Manuelinha
era uma mulata dos seus 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de
mestiça bonita e apetitosa. Não tinha alta estatura; pelo contrário,
era toda miudinha de corpo e de formas, porém enxuta de carnes, de
braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente espontado
debaixo da chita do corpete, pescoço cilíndrico...
Os seus olhos eram grandes,
amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios
carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito,
pele fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa
em demasia.
Muito viva, tinha
movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, adêmanes rápidos, e
sabia rir-se de qualquer coisa com graça encantadora; o muxoxo na sua
boca tinha um quê especial.
Demais Manuelinha tinha
consciência da sua beleza e sabia fazê-la valer. Debalde muito cabra
valente, num pé de viola, lhe tinha feito roda. Inutilmente os arrieiros
faziam piegas nos seus cavalos aparelhados de prata, quando passavam
junto à sua porta. Manuelinha olhava a todos por cima do ombro; e se
algum mais ousado animava-se a dirigir-lhe uma graçola qualquer, por
exemplo, um:
– Puxa, mulata, machucadeira de coração!.. – era infalível da sua parte um atrevido:
– Não se enxerga seu sujo?!
ou então:
– Vai te lavar na maré, pato choco!
E assim vivia Manuelinha,
contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre esquiva e
orgulhosa da sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os
homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como
que atraídos pela interessante rapariga.
* * *
Toda a rapaziada da vizinhança
derretia-se por Manuelinha. Mas dentre a chusma de seus adoradores um
merece ser destacado com certo relevo, não só pelo importante papel que
vai representar na seqüência desta história, como pela extravagância do
tipo.
Esse apaixonado era, nada mais, nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70 anos, e tio-avô da mulatinha.
Por artes do diabo, aquele
"cação", como lhe chamava a malcriada mulatinha, enamorou-se
perdidamente da sobrinha-neta, e lavava todo o santo dia a importuná-la,
apesar das insolentes rebatidas da rapariga.
Pedro Camundá, ou antes, para
dizer exatamente o seu nome com todos os seus estrambólicos apelidos,
por ele mesmo forjados, Pedro Camundá Lopes Martins Júnior, Filho do
Gama Pesca de Dia, de Noite Escama, Cócôriôcô, Galo Quando Canta É Dia,
entendia lá no seu bestunto que, sendo-se tio-avô de Manuelinha tinha
mais do que qualquer outro direito de possuí-la, e pouco se lhe dava a
diferença de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata
sente pelo negro.
Pedro Camundá não refletia
nisso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele suficiente
para destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer
render a rapariga à sua concupiscência.
É claro, porém, que a moça, por
mais depravado que fosse o seu gosto, nunca poderia entregar-se
voluntàriamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha enredada,
cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que
Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava para agradá-la
diversas habilidades que possuía, tais como: tocar flauta de taquara
pelo nariz, pegar cobras com a mão, tirar ponto de jongo e outras
astúcias mais.
Manuelinha cada vez o aborrecia
mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro Camundá tinha fama de
grande feiticeiro. Nessa qualidade ela o temia extraordinàriamente; maus
tratos, porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava
epítetos os mais injuriosos.
* * *
Era de uso antigo em casa de
Manuelinha festejar-se com uma grande pagodeira o dia de Nossa Senhora
da Conceição, que era a madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia,
começaram a afluir visitas de toda a parte, tanto homens como mulheres,
pois essa festa tinha fama na vizinhança.
Cantava-se uma ladainha, ia-se
depois para uma mesa bem servida de suculentas iguarias, e depois
caía-se no batuque, que durava até amanhecer.
Entre outras pessoas estranhas
que vieram pela primeira vez a essa pândega, notava-se o sr. Antônio
Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão de uma fazenda
da vizinhança.
Era um sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e beiço raspado.
Ainda vinha metido na pesada
saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos fundilhos, e trazia
atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande e revirada,
guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.
Guimarães logo que pousou a
vista na mulŽtinha, nesse dia vestida e penteada a capricho, começou a
sentir umas comichões na garganta e pôs-se a mexer no banco, todo
esquerdo, todo casmurro. Via-se logo que aquela alma ilhoa queria reza;
mas, o que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana
que havia orgulhosamente desprezado o amor da mais desempenada
caipiragem, simpatizou igualmente com o forasteiro, e logo todos,
inclusive Camundá, perceberam que os dois, no fim de meia hora, estavam
de namoro trançado.
Muitos se arreliaram com isto. O
negro velho. porém, encheu-se da maior das raivas, e os seus olhos,
que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da sobrinha,
como que ameaçando-a.
* * *
Todavia este incidente não desmanchou a festa.
Ao contrário, como Manuelinha
parecia ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa
ao namoro com o ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de qualquer
preocupação. Ora bolas! ela era senhora de gostar de quem quisesse.
Muitos, até, começaram logo a
lançar os seus olhares para as outras raparigas, quando mais não fosse
para moerem a impostora que tinha desprezado os seus patrícios e estava
agora a derreter-se com um sujeito à-toa, vindo da Estranja ou de onde o
diabo perdeu as botas, isto só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem
mistura.
– A negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga, – diziam uns para os outros despeitados.
No entanto estrugia o sapateado e
quando cessava era apenas para se fazer ouvir algum cantador que
extravasava os seus queixumes ou os seus fingidos desdéns numa quadrilha
estribilhada pelo Quero mana, lerê, quero mana! ou pelo Vai de roda,
siá dona Geralda e outros.
Todos folgavam ou pareciam
folgar com a maior alegria. Só Pedro Camundá, o preto velho, acocorado a
um canto da sala, remoia a sua grande raiva concentrada.
* * *
Em um dos intervalos do batuque,
e depois que alguns cantadores trocaram algumas trovas em desafio,
Manuelinha chegou-se ao Guimarães, que não tirava os olhos de cima dela,
e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:
– Cante alguma coisa para a gente ouvir seu Antônio.
Guimarães, assim rogado tão
agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e a torcer a tramela da
porta, para disfarçar a confusão, disse:
– Lá o cantar eu cantava, pois
com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas é que eu sei
somente cantar à moda da minha terra e talvez as pessoas que aqui estão
não gostem.
– Por que não se há de gostar? –
disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora vivera
amasiada com um português. – Por que não se há de gostar? Até tem mais
graça porque é uma coisa nova.
– Decerto que sim, – confirmaram algumas outras mulheres. – A gente já anda tão enfarada dessas modas daqui.
– Cante seu Antônio, – rematou Manuelinha arrebitando o nariz. – Se alguém não gostar, não faltará quem lhe aprecie.
Ao ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim falou:
– A sora dona Manuela manda em
quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá pelas nossas terras
antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom picheI de vinho.
Mas como ele não há por cá, mandem-me uma pouca de aguardente para
desencatarrar o peito.
Sendo logo servido no que
pedira, o Antônio tomou uma viola, afinou-a a seu jeito, e, ao som de um
estabanado rasgado, cantou o seguinte:
Ai! belas manhãs da Lapa,
E eu fui aos caramujos,
Quando bejo mulher belha,
Tiro meu chapéu e fujo.
Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.
Riram-se todos a bandeiras
despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou de
contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia
não era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, ou por
muito estúpidos, ou simplesmente por serem novidade naquele meio, afeito
às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições matutas.
Todos gostaram, exceto, porém, Pedro Camundá. Esse sempre sentado, ao
canto da sala tornava-se cada vez mais sério e embezerrado. Dir-se-ia
que tinha ciúmes do triunfo que o português alcançava.
No entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, animando-se aos poucos, destampou outra vez o peito e berrou:
Oh! munina da labada,
Rega o teu manjaricão,
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não.
Senhor João do Norte
Bem todo ratado,
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.
Novas gargalhadas acolheram tal
destempero poético: a caipirada achava um cômico irresistível nos
versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como sinais de
admiração, no tamborete em que se achava, remexia-se de contentamento.
Pedro Camundá, cada vez mais
enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães,
impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de
recursos no braço de uma viola, variando a música e o ritmo despejou de
um só fôlego toda essa embrulhada:
Quando Cristo frumou Judas,
Palácios de grande altura,
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura
Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais,
Comem-n'as aves o milho,
Quaim paga são-n'os pardais.
Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca,
Pau furado é biola
De caracol é raveca.
E deixando pender o corpo todo
para Manuelinha, que se achava sentada a seu lado, rematou por esta
forma extravagante a sua lengalenga:
E agora, senhores meus,
Uma coisa bou dizeire,
Andam cabras pelo monte,
Muito custa um bem quereire.
Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvôa
Na mesa da consciência.
Todos compreenderam
perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que havia
realizado a sua conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam
por aquele monte, e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela
declaração brutal.
Um murmúrio surdo de indignação
fez-se ouvir logo. Os caipiras olhavam uns para os outros, como se
quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já estava
cheirando a desaforo grosso, e Pedro Camundá, que tinha ouvido toda a
versalhada do Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de
indignação, entendeu que devia mostrar a todos que também sabia cantar.
Deslumbraria o português, e conjuntamente a mulatinha, que não podia
deixar de preferir o seu canto.
* * *
Assim,
logo que o português se calou, Pedro Camundá, como se houvesse sido
mordido pela tarântula, pulou para o meio da sala e a desengonçar-se
todo e a bater palmas, berrou descompassadamente na sua meia língua:
Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro,
Bunda teremê,
Coração min dóe.
Pedro Camundá não pôde
continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada
estapafúrdia do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi ao seu
encontro, e gritou-lhe com a insolência que lhe era própria:
– Cala a boca, burro.
– Burro não, sua malcriada. Mais respeito com seu tio! – retrucou Camundá enfurecido.
– Que tio! que nada! Vocemecê
não vê que não sabe cantar? Para que está aborrecendo a gente com essa
porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!...
Manuelinha não chegou a terminar bem a frase.
Pedro Camundá, enciumado e
ferido no seu amor-próprio de modo tão público, desandou-lhe tão
violenta bofetada, que a mulatinha estendeu-se a fio comprido no chão.
Levantou-se logo grande celeuma
entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado com aquela ofensa à
mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do pé o grosso
tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e cibrou-o com toda a força
na cabeça do negro, de onde escorreu pronto um fio de sangue.
Então ferveu o sarceiro.
Diversos caipiras, querendo tornar-se agradável a Manuelinha,
colocaram-se ao lado do português. Outros, porém, declararam-se em favor
de Camundá, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande
berreiro.
Quebraram-se diversas cabeças e
muitos ficaram cheios de contusões, mas, afinal, todos se
reconciliaram. Houve explicações de parte a parte, trocaram-se
desculpas; e todos mostraram-se dispostos a recomeçar o pagode.
Quem não se acalmou, porém, foi
Pedro Camundá. Recusando lavar o sangue que lhe escorria da cabeça
lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoninhado, e vendo que todos
se voltavam contra ele, pela sua obstinação em insultar a sobrinha,
pôs arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha, dirigiu-se à porta, e
dali, cuspindo três vezes para dentro da sala e lançando à mulatinha um
olhar terrível, disse:
– Negro, hein?! Negro?! Tu me
pagarás!... – Acabando de pronunciar tais palavras, desapareceu na
escuridão da noite, deixando todos sob o peso daquela terrível ameaça
dirigida à rainha da festa.
* * *
Não era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto velho.
Todos o tinham por feiticeiro
terrível, e sabia-se que ele fazia de rei nos canjerês arranjados pela
negrada das fazendas vizinhas.
A sua habitação, uma choupana
esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da lomba de uma serra
onde ele vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava
atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror: eram cobras
mansas, morcegos espetados pelas paredes, sapos, braços de crianças
pagãs que desenterrava dos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e
outras bruzundangas.
Ali vivia ele desde que se
libertara, e muita gente se queixava dos seus feitiços. Dizia-se que o
seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava
moléstia nas criaturas. Pelas suas artes realizava desuniões nos casais.
Mil outras perversidades se lhe atribuíam.
Por isso ficaram todos
apreensivos com a sua ameaça. Pedro Camundá não era para graças; aquilo
era negro danado, negro do couro azul, diziam os caipiras uns para os
outros, comia brasa de fogo, fazia vez de cururu.
* * *
Decorreram alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.
Assustada durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha esqueceu-a completamente.
Guimarães pouco e pouco foi se
insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça, sabendo
conquistá-la, seduzi-la, até que veio a assenhorear-se completamente do
seu coração, dos seus desejos, das suas vontades, chegando a possuí-la.
Falava-se num futuro casamento, mas ninguém acreditava nele, porquanto
o português já quase que morava em casa de Manuelinha, dormindo lá nos
sábados, passando o domingo todo, para só se retirar na segunda-feira.
A ameaça de Pedro Camundá não fora entretanto vã, e durante certo tempo veio transtornar a paz em que a rapariga vivia.
Num domingo pela manhã,
achando-se em casa o Guimarães, como de costume, Manuelinha pôs à cabeça
um pote de barro e dirigiu-se à fonte, a fim de trazer água para
cozinhar o almoço.
A fonte era pouco distante da
casa. Descia-se apenas uma pequenina ribanceira, e ela surgia, a jorrar
cristalina água, cantante, muito clara, muito fresca, deslizando por
entre imensas pedras limosas, e toda cercada pelas largas folhas de
inhames e de taiobas.
A moça chegou ao puríssimo veio
d'água, lavou o rosto e os braços, encheu o pote, e preparava-se para
pô-lo à cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do matal
vizinho.
Tornando a descansar o pote no
chão, procurou observar o que se passava e, agachando-se, para olhar por
baixo da ramaria, avistou um moleque muito preto, coberto de andrajos,
e com grande quantidade de latas velhas amarradas pelo corpo.
Assim que os seus olhos pousaram
sobre ele, o moleque começou a fazer-lhe trejeitos e caretas. A moça,
assustadíssima, correu para casa a relatar o que tinha visto à mãe e ao
amante.
Guiados por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito nervosa, gritou, apontando para o mato:
– Lá está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! T'esconjuro, diabo!...
A mulata velha e o português olharam atentamente para o lugar indicado por Manuelinha, porém nada viram.
– Onde? onde? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.
– Ali, gente! mesmo em frente de
nós. É moleque muito preto, todo coberto de molambos e com uma porção
de latas velhas penduradas pelo corpo. Ouçam como batem as latas umas
nas outras!...
– Eu não bejo nada! – exclamou Guimarães esfregando os olhos já cansados de tanto olhar.
– Nem eu! – disse a mulata velha.
– Ó homem! vocês estão cegos? –
disse Manuelinha tornando-se cada vez mais agitada. – Credo! o moleque
virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa mandada com
certeza. Olhem como o sapo está inchando?!...
– Raios parta o sapo mal-o o
moleque! –disse Guimarães já um tanto aborrecido. – Pelas cinco chagas
de Cristo que eu nãn bejo nada!
– Xi... – continuou a mulatinha. – O sapo virou numa cobra vermelha. T'arrenego, coisa ruim!
– Tu estás douda, rapariga! – exclamou Guimarães. – Ali não há cobra, nem cousa biba nenhuma! Tu não estás voa, com certeza!
– Pois você não vê ali uma cobra
tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos paus e dá botes para
todos os lados. Ai, meu Deus! virou agora num lagarto. E lá vem ele
para cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe... Aquilo é coisa
mandada!
E não pôde dizer mais nada. Caiu
redondamente no chão e entrou a estrebuchar em convulsões medonhas.
Num momento as roupas lhe ficaram em tiras, e ela, com a barriga e as
pernas nuas, torcia-se doidamente pelo chão, a ferir-se no saibro da
vereda.
Os olhos viraram-lhe para trás, a boca torceu-se e dos cantos dos lábios começou a borbulhar uma espuma esverdeada.
– Meu Deus! que é isso que estou vendo? – disse a mãe, tomada de assombro. – Minha filha que é isso? Fala, responde a tua mãe.
Entrementes, Guimarães observava
atentamente todos os movimentos da rapariga e transformações que se
operavam no seu semblante transtornado. Dir-se-ia um médico embaraçado
com um diagnóstico difícil.
Afinal bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior convicção:
– Bocemecê quer saber que tem sua filha?
– Diga, seu Antônio, pelo amor de Deus!
– Sua filha está com o diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.
* * *
Depressa correu por toda aquela
redondeza que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão, estava com o
diabo no corpo; e à sua casa começou a afluir visitas de mulheres e
homens. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso
estranho, e depois que examinavam a enferma, saíam plenamente
convencidos de que a infeliz era presa de um demônio que se comprazia em
torturá-la. E choviam as maldições sobre Pedro Camundá. Pois quem, a
não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?
Na verdade os sintomas da
moléstia eram muito singulares. A barriga começou a crescer-lhe de um
modo espantoso, dir-se-ia em adiantada gravidez, e nas crises agudas ela
torcia-se como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia
obscenidades, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar
durante um ou dois minutos. Nesses momentos, os seus olhos viravam
mostrando somente o branco, a boca entortava, e dela escorria copiosa
espuma.
Outras vezes discutia com o
demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de Caviru.
Insultava-o ou rogava-lhe que a deixasse. Outras ainda a sua voz mudava:
parecia a de uma outra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou
de sentido misterioso.
Vieram muitos curandeiros
visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres fizeram-na engolir drogas
nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que de dia para dia
definhava sobre o catre.
Todos se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Antônio Guimarães estava inconsolável.
* * *
Essa triste situação durou
algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio visitá-la uma
preta velha, que era a sua madrinha de apresentação.
Manuelinha, assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a cruciassem dores pungentíssimas.
Todos se admiraram com o que
estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e disse aos mais que
ficassem tranqüilos, pois ela ia tirar o diabo do corpo de sua
afilhada.
– O coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.
– Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece: a rapariga há de daire um grande bufa.
– É tal e qual, – confirmou tia Maria.
E dizendo isso a preta agarrou a afilhada pelos pulsos e gritou:
– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina? Fala coisa-ruim!
A moça torceu-se toda, porém seus lábios não se descerraram.
– Você fala ou não fala, Caviru?
Nada; nenhuma resposta se ouviu.
– Ah! – disse a preta, – essa
Peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda.
Ah! negro velho caborgeiro, eu bem conheço as tuas maldades! Fazer isso
com a pobre da minha afilhada!
E a velha pôs-se a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.
Daí a pouco trouxeram-lhe a vara de guiné e o galho de arruda.
– Vão agora buscar um gato preto, para o diabo passar para o corpo dele.
– E só quando a rapariga der um bufo é que ele sai.
Enquanto procuravam o gato, tia
Maria amarrava com um largo cinteiro o galho de arruda sobre o roliço
ventre da rapariga, e chegando o gato, ordenou ao Guimarães que o
sugigasse.
* * *
Todos acompanhavam esses
preparativos com o maior interesse, e tia Maria, depois de riscar três
cruzes com o dedo molhado em azeite, sobre os seios da moça, que se
achava completamente nua sobre a cama, pegou da flexível vara de
pau-guiné e gritou de novo:
– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina?
Como das outras vezes nenhuma
resposta se fez ouvir. Então a preta velha vibrou com a vara de guiné
uma forte vergastada nas nádegas carnudas da rapariga.
Manuelinha deu um grande grito e espernegou na cama.
– Anda, peste! – tornou de novo tia Maria. – Quem te meteu aí?
Ainda nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre as carnes da moça.
– Fala, desgraçado! Quem foi que te meteu aí?
E como o demônio se obstinasse
em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos gritos da infeliz
que pinoteava no leito, até que afinal a rapariga, como que fazendo um
grande esforço sobre si mesma, gritou convulsivamente:
– Foi Pedro Camundá!
– Eu nãn lhes havia dito que era aquele estapaire! – disse logo Guimarães.
– Segure o gato, seu Antônio! – exclamou a preta. – Caviru já obedece, agora ele tem que sair, quer queira quer não.
E toca a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! sai maldito!
A moça, já com as carnes todas lanhadas, cada vez gritava mais.
– Segure o gato, seu Antônio! O bicho está aqui, está fora. Segure o gato, seu Antônio!
– Cá o tainho bem preso pelo toutiço.
Entrementes a vara não
descansava. A mãe de Manuelinha segurava-a pelos braços, uma outra
agarrava-lhe as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato
pelo cangote.
De repente a rapariga
inteiriçou-se toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo o seu
ventre, que até então se conservara duro como o diafragma de um zabumba,
emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico,
acompanhado de estrondo, espalhou-se pelo aposento.
– Solte o gato, seu Antônio!
Guimarães soltou o bicho dizendo:
– Eu nãn lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da rapariga, quando ela desse uma grande bufa?
O gato, assim que se viu livre
das garras do ilhéu, ganhou a janela de um salto e a miar como um
desesperado fugiu para o mato com a cauda erguida e o pêlo todo eriçado.
– Vai-te, excomungado; vai-te
para as areias gordas, – gritava tia Maria. – Graças a Nossa Senhora da
Conceição, saiu o diabo do corpo de minha afilhada. Ah! Pedro Camundá!
feiticeiro danado! No inferno tu hás de pagar esta grande maldade. Te,
esconjuro, coisa ruim!
Todos ficaram convencidos de que
o tinhoso escapulira do corpo da rapariga; e, por conseguinte, estavam
terminados os seus sofrimentos.
Efetivamente Manuelinha, caindo
primeiro numa grande prostração, foi depois se restabelecendo a poder
de gordos caldos de galinha, e no fim de algumas semanas estava
completamente curada.
Guimarães, daí a uns seis meses
comprou um pequeno sítio, e lá foi viver com a mulatinha. Dentro de
anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos a
grande bufa que a rapariga soltara, quando o diabo lhe saiu das
entranhas.
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(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.239-251)