Ao
lado do velho carroção, Berta remota um cachimbo tão velho quanto ela,
que no dizer dos ciganos de sua tribo era tão velha quanto o tempo. No
acampamento, ao lado leste das torres do Castelo de Epsnein, a planície
desdobrava-se num lençol verde, batido àquela hora pela luz do luar.
Berta apertou mais os olhos miudinhos e fitou um ponto negro que
avançava como uma flecha em sua direção. Era Jaino, o coxo, que vinha a
toda brida, trazendo-lhe notícias de Zínara.
A velha cigana esperou que o acólito apeasse e então indagou com a voz roufenha, mais se assemelhando a um lamento fúnebre:
- Então, capeta... onde se mete aquela vagabunda?
Jaino abaixou a cabeça, riscou o chão três vezes em sinal de respeito, com a ponta do polegar, e falou excitado:
- Vi-a entrando no castelo pela porta que dá para o lado do rio. Berta
retorceu o rosto numa expressão indefinida e os cabelos pardos
eriçaram-se. Jaino afastou se temeroso. Sabia que quando aquilo ocorria,
Berta entrava em comunicação direta com os seres das trevas!
Depois, olhando a lua boiando num firmamento muito azul, a velha
praguejou alto e repetiu as palavras misteriosas da cabala. E num assomo
de raiva, berrou para Jaino:
- Vai, desgraçado. Volte para lá e fique vigiando até a hora em que ela sair. Não a deixe vê-lo... e faça como mandei.
Claudicando da perna esquerda, um defeito que trazia de berço, Jaino
azulou imediatamente, curtindo no fundo um sentimento de ódio e
despeito. Também como os demais de sua tribo, era apaixonado por Zínara e
não conseguia resistir aos encantos que sua beleza selvagem expandia.
Aceitara trabalhar de comum acordo com Berta a fim de poder obter a sua
cota de vingança... pois desde há seis meses, quando o grupo se
instalara próximo ao castelo, Zínara dera sinais de fraqueza evidente...
enamorando-se de Robert Wall, filho de Lord de Epsnein. Aquilo motivara
revolta geral no selo da tribo, mas ninguém tinha coragem de
censurá-la... temendo perder suas atenções. Agora, era chegada a hora da
vingança!
Às cinco horas da manhã, Jaino viu o portão abrir-se e por ele deslizar
furtivamente a figura esbelta da bela cigana. E seus olhos arderam de
ódio e o coração ameaçou sufocá-lo enquanto a mão apertava ardorosamente
o cabo de prata do punhal húngaro.
Zínara atravessava agora a metade do campo. Seus cabelos vinham soltos,
soprados pela brisa suave da manhã e os raios da aurora tornavam mais
excitantes sua pele morena, refrescada pela noite que passara nos braços
de Robert Wall.
Jaino lutou consigo mesmo. Sabia o que era preciso fazer... mas
faltava-lhe a força necessária. Bateu duas ou três vezes contra o solo e
invocou a figura de Berta. Quase subitamente, do canto de uma pequena
sebe, viu subir uma labareda arroxeada e sentiu um forte cheiro de
alho... Sabia que Berta estava ali em corpo mental. Em pequenas
convulsões, viu-se repentinamente envolvido pela chama fria e temeu que
fosse perder a consciência.
Zínara estava bem próxima agora. Um instinto secreto advertia-o de que
era preciso agir com rapidez e segurança para evitar qualquer reação da
parte da moça. Uma palavra de perdão que fosse proferida por ela,
quebraria nele as forças do mal que o encantavam. Mas, tal coisa não
aconteceu. O que viu depois de um salto felino e de haver sua mão
mergulhado de duas a três vezes no peito da cigana foram os olhos
vidrarem-se e uma golfada de sangue inundar-lhe o rosto.
Morta, a cigana caiu sem um grito de dor. Seu corpo ficou no chão
estendido, enquanto Jaino fugia a toda velocidade em direção ao
acampamento.
Iniciavam-se os primeiros movimentos da manhã, agitando a vida da
comunidade, quando o rapaz chegou espavorido, banhado em sangue. O
primeiro a vê-lo assim foi Dormik, o tocador de flauta e,
reconhecidamente, o maior enamorado de Zínara.
- Louvado, Jaino! Que houve? Está ferido?
Tomando de súbito pânico, o rapaz negaceou com a cabeça e, sem prestar atenção ao que dizia, afirmou:
- Oh não! Matei Zínara. Está lá no bosque com o peito aberto!
Nada poderia ter maior força do que aquelas palavras que funcionaram
como um impulsionador mágico. Imediatamente toda a tribo foi to-mada de
incontido alvoroço. E ali mesmo, iniciaram o julgamento cigano: os mais
velhos sentaram no interior de um círculo feito a giz, tendo os jovens à
sua volta. A sentença partia do meio do círculo e era atirada contra os
mais jovens em torno.
Movendo os lábios em sussurros, os anciãos discutiam. Depois, de acordo
com o decidido, era atirado para cima um búzio preto ou branco: o
primeiro condenava o acusado à morte; o segundo, bania-o para sempre. Os
dois juntos, ao mesmo tempo, significavam absolvição.
A mente de Jaino estava por demais perturbada para prestar atenção a
esses detalhes e somente quando o búzio preto foi lançado ao ar, pôde
compreender que iria morrer.
Tomado de pânico, gritou por Berta, pedindo-lhe socorro, mas nem uma
palha moveu-se. A velha cigana continuava imóvel, sentada no seu canto
sem mostrar a menor preocupação pela sorte de Jaino.
Ouvindo a risada da turba, Jaino foi levado a uma árvore próxima, no
tombo de um cavalo e tendo a corda passada no pescoço. Num movimento
rápido, o carrasco alçou um galho forte e depois de proferidas as
palavras do Wandor preparou-se para espalmar o animal, deixando o
condenado balançando-se pelo pescoço na ponta da corda. Súbito, alguém
lembrou-se:
- Vamos buscar o corpo de Zínara para que esteja presente à execução!
- Não - gritou Berta - saindo do seu horrível mutismo. - Eu mesma irei.
- Como tu, velha bruxa? Não tens forças nem para...
Berta lançou um olhar gelado sobre o audacioso e ele se catou
enco-lhendo-se acovardado a um canto do grupo. Em seguida, a velha sumiu
na planície. Mas, a impaciência, o ódio e a revolta gerados no coração
da turba não podiam esperar mais. A figura de Jaino era um desafio
brutal às lembranças amorosas destruídas com a morte de Zínara. E por
que mantê-lo vivo por mais tempo? Sim, por quê?
Um par de mãos vigorosas assustou o animal, fazendo-o sair a galope. Um
tranco forte deteve a vítima na ponta do baraço... E momentos antes de
expirar para sempre, ainda viu, surpreso, como os demais, a figura
esbelta da bonita cigana surgindo da planície como se nada lhe tivesse
acontecido... trazendo sobre os ombros o corpo inerte da velha Berta.
Depois, atirando um largo sorriso à todos, a cigana aproximou-se de
Jaino, que já exalava o último suspiro e disse baixinho para que ninguém
a ouvisse:
- Obrigada, Jaino. Agora poderei viver mais cem anos!...
Só então, Jaino reconheceu em Zínara a voz roufenha e cavernosa de
Berta. Mas aí... já era tarde. Tarde demais para arrepender-se!
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por Normam B. Peace