O Policarpo Estevo possuía, para seu trabalho de lavoura, um carro de
bois muito bem feito e duas juntas de bois, uma malhada e outra rosilha,
domados para carro e engenhj. Na época de colonização da Ilha de Santa
Catarina pelos açorianos - em 1748 - já um pouco avançado em anos, o
carro de bois era o veículo que servia para o transporte de casamentos,
batizados, passeios, mudanças, enterros e também para transporte de
mandioca, cana-de-açúcar e lenha para os engenhos de fabricar farinha de
mandioca, açúcar e também para os alambiques.
Numa
manhã de sol ilhéu muito claro, bateram palma no terreiro da casa do
Estevo, que ficava na Ponta das Pedras, atualmente Morro das Pedras,
parte sul da Ilha de Santa Catarina.
Estevo atendeu prontamente. Era o
Zé Jão Santa Cruz, morador da vargem do Queitaninho, um famoso médico
curandeiro, natural de antanho, da Ilha de Santa Catarina, e que
pensava em mudar-se para a Ponta das Pedras.
O
Zé Jão nasceu numa Sexta-Feira Santa às 18:00 horas do dia, sob as
vistas vigilantes da parteira aparadeira, a Sinhá Larica, da Praia
Mole.
A madame História popular
previne que, quando uma criança nasce na Sexta-Feira Santa, deve-se
apanhar um grilo verde, colocá-lo dentro da mão esquerda dela e
apertá-la até o bichinho morrer. Este cuidado, a parteira Larica
cumpriu, e o Zé Jão tornou-se o maior médico curandeiro milagreiro da
Vila do Desterro.
Certa feita, ele havia tomado
parte numa conversa ao pé do fogo de trempe, onde, entre outras coisas
de assombração, falaram que, na Ponta das Pedras, no meio daquele
aglomerado de pedras miúdas que fica entre a Praia das Areias e a Praia
do Mandu - uma delas se destaca em altura e é conhecida como Pedra da
Feiticeira -, bandos de mulheres bruxas metamorfoseadas em ardentes
fachos de fogo dançantes se divertiam a ainda se divertem a valer, após
terminarem as estrepolias que praticavam nas comunidades nas
sextas-feiras às desoras.
Como grande batalhador que era contra o
reino da bruxaria e suas filiadas, o Zé Jão não podia, de forma
alguma, deixar de oferecer combate sem quartel àquelas
mulas-sem-cabeça, petulantes e descaradas, que vinham judiando dos
adultos e das inocentes criancinhas indefesas da Ponta das Pedras, pois
o que ouvira da boca dos comentaristas era simplesmente aterrorizador.
Retirou-se, pensou calmamente no caso, entrou em êxtase captador de
ultramundos e voltou ao ambiente onde as pessoas estavam reunidas
comentando os acontecimentos e afirmou para todos, com voz cortante e
ameaçadora: "Combaterei uma por uma, sem trégua nem légua!" E pensou:
"Pra que eu pratique tal ato piedoso em defesa das pessoas deste lugá,
perciso ter certeza da verdade verdadeira dos fatos que osvi através
dos curados dos mos osvidos".
Na casa do Policarpo, entre as
conversas importantes que o Zé Jão teve com ele, a que mais importância
lhe atingiu foi a conversa ao pé da trempe, quando ele ouviu falar com
relação às atividades bruxólicas ali praticadas por mulheres de poderes
diabólicos muito chegadas ao reino de Lúcifer.
O Policarpo afirmou-lhe, com
precisão incisiva, que a conversa que ele ouvira lá no Retiro da Lagoa
da Conceição era eivada só de verdades verdadeiras das estórias ilhoas,
como nas Ilhas dos Açores, aqui também conhecidas.
Depois de um gole de café tomado
na porta, justamente onde ele estava sentado in riba do portal da
mesma, pois não quis entrar porque estava fazendo muito calor,
ocorreu-lhe um pensamento de alugar uma casa ali na Ponta das Pedras e
mudar-se com a família. O Policarpo prontamente cedeu à vontade dele e
falou-lhe que tinha uma casa de moradia junto a um engenho de farinha,
bem ao lado da saída do caminho velho, na Lagoa do Peri.
Firmaram o negócio, e o Zé Jão
deixou-o apalavrado com sete fios de sua barba como reféns documentários
e partiu de volta para a sua casa lá na Vargem do Queitaninho, no
norte da ilha. Naqueles tempos memoráveis do início de nossa
colonização açoriana, os homens arrancavam um dos fios de sua barba e o
davam como documento em troca de casas, gêneros, animais etc.
Quando chegou em casa, após um
descanso entre goles de café e indagação da família das coisas cá do Sul
da Ilha, o Zé Jão adiantou-se:
- Penso em mudar-me para lá, pois já dexê uma casa apalavrada e assinada com fios de minha barba.
A família concordou e trataram
de preparar o espírito para levarem a cabo a mudança. Passados alguns
dias depois de seu regresso lá daquelas bandas do sul da ilha, ele
recebeu a visita de um cavalheiro bem apessoado com uma montaria muito
bem organizada, que o procurou para curar uma filha de 16 anos, que
estava sendo vítima passiva de um encosto espiritual meio confuso. O Zé
convidou o homem para entrar no seu consultório curandeirista, apanhou
um banco de madeira, ofereceu para seu cliente sentar-se e colocou-se
de prontidão para ouvi-lo.
- Antão, mo sinhôri - indagou o Zé Jão - o que é que faz aqui por esta banda da Vargem do Queitaninho?
Respondeu o seu cliente:
- Me dissero que o sinhô é um
dos maió médico curandeirista de antanho que mora aqui in riba das terra
da ilha de Santa Catarina. Como eu tenho necessidade de pricurá uma
pessoa qui nem o sinhô, que é munto intindido das coisa dos otros mundo,
eu pricurê viajá inté aqui pra mo de consurtá vossa mecê. So Zé Jão,
eu tenho uma fiia de dezasseis ano que tá sendo aperseguida por um máli
munto istranho. Toda noite ela iscuta a voz dum isprito esfomeado que
chama ela pro mato. Só ela osve a voz e sabe o que é que ele qué, mági
não pode contá pra ninguém sinão ele mata ela. Sinhô! Duns tempo pra
cá, ela anda meio desquarada, das perna e barriga inchada e munto
pensativa. Eu tive falando pra minha muié que os isprito e encosto de
agora tão ficando munto otoritaro, pois inté proíbe a gente, que é pai,
de acompanhá as fiias que eles tão usando como veículos povoadô.
O Zé Jão escutou as lamúrias
povoadoras do cliente com muito carinho e apanhou um cigarro papa-terra,
que estava guardado atrás da orelha, acendeu, colocou na boca para
receber a atuação da vontade inspiradora do vago simpático, apanhou um
punhal de prata que estava junto da sua ferramenta cirúrgica
anti-bruxólica, benzeu o cliente no peito e nas costas, bocejou demais
devido à força do malvado encanto de olhado que ele carregava e
diagnosticou com exatidão exata:
- Mo sinhôri, o esprito que
chama sua fiia no mato é pai de seu neto, que vai chegá na sua casa por
estes dias. Ele está viajando há nove meis e uns dôs o treis dia e, a
qualqué hora, ele bate na porta de seu vovô. Trate de arranjá um padre
pra mó de casá a sua fiia, pra que o soneto não encontre o pai chamado
morando no mato ainda, desde o dia em que ele ganhô viage fetal pra
adespôs engajá neste mundo estrambólico.
O homem achou o Zé Jão um grande
adivinho, embora meio envergonhado pela clareza dos fatos expostos,
mas despediu-se muito agradecido. Como o tal homem morasse na Ponta das
Pedras, Zé Jão aproveitou a oportunidade para pedir-lhe que ele
transmitisse um recado ao Policarpo pra mó de vir na Vargem do
Queitaninho buscar-lhe a mudança para a Ponta das Pedras. Um detalhe,
porém: ele esqueceu-se de pedir ao homem avisar ao Policarpo que não
fizesse a viagem durante a noite, para evitar aborrecimentos bruxólicos.
O Policarpo recebeu o recado de
Zé Jão com muito carinho, chamou o Cipriano da Muca, jungiram os bois à
canga do carro e, às sete horas da noite, partiram rumo à Vargem do
Queitaninho. O Policarpo pôs-se de chamador na frente dos bois, calçado
de tamancas e com uma aquilhada muito comprida sobre o ombro, enquanto
que o Cipriano, também de aguilhada em punho, pôs-se de gajeiro atrás
do carro. Entraram pelo caminho de Mato Dentro, Lagoa do Jacaré,
viajando sem novidades; porém, logo que começaram a descer o morro do
Badejo, avistaram uma porção de chamas de fogo boiando nos ares que se
deslocavam na direção deles. De repente, aquele mundo de fogo se jogou
dentro do carro de bois. Num repente, o chamador e o gajeiro acharam-se
metamorfoseados em bois, orelhas (1) furadas, uma corda amarrada em
cada furo e jungidos à canga. Os bois dentro do mesmo, guiando-os como
se fossem criaturas de argila humana crua com cérebro e tudo. Isto
significou os fabulosos poderes do mal, donde o Policarpo e o Cipriano, o
chamador e o gajeiro, metamorfoseados em bois e os bois
metamorfoseados em Policarpo e Cipiano, através do poder quase
ilimitado de mulheres bruxas, que enfeixam, na sina de seus poderes
diabólicos, as leis rubras do Reino de Satanás.
Depois delas haverem judiado
muito com eles por caminhos tortuosos, buracos, subidas de morros,
abandonaram-nos lá na única praia da Lagoa da Conceição, hoje sepultada
com barro, asfalto e lajotas, com quatorze sepulturas com cruzes de
coqueiros. Ali o Policarpo e o Cipriano perderam o encanto acidental e
os bois também, sentados na areia da praia da ex-praia única da Lagoa da
Conceição. Entreolharam-se, benzeram-se, rezaram o Creio em Deus;
embora muito abatidos física e moralmente, tomaram depois o caminho do
Canto da Lagoa e mandaram-se para a casa.
Ao chegaram em casa, bateram na
porta e avisaram para a pessoa que os atendeu que não acendesse luzes e
que aguardasse um pouquinho a razão, pois logo em seguida a
comentariam.
É crença popular que, quando se é
atingido por assombrações e consegue-se fugir dos seus poderes
mortíferos, ao se procurar abrigo, este não deve receber a vítima com
luzes acesas.
Durante a noite, eles tiveram
pesadelos horríveis e, até certo ponto, difíceis de criaturas humanas os
analisar. Enquanto eles sofriam essas horríveis torturas em suas casas
aqui na Ponta das Pedras, o Zé Jão, lá na Vargem do Queitaninho,
também não foi dispensado. Durante a noite, o bando de megeras mulheres
bruxas pintaram o Judas por riba da casa dele, das matas, com os
animais que berravam, cães que latiam e uivavam, galos que cacarejavam,
cavalos que relinchavam, sapos que coaxava, rasga-mortalhas que voavam
e deixavam no ar rasgos de agoiros predizendo a presença da morte.
A casa do Zé Jão, nem a família
dele, nem nada que lhe pertencia foram atingidos pela vingança
bruxólica das megeras bruxas que, ele bem sabia e tivera conhecimento,
estavam infestando a Ponta das Pedras. Dormiu descansado e, no dia
seguinte, montou o cavalo e partiu para a casa do Policarpo. Ora, é
lógico, curandeiro inato que era, espiritualmente ele tomou
conhecimento, durante a noite, de tudo o que havia passado sobre sua
casa e com os dois amigos, o Policarpo e o Cipriano.
Ele sabia, ora se sabia, e tinha
plena certeza de que as megeras estavam preparando uma cilada para
derrotá-lo. Isto porque sua bisavó, há muitos anos, lhe havia avisado,
pois quando ela ainda era bruxa, tomou parte de uma reunião bruxólica,
nos rochedos da Ponta das Garças, Praia da Joaquina, que foi convocada
especialmente para tratar do seu prestígio curandeiro aqui no Desterro.
A velha havia sido uma autêntica
bruxa, parte nos Açores e parte aqui na Ilha, pois ela mudou-se para
cá com aproximadamente vinte anos de idade. Para sua felicidade, ela
foi apanhada numa armadilha feita com um baú de folha de flandres e uma
vela benta na Sexta-Feira Santa, ocasião em que perdeu a triste sina
do fato.
Vamos ao caso.
O Zé Jão apareceu na casa do
Policapro urrando que nem leão ferido. Cada uma das vítimas apresentou
suas queixas contra os fatos acontecidos e juraram vingar-se das
megeras.
O Zé Jão, ao anoitecer, apanhou
um pouco de mostarda e colocou-as no bolso da calça; na boca colocou um
dente de alho vestido com a casca e partiu, muito seguro, para junto
das Pedra de Feiticiera da Ponta das Pedras.
Num repente, quando ele se
aproximou da pedra e olhou-a de frente, notou que ela ficou coberta de
chamas e luzes de várias cores e formas do mundo objetivo das coisas que
fandangadeavam, cachimbavam, uivavam, latiam, lancinavam, gargalhavam,
debochando da presença dele ali.
A princípio o Zé Jão se
acovardou com o quadro sinistro e aterrorizador diante de seus olhos
humanos, embora de um curandeiro de alta capacidade espiritual,
protegido pelas virtudes milagrosas curandeiristas naturais ganhas de
sua madrinha parteira aparadeira, através do sacrifício e morte de um
inocente grilo verde. Antes de iniciar o combate para enfrentar corpo a
corpo a luta contra o poder das chamas diabólicas do inferno que se
haviam colocado em riba da Pedra da Feiticeira, ele pensou sete vezes
por onde devia iniciar. Sim! Recuperando as forças físicas num pialo,
meteu a mão no bolso da calça, apanhou as mostardas e atirou-as contra o
fogaréu bruxólico, que, num abrir e fechar d´olhos, se extinguiu
rapidamente. E o que aconteceu? O resultado foi o de um bando de
mulheres nuas enfeitando as pedras pequenas onde ele se achava e
pedindo-lhe clemência e proteção, à moda ilhoa. Entre o bando das
ex-bruxas, estava uma, que havia sido namorada do Policarpo e depois
noibv durante sete anos.
O Policarpo deu uma gola nela
numa festa do Divino da Freguesia do Ribeirão. Ela já era bruxa quando
foi namorada dele, porém ele não sabia e nem desconfiava. Devido à gola
dada por ele, ela procurou vingar-se e justamente na ocasião em que ele
mais o Cipriano dirigiam-se à Vargem do Queitaninho para apanharem a
mudança do Zé Jão para a Ponta das Pedras, atualmente Morro das Pedras.
Ela sabia, e isso ela comunicou para a sua chefe, que o Policarpo está
interessadíssimo em trazer o Zé Jão cá pro sul da Ilha, com a
finalidade exclusiva de dar-lhe combate.
Com o alcance dessa vitória, o
Zé Jão firmou-se no conceito das comunidades ilhoas desterrenses com o
título de maior médico curandeiro até então acontecido aqui nesta ilha
(já denominada) de Iurumirim, Los Perdidos, dos Patos, de Nossa Senhora
do Desterro, de Santa Catarina de Alexandria e dos muitos discutidos
casos e incomparáveis ocasos raros.
(1) Segundo o depoimento de
várias pessoas consultadas, a junção entre os bois de uma parelha se faz
não pelas orelhas mas pela ponta das aspas, o que favorece a hipótese
de um equívoco do narrador (O. Furlan)
Franklin
Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15
de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista,
ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo
da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo
aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma
linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu
trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos.
Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.
Fonte:
http://contosassombrosos.blogspot.com