas a Cuba, outros que se esgoelam pelo Vietnã.
Populações inteiras do Brasil apodrecem na fome. E, aqui, não damos um
passo sem tropeçar num vietcong da inteligência brasileira. Dane-se a
nossa mortalidade infantil!
Artistas plásticos, poetas, romancistas escrevem "muerte" em seus
cartazes. Traem sua língua. Traem seu povo. Sim, podemos falar numa
inteligência desumana, tão pouco brasileira e de uma abjeta alienação.
Fiz toda a meditação acima pensando em Oduvaldo Viana Filho. Se vocês
não o conhecem, é pena. Eu disse Oduvaldo Viana Filho e já retifico: — o
Vianinha. Sua estrutura doce exige o diminutivo. Dos nossos artistas, é
o menos sombrio, o menos neurótico, o menos ressentido. O nosso teatro
está cheio de víboras. Pois o Vianinha é a antivíbora.
Feito este lírico retrato de lambe-lambe, passo aos fatos.
Ontem, eu o encontrei no gabinete de Beatriz Veiga, diretora do Teatro
Nacional de Comédia. O Vianinha ia atrás de umas bambolinas para a
estréia de Cordélia. E, pela primeira vez, eu o vi sem a luminosidade do
otimista. Sim, o dramaturgo estava a meio-pau, exalando uma cava
depressão. Ao ver-me, chamou-me de "senhor". (E, então, senti que se
cavara entre mim e ele o abismo de várias gerações).
Simplesmente, o Vianinha está numa torva desilusão do teatro. Parece que
suas últimas tentativas teatrais não foram bem-sucedidas. E o Vianinha,
em conversa comigo, falou em largar o teatro. Quer ser outra coisa.
Deprimido, chegava ao patético, raiando pelo sublime.
Quando falou em largar o teatro, tive ímpetos de aplaudi-lo como na
ópera: — "Bravos! Bravíssimo!". Quase, quase lhe disse: — "Seja vendedor
de chicabon, de laranja, de cachorro-quente ou de grapete. Mas não seja
poeta, não seja artista, não seja intelectual".
O que importa é não ser nem Sartre, nem Éluard.
[24/4/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.