quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O defunto

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva.

Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.

Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia!

De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.

E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!

Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do "cadáver" que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?

E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.

- Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão! - Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos; - oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja

E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado' numa gruta profunda.

Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível.

A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, - e sente uma a uma ensangüentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!

Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria..

Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.

Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, - assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.

Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.

Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. - E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos, - nem viv'alma! Apenas sombras.

Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: - Marcha! Marcha! - As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão.

Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva - o defunto caminhava.

De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma idéia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa.

Devia ser tarde; ansiavam por ele. - Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava.

Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo - e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contacto, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam.

No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. - Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se "ele" ali estava oculto contemplando a felicidade do outro "ele"! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse, também seguir-lhes o vôo!...

Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra - e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas.

Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... - Mas ele era cadáver e na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos...

Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo - coragem!

E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...

Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.

* * *

Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.

Pensou, então, no seu sonho - e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.

Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...

* * *

Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol - único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.

Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro - longo como um deserto; a noite inteira - vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber

Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!

O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara! A fome que ela fizera crescer! - E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado.

De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as - e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.

Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.

Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita - e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...
__________________________________________________________________
por Thomaz Lopes
Leia mais...

Carvalhinho

Carvalhinho (Rodolfo da Rocha Carvalho), ator e comediante, nasceu em Recife, PE, em 24/05/1927, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, RJ, em 01/03/2007. Iniciou sua carreira no final da década de 40 no cinema e no teatro, inicialmente como Rodolfo Carvalho.

O Carvalhinho surgiu como seu nome artístico definitivo apenas na década de 60, quando já era conhecido por muitas peças e várias comédias não cinema.

Seus trabalhos mais importantes foram em nenhum cinema: "Dona Xepa" em 1959; "Como ganhar na Loteria Esportiva Sem perder um" em 1971; "O Varão de Ipanema" em 1976, "O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros Contras como Panteras" em 1978; "Bububu não Bobobó" em 1980 e "Irma Vap - O Retorno" em 2006, que foi seu último trabalho.

Ao longo de uma carreira de quase 60 anos ele participou de quase 30 filmes e fez inúmeras peças de teatro, além de ter feito parte do Elenco de humorísticos como "Balança Mas Não Cai" e "Zorra Total".

Ele também esteve presente nas novelas "Deus Nos Acuda", "Da Cor do Pecado" e "Torre de Babel", além da minissérie "Agosto", todas produções da Rede Globo.

Não teatro, Carvalhinho fez sucesso em "A Gaiola das Loucas" ao lado de Jorge Dória, espetáculo com o qual viajaram pelo País todo e também se arriscou como autor, Escrevendo uma comédia "O Amante do Meu Marido", montada no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Carvalhinho passou mal em sua casa após o jantar e mesmo levado às pressas para um hospital na Zona Norte do Rio de Janeiro não resistiu a um ataque cardíaco.

Fonte: Famosos que partiram; Dramaturgia Brasileira - In Memoriam.
Leia mais...

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A vaca premiada

Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que o brasileiro premiado. O inglês, não, nem o francês. Um ou outro recebe qualquer prêmio com modéstia e tédio. Quando deram a Churchill o Nobel de literatura, ele nem foi lá. Mandou a mulher e continuou em Londres, tomando o seu uísque e mamando o seu charuto. O francês ou o alemão também reagiria com o mesmo superior descaro.

E que faria o brasileiro? Sim, o brasileiro que, de repente, recebesse um telegrama assim: — “Ganhaste o prêmio Nobel. Gustavo da Suécia”. Pergunto se algum brasileiro, vivo ou morto, teria a suprema desfaçatez de mandar um representante, como fez o Churchill? Por exemplo: — o meu amigo Otto Lara Resende. Se a Academia Sueca, por unanimidade ou sem unanimidade, por simples maioria, o preferisse.

Semelhante hipótese, que arrisquei ao acaso, já me fascina. O Otto, prêmio Nobel. Que faria ele? Ou que faria o Jorge Amado? Ou o Érico Veríssimo? Eis o que eu queria dizer: — qualquer um de nós iria, a nado, buscar o cheque e a medalha. Nem se pense que faríamos tal esforço natatório por imodéstia. Pelo contrário. Nenhuma imodéstia e só humildade.

A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui, certa vez, a uma exposição de gado. E o júri, depois de não sei quantas dúvidas atrozes, chegou a uma conclusão. Vi, transido, quando colocaram no pescoço da vaca a fitinha e a medalha. Claro que a criança tem uma desvairada imaginação óptica. Há coisas que só a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira e selvagem.

Cabe então a pergunta: — e por que até as vacas brasileiras reagem assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um de nós carrega um potencial de santas humilhações hereditárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas frustrações e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: — não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.

Se não me entenderam, paciência. E tudo nos assombra. Um simples “bom-dia” já nos gratifica. Nunca me esqueço de minha iniciação jornalística. Trabalhei num jornal que não pagava. Mas o diretor, um escroque perfumadíssimo e, insisto, mais cheiroso do que uma cocote, era o gênio do cumprimento. Não passava por um funcionário sem lhe apertar a mão, e sem lhe sorrir, e sem lhe piscar o olho. E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para o faxineiro, a própria remuneração.

Fiz as divagações acima porque assisti, no último sábado, à entrega dos prêmios do Museu da Imagem e do Som. A cerimônia ia ser televisada. Disse de mim para mim: — “Vamos ver se o brasileiro mudou“.

Fiz, preliminarmente, uma breve autocrítica. Eis o que me perguntei: — “Será que estou frustrado, ressentido, humilhado, de não ser um deles?”. Há vinte anos, quando comecei minha carreira, queria ter o meu nome no jornal de qualquer maneira e a qualquer preço. Ah, quantas vezes escrevi sobre mim mesmo. Assinava com um nome inventado e mandava publicar. E, depois, vinha perguntar cá fora: —“Conhece esse sujeito? Escreveu sobre mim. Não sei quem é”.

Pois bem: — e comecei a entrar em todos os concursos de peças, de reportagens, de contos, crônicas, o diabo. Todo mundo era premiado, menos eu. No primeiro ano, segundo, terceiro, eu estrebuchava de humilhação. Por fim, veio um doce e compassivo fatalismo. Repito: — “não ser premiado” é o meu hábito de vinte e tantos anos. (Minto. Outro dia, recebi no Chacrinha o prêmio de melhor cronista esportivo de jornal. E a verdade é que reagi como brasileiro. Escolhi o meu melhor terno, a minha melhor gravata, o meu melhor sapato.

Meia hora antes estava na televisão. Lá encontrei o João Saldanha, também contemplado. Vagando pelos corredores da TV Globo, à espera da nossa convocação, tínhamos, os dois, um ar indubitável de prêmio Nobel).

Volto ao sábado. Sala Cecília Meireles. Como o governo da Guanabara estava ligado aos prêmios, compareceu o governador Negrão de Lima. Ele, em pessoa, faria a entrega. E, para maior ênfase do acontecimento, puseram lá uma banda de música. Um dos premiados era Oscar Niemeyer.

Outro: Glauber Rocha; outro ainda: Pelé.

Dirá alguém que eram prêmios modestos. Não importa.

A vaca já citada recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com uma medalha, e nasceu nos seus dentes toda uma espuma; a gratidão escorria-lhe em forma de baba elástica.

Eis o que me perguntava: — como reagiria Oscar Niemeyer?

(Bato estas notas e sou perseguido por uma obsessão pueril e terrível. Não me sai da cabeça a seguinte cena: — o Otto indo buscar, a nado, o prêmio Nobel). E, de repente, o ator Sérgio Cardoso diz o nome de Oscar Niemeyer. A platéia quase veio abaixo. O nome de Pelé foi muito menos aplaudido. E, no entanto, para o gosto popular, as botinadas estão muito mais próximas do sublime do que a arquitetura.

Na minha casa, eu adulava a minha úlcera com pires de leite. E não entendia mais nada. Por que esse amor súbito e ululante por um arquiteto? Desde quando a arquitetura teve, no Brasil, um Frank Sinatra? Estava vendo a hora em que os presentes, de pé, iam berrar como nos comícios do Brigadeiro: — “Já ganhou! Já ganhou!”. Mas por que essa ovação de Cauby Peixoto? Era a pergunta que continuava sem resposta.

E, súbito, percebo toda a verdade. Não era o arquiteto, era o gênio. O povo não gosta das invenções plásticas de Oscar Niemeyer. Abomina. O que o povo adora é aquele prédio do elixir de Nogueira, ali na Glória, perto do Relógio. O homem comum entende que a casa feita por Oscar Niemeyer não serve para dormir, amar, morrer ou simplesmente estar. Não importa. É gênio.

Pouco depois chegou a vez de Glauber. Outra ovação formidável. O grande público não gosta dos seus filmes, não entende seus filmes. Mas é outro gênio. Chamam-no de maluco. A figura que tenha essa lenda de insânia fascina o povo. Lembro-me de um conhecido que foi ver Terra em transe e veio-me dizer, deslumbrado: — “Não entendi nada”.

Estava gratíssimo ao filme e ao seu autor. O povo desconfia do que entende, desconfia do que gosta. E Glauber Rocha, ao surgir na sala, era uma figura. A cabeleira mais selvagem do que as cerdas bravas do javali. Subiu a escadinha do palco com um passo ágil, elástico, quase alado. Mas nem Glauber, nem Oscar Niemeyer fizeram a concessão de um sorriso. A cara do Niemeyer estava fechada, inescrutável, como certas máscaras cesarianas. (Ah, como o brasileiro precisa ter um gênio à mão. Sim, para apalpá-lo, farejá-lo. A simples existência de um gênio patrício já nos permite um mínimo de auto-estima).

E, por fim, o Luís Carlos Barreto, o formidável animador do Cinema Novo, foi receber o seu. Subindo, disse, à queima-roupa, ao governador: — “O dinheiro já saiu”. E aí, nessa voracidade jucunda, estava todo o Brasil.
[23/1/1968]
______________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Leia mais...