sábado, 10 de setembro de 2011

Balé de mulheres bruxas

Depois de haverem chupado muito sangue de inocentes criancinhas, sem serem molestadas por benzedeiras, armadilhas e outros, esta caterva de mulheres resolveram comemorar a vitória diabólica, com uma dança de balé bruxólico no Morro do rapa no exremo norte da Ilha de Santa Catarina, sobre a batta rubra do ex-anjo Lúcifer.

Afirma a Madame Estória, que as mulheres bruxas possuem uma inteligência excepcional, a qual elas usam sempre para ludibriar o homem de argila humana crua.

Por isto, elas vivem às turras com benzedores, armadilhas e outros, desde os séculos dos séculos.

Madame Est'toria vê,
O sinistro Lucifer
Bispando o lote de bruxas,
Que está dançando balé.

Após haverem chupado
Muito sangue de criança,
Estas bruxas elegantes,
urdiram esta Festança.

O balé que elas usam.
É o balé da bruxaria.
Marcado nas horas mortas,
Quando vem o fim do dia.

Hó! minha Ilha encantadora,
Meu fraco é sempre te amar.
Pois tu és catita bruxinha
Que repousa sobre o mar


Franklin Cascaes
Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com
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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A fraldinha ameaçadora

Bateu o telefone para a casa da menina:

— Por obséquio. Abigail está?

Veio a resposta sucinta, inapelável.

— Viajou.

Disfarçou a angústia: “Sabe quando volta?”. E a pessoa:

— Não sei informar.

Desligando o telefone, ele não teve dúvida: aquilo não era viagem, não era nada, era fuga, fuga desesperada, talvez definitiva. E, então, apertando a cabeça entre as mãos, ele chorou alto, chorou forte. Na boca da velhice, com mais de quarenta anos, casado, pai de filhos, apaixonara-se por uma menina de dezessete anos. E esse amor de grisalho por uma adolescente foi, para ele, um contínuo dilaceramento.

Médico, largou a clínica. Despachava os clientes, com a seguinte franqueza: “Não sei receitar nem Melhoral”. E o pior de tudo, o patético, é que a menina retribuiu, com a violência de um primeiro amor. Houve alguns beijos, e a pequena, que vinha de um colégio interno, suspirava fechando os olhos:

— Eu não sabia que beijo era tão bom.

HISTÓRIA DE AMOR

Quando começara aquilo? Um mês atrás, Abigail aparecera no seu consultório com Eleonor, uma cordialíssima solteirona que era uma antiga cliente de Genival. Bastou um primeiro olhar e pronto. Pensou, com o coração batendo mais forte: “Vou me apaixonar por essa pequena”. A sala de espera estava apinhada de clientes, a maioria dos quais de hora marcada. E, então, Genival tratou de reter Abigail, de envolvê-la como se esse primeiro encontro fosse também o último. O caso clínico da garota era o mais banal, e, por assim dizer, inexistente. Mas Abigail só saiu de lá duas horas depois. Quando elas se despediram, ele, transpirando de dor de cabeça, chamou a enfermeira: “Não atendo mais ninguém”. Sentou-se na cadeira giratória, apertou a cabeça entre as mãos e refletia: “Estou apaixonado”.

No dia seguinte, em pleno expediente do consultório, recebe um trote. Seu coração dispara, quando reconhece a voz: era Abigail. Passa quarenta e cinco minutos no telefone. Passa quarenta e cinco minutos na veemência e na inépcia de um ginasiano. Saiu do telefone e, ao atender um doente grave, bufa:

— Eu estou mais doente do que você!

DOENÇA

Durante quinze dias puderam esconder seu desesperado amor. Encontravam-se e passeavam nas horas menos suspeitas, quase sempre pela manhã. Ele, sôfrego, teorizava: “Uma mulher pode fazer o diabo às dez horas da manhã. Ninguém desconfia que se possa pecar tão cedo!”. Ria da própria pilhéria. Pelo espaço de duas semanas, viveu para essa paixão de quase velho. E, súbito, a família da pequena descobre tudo.

Abigail tinha um desses pais à antiga, duma cólera imensa e teatral. Primeira medida do velho: encerrar a pequena no quarto. E avisou: “Você não me sai do quarto nem para comer!”.

Genival quase enlouquece. Telefonava cinqüenta vezes por dia, com uma obstinação de possesso. A princípio diziam: “Saiu”, ou “Não pode atender”. Por fim, o próprio pai de Abigail, com uma dignidade irresistível, ameaçou-o: “Dou-lhe um tiro!”. Como um miserando, Genival ia rondar a casa da pequena alta madrugada. Reconhecia, de si para si: “Sem essa pequena, eu não vivo!”.

Resiste, sem telefonar, uns dez dias. No décimo primeiro, entra num café, liga para a casa de Abigail e sabe que ela “viajou”.

Sofreu tanto que chegou a pensar no suicídio. Súbito, ocorre-lhe um nome: Eleonor, a solteirona, que era sua amiga e de Abigail. Foi bater na porta de Eleonor. No começo, a outra resistiu. Mas acabou cedendo ante suas lágrimas de homem. Disse:

— Embarcou para o Canadá ontem.

Ele apanha a mão da solteirona e cobre de beijos, numa gratidão de louco.

CANADÁ

Quando saiu da casa de Eleonor, levava, no bolso, um papelzinho com o endereço completo. A garota viajara sozinha; ia residir no Canadá com uma família conhecida. Aconteceu, então, o seguinte: Genival passou o consultório adiante; vendeu o automóvel; e, uma semana depois, partia. Eleonor foi levá-lo ao aeroporto. E, lá, antes de entrar na fila de passageiros, Genival baixa a voz:

— Por essa pequena vou ao crime! Ao crime!

Eleonor não fez nenhum comentário. Doeu-lhe, porém, não ter inspirado, nunca, uma paixão assim.

RETORNO

Genival abandonara esposa, filhos, profissão. Para a mulher, foi o mais lacônico possível: “Não sei quando volto, nem se volto”. Ela, que era uma senhora de brio, ergueu o rosto, impassível, inescrutável: “Perfeitamente”. E ninguém soube, a não ser Eleonor, que ele estava no Canadá, enlouquecido de amor.

Três meses depois, na avenida, a solteirona dá com Genival na esquina de São José, colocando um cigarro na piteira. Aproxima-se, espantadíssima:

— Voltou?

E ele, remoçado, com uma alegria sã no olhar e no sorriso, exclama: “Olá! Como vai essa figura?”. Explicou que chegara há um mês e que recomeçara a clínica. Atônita, a solteirona indaga: “E aquele caso?”. Riu de novo, recuperado:

— Aquilo acabou.

Em pé, na calçada, a solteirona não soube o que dizer, o que pensar. Ela, que não inspirava sentimentos nem efêmeros, nem profundos, sofria com a morte do amor alheio. Despediu-se do médico. E, subitamente, a criatura humana parecia-lhe vil. Durante algum tempo, ainda pensou no caso. E já o esquecia, quando de repente batem na porta. Vai abrir e recua, num assombro ainda maior: era Abigail. Antes de entrar, antes mesmo de um cumprimento, a pequena soluça:

— Vou ter neném, meu Deus!

FUGITIVA

Muda, taciturna, a solteirona ouviu toda a história. Genival surpreendera Abigail em pleno Canadá. Tudo que parecia tão difícil no Brasil tornou-se monstruosamente fácil no estrangeiro. Ela ainda perguntou, por entre lágrimas: “Tu não me abandonarás nunca?”. Genival prometeu, num desvario: “Nunca!”. Mas a primeira tarde que passaram juntos foi também a derradeira. Eleonor balbuciou:

— Por quê?

E Abigail, assoando-se no lencinho: “Não sei. Ele não quis mais”. E, de fato, Genival se desinteressava, num tédio súbito, irresistível e mortal. Dois dias depois, sem uma palavra, um bilhete, um recado, embarcava para o Brasil.

Um mês e meio depois, Abigail vai ao médico. Soube que ia ser mãe. Enquanto pôde esconder seu estado, muito bem. Mas chegou um momento em que a coisa se tornou evidente. Fora de si, fugira para o Brasil. Agarrou-se à solteirona:

— Ninguém sabe que eu voltei. Se papai descobrir, me mata!

Eleonor pousou a mão na sua cabeça:

— Ninguém saberá. E vamos fazer o seguinte: você fica aqui, e quando o guri nascer eu tomo conta.

O MENINO

Assim se fez. E é justo que se diga: Eleonor foi incomparável. Durante vários meses, desvelou-se ao lado da amiga mais moça. Por vezes, Abigail perdia a cabeça, sem compreender o abandono de Genival: “Por quê?”. E ela própria respondia: “Com certeza me achou sem graça, inexperiente, muito criança!”.

Chorava tanto que, um dia, a solteirona perdeu a paciência; foi, até, grosseira:

— Ora, não amola! Você teve muita sorte! Eu, nunca — ouviu? —, nunca tive ninguém que gostasse de mim. Nem solteiro, nem casado, nem viúvo — ninguém! — Pausa e continua, ofegante: — Tenho inveja de ti. E te digo mais: eu daria tudo para ter um filho, para ser mãe!

Passou. Até que, um mês após, nasce a criança. A solteirona debruçou-se para ver o garoto, como se ele fosse um menino-deus. Dizia, com um olhar de fanática: “Que vontade de apertar, de morder, meu Deus!”. Quanto a Abigail, espiava só, assustada com esse filho ilegítimo e lindo, que varava as noites, chorando, com dor de barriguinha. Mas, enfim, agora que tinha o corpo antigo, a cintura de menina solteira, Abigail suspirou:

— Já posso aparecer à minha família. Você vai ficando com a criança e eu passo aqui, de vez em quando.

SOLTEIRONA

A volta da pequena, que a família julgava morta e enterrada, foi um episódio de folhetim barato. O próprio pai esqueceu-se dos seus escrúpulos severos: soluçava como uma criança. Esse carinho universal deu coragem a Abigail. Uma semana depois, num rompante, contou que dera à luz um menino. O velho foi magnífico. Com uma voz cheia, de barítono, anuncia: “Pode ser filho natural, pode ser o raio que o parta. Mas é meu neto e está acabado”. Delirante, Abigail liga para a solteirona. Pede: “Apanha um táxi e traz meu filho. Já, sim?”. Então, Eleonor pôs-se a gritar:

— Teu filho, como? É meu! Só meu!

Mãe, pai, irmãs de Abigail desfilaram pelo telefone, fazendo apelos desesperados. Eleonor berrava: “Ninguém me põe a mão na criança!”. Justamente, estava mudando a fraldinha do bebê quando tocava o telefone. Fez a ameaça: “Se vocês quiserem tomar o guri, sabem o que eu faço? Estrangulo meu filho na própria fraldinha. E, assim, nem meu, nem de ninguém!”. Terminou perguntando: “O filho é meu ou teu?”. Abigail, alucinada, vira-se para a família: “Respondo o quê?”. O velho avô apanha o telefone:

— O filho é teu! — Soluça: — Deus o abençoe!

Eleonor desliga o telefone. Encosta a fralda úmida, apanha outra, limpa.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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A grinalda

Bateu o telefone para o namorado:

— Preciso falar muito contigo!

— Quando?

— Já!

Admirou-se:

— Mas são dez horas da noite, minha filha! — E insistia: — Tarde pra chuchu!

— Não faz mal. Converso contigo no portão e pronto. Vem já, ouviu? Apanha um táxi!

Impressionado, Elesbão ainda quis saber: “Alguma novidade?”. Ela foi sumária:

— Houve um bode tremendo aqui em casa. Papai está subindo pelas paredes! Chispa, meu filho, chispa!

CONFISSÃO

Elesbão tinha nos bolsos uns vinte e cinco cruzeiros. Gastou quinze no táxi, e dez minutos depois saltava na porta da pequena. Foi encontrá-la nervosíssima, torcendo e destorcendo as mãos. O rapaz fez espanto: “Qual é o drama?”.

Conversaram, ali, no portão. Ela falava por entre lágrimas:

— Papai andou tomando informações a teu respeito. Soube várias coisas tuas, inclusive que não tens emprego e outros bichos. Mas o pior é que disseram a meu pai, garantiram, que tu tomas dinheiro de mulher.

Espalmou a mão no peito:

— Eu?

— Você, sim!

E ele, trêmulo:

— Mas que blasfêmia!

Odete crispa a mão no seu braço: “Não faz literatura! Quero saber, de ti, o seguinte: isso é verdade? Responde!”.

Balbuciou: “Mas oh! Odete! Até você?”. No seu desespero, Odete atraca-se com o namorado; quase boca com boca faz o apelo:

— Tua palavra só não basta. Quero um juramento. Mas um juramento batata! — Pausa e, sem desfitá-lo, pergunta: — Tu és capaz de jurar, pela vida de tua mãe, que isso é calúnia, que nunca levaste dinheiro de mulher?

Elesbão tomou-se de uma palidez mortal, como nos velhos romances. Quer falar e não pode. E, súbito, explode em soluços:

— É verdade, sim! Tomo dinheiro de mulher! Sempre tomei! E, agora, cuspa na minha cara, cuspa!...

E, com efeito, oferecia, histericamente, a face. Ela não teve um gesto, uma palavra. Pela primeira vez, via um homem, um adulto chorar como uma criança. Finalmente, crispou-se de pena. Afagou-o nos cabelos, no rosto.

— Coitadinho! Coitadinho!

A OUTRA

Quando ele ficou mais calmo, Odete suspira: “Agora você vai me contar tudo, tudinho!”.

Justiça se lhe faça: Elesbão contou realmente tudo, não escondendo absolutamente nada. Seus amigos o chamavam, com um bom humor e justiça, de “inimigo pessoal e intransferível do trabalho”. Jamais tivera um emprego, um biscate. Forte e bonito, com um perfil cinematográfico, inspirando paixões e provocando suicídios femininos — tinha sempre uma, duas, três mulheres.
Ultimamente, tinha uma pequena fixa, uma tal de Vanda, que o subvencionava regiamente. Ao mesmo tempo que exigia exclusividade, Vanda o vestia da cabeça aos pés. Todas as suas meias, ternos, sapatos, cintos eram presentes de Vanda. Ela o vestia da cabeça aos pés; e mais: dava-lhe uma mesada de quinze mil cruzeiros, fora os extraordinários. Por um momento, Odete esqueceu o aspecto moral da questão para admirar a generosidade da outra:

— Mas quer dizer que essa cara tem muito dinheiro, não tem?

Ele estufa o peito:

— Se tem! Ganha um dinheirão. Ainda agora passou um mês em São Paulo. E, com esse negócio de IV Centenário, fez, em trinta dias, uns cento e cinqüenta mil cruzeiros com um pé nas costas!

— No duro?

— No duro!

GRANDE AMOR

Encerrada a confissão, o rapaz agarra-se à pequena: “Agora que sabes de tudo, eu te pergunto: tu ainda gostas de mim? Tu me perdoas?”. Houve, então, uma cena de alto patético. Aninhada nos seus braços, Odete dizia e repetia:

— Meu filho, eu sou da seguinte teoria: o homem que diz a verdade, que não esconde nada, deve ser perdoado. O que eu não gosto, não topo, é fingimento, hipocrisia!

Ele aproveitou o ensejo e deu-lhe um beijo voraz na boca. Odete suspira: “Ih! você comeu todo o meu batom!”. E, então, na sua euforia, o namorado toma uma resolução heróica:

— Vou chutar a Vanda, compreendeu? E tratar de arranjar um emprego. Você pode ficar certa do seguinte: de agora em diante sou um sujeito decente... pra todos os efeitos!

O RENEGADO

Dali, Odete correu ao pai. Explicou, por outras palavras, que o namorado era um ex-canalha e que estava totalmente regenerado. O velho coça a cabeça: “Veja lá, minha filha, veja lá!”. Odete reservara para o fim o grande apelo:

— Bem, papai. E sabe quem é que vai salvar a pátria? O senhor!

Tomou um susto.

— Eu? E como?

Simplificou:

— Arranjando um emprego. Arranja, não arranja? O senhor tem muitas relações, papai! Isso é café pequeno para o senhor!

O velho, que era louco por aquela filha, prometeu que arranjaria, sim. Quando o namorado apareceu, ela correu para ele, de braços abertos: “Tudo resolvido, tudo!”. Contou-lhe a promessa. Elesbão ouviu a notícia, calado, jururu. Por fim, geme: “Tu não sabes do pior”. Referiu que telefonara para Vanda, rompendo. Odete indaga: “E ela?”. Elesbão pisa o cigarro, que deixara cair:

— Ela fez, no telefone, um banzé que só você vendo! Quer a devolução de todos os ternos, camisas, sapatos, o diabo! Diz que onde me encontrar vai passar a gilete na minha roupa! Estou num mato sem cachorro!

Essa ferocidade causou na pequena um misto de deslumbramento e náusea. Pensa um pouco e sugere:

— Sabe qual é o golpe, meu filho? Presta atenção: por enquanto você não briga. Deixa o barco correr. Vamos dar tempo ao tempo.

O EMPREGADO

Uma semana depois, o velho aparece com a noticia: “Arranjei o emprego!”. Mas quando Elesbão soube do ordenado — mil e Oitocentos cruzeiros — caiu das nuvens: “Com esse salário, eu não posso nem te pagar um Chicabon!”. E, diante da pequena, tem uma explosão:

— A tragédia do homem é que vive numa sociedade baseada no trabalho! Ninguém devia trabalhar, ninguém devia fazer nada, todo mundo devia viver de papo pro ar!

Odete deixa passar um momento e suspira: “Pois é, meu filho! Por isso é que eu te disse, não foi? Pra não brigar já”.

De qualquer maneira, Elesbão teve que tomar posse do tal emprego, para não desgostar a família da pequena. Dois dias depois, ficam noivos. E, então, Odete vira-se para ele: “Olha, meu anjo: eu quero um vestido de noiva daqueles, que deixe todo mundo com cara de tacho. Estive vendo um modelo que deve ficar por uns cinqüenta contos. Ora, meu pai está meio bombardeado. De forma que é você mesmo quem vai dar o jeito”.

Elesbão esbugalha os olhos: “Cinqüenta contos? Mas eu só ganho um e Oitocentos!”. Sem olhá-lo, de perfil para ele, Odete simplifica:

— Você sabe onde buscar o dinheiro.

O VESTIDO

Recorreu a Vanda. Mas como era uma quantia maior, teve que contar a verdade. Vanda comoveu-se: “Pra tua noiva, eu dou. Tenho ciúmes de outras mulheres. Mas de noiva, esposa, não”.

O fato é que Elesbão apareceu com o cheque de cinqüenta mil cruzeiros. A própria Odete foi ao banco, receber; na volta, chama Elesbão: “Telefona, aqui, já, na minha frente, para Vanda. Diz que está tudo acabado entre vocês”.

Espantado, ele obedece. Desta vez, Vanda limitou-se à ameaça vaga:

— Espera a volta.

Foi só. O casamento pôde ter lugar apesar do ordenado de mil e Oitocentos cruzeiros, porque Elesbão teria casa, comida e roupa lavada dos sogros. Quando chegou o grande dia, houve a cerimônia civil às onze horas. E, à tarde, no seu fabulosíssimo vestido de noiva, Odete saiu de casa para tomar o automóvel. Mas, ao pôr o pé na calçada, uma mulher bem vestida barra-lhe o caminho: “Eu sou a Vanda!”.

Odete estaca. E, então, a outra passa-lhe a mão na altura do seio e rasga o vestido de alto a baixo. Em seguida, arranca e atira no chão a grinalda. Odete pôs-se a gritar, numa histeria medonha. Quiseram segurar a agressora.

Como uma possessa, Vanda sapateava em cima da grinalda.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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