sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O palavrão humilhado


Quando vou ao Galeão, só uma figura me impressiona.

Lá, chegam e partem reis, presidentes, rajás, grã-finos, ministros, Jorginho Guinle, velhas internacionais. Só não vi, no Galeão, um mandarim. E é, convenhamos, todo um elenco fascinante. Mas falei na figura que mais me impressiona e aqui está seu nome: — a aeromoça.

A jovem que resolve ser aeromoça está fazendo uma opção profissional desesperadora. Bem sei que a aviação progrediu muito etc. etc. Todavia, no caso da aeromoça, a opção profissional não será bem profissional. É como se ela estivesse preferindo morrer. Para a aeromoça, cada dia pode ser a véspera do fim. Vejo-a passar por mim no Galeão. Seu olhar tem a doçura de um adeus. Sim, ele pode estar-se despedindo da paisagem.

Não sei se as aeromoças são bonitas. Diz o Otto Lara Resende: — "O Brasil é o único país onde as feias são bonitas". Seja como for, elas têm um patético irresistível. São íntimas da morte. E sua graça parece mais leve, mais efêmera, mais perecível que a das outras. Ah, quando vejo uma delas, sonho: — "Essa vai morrer cedo".

Pode parecer uma obsessão pueril (e talvez o seja). Mas eis o que eu queria dizer: — as nossas esquerdas atuais sugerem a impressão inversa, isto é, de que vão morrer tarde, muito tarde. Pelo amor de Deus, não vejam ironia, mesmo porque tenho vários amigos na "festiva". A verdade é que a segurança das nossas esquerdas está acima de qualquer ameaça ou dúvida.

O brasileiro simples formou do esquerdista patrício uma imagem inteiramente irreal. O pai de família imagina que um socialista tem uma barricada em cada bolso. Eu próprio, no 31 de março e no 1º de abril de 64, andei tecendo fantasias hediondas. Imaginava que o sangue jorraria e que as ratazanas iam sair dos ralos para bebê-lo. E não se derramou nem groselha.

Só muito depois descobria eu a verdade, que é a seguinte: — as nossas esquerdas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa da segurança. Ainda ontem, falava eu da sábia distância que vai do Antonio's ao Vietnã. Aí está dito tudo. E, assim, sem arredar pé do Antonio's, e bebendo cerveja em lata, as esquerdas não morrerão jamais.

O leitor há de perguntar, com irritação e escândalo: — "Mas elas não fazem nada?". Responderei: — "Fazem".

Insistirá o leitor: — "E fazem o quê?". Direi: — "Auto-promoção". É a pura verdade. A esquerda não sai por aí, derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, porque está ocupada em se auto-promover.

Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. O "grande poeta", o "grande crítico", o "grande ensaísta", o "grande romancista", o "grande dramaturgo" — são membros da "festiva". Gustavo Corção acaba de publicar um grande livro. É toda uma meditação maravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, em lugar nenhum, uma linha, uma vírgula, nada. A imprensa, as câmeras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra de Corção.

É inédita essa capacidade promocional das esquerdas.

Elas ocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue da burguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seu exclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com um piparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exerce, na melhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacionário? Silêncio em cima dele.

Ainda ontem, um revisor veio-me pedir emprego. Tem mulher, filhos, e contou o seu drama. Trabalhava num grande jornal, mas cometeu a imprudência suicida de elogiar os Estados Unidos. Não sei por que, ou por outra: — lembro-me agora. Disse ele que uma peça, ora em exibição em Nova York, insinuava que o presidente Johnson e senhora eram assassinos, ou co-assassinos, de Kennedy. E, por isso, concluía o revisor que havia liberdade nos Estados Unidos.

Foi despedido, sumariamente.

Vejam como as esquerdas têm poderes para admitir, ou demitir, nos jornais, rádio e TV. Dominando em todas as artes, não podiam deixar de fora o teatro. (Na pintura, aquele que não for da "festiva" terá menos imprensa de que um cachorro atropelado). E, no teatro, as esquerdas descobriram o palavrão.

Pasmem para as ironias da vida literária e dramática.

Durante dezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno do teatro brasileiro. Minhas peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados foram interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém. Lembro-me de que Álvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou, por outras palavras, o seguinte: — eu saíra da literatura e era agora um "caso de polícia". No mais, nem estudantes, nem escritores, quando passavam por mim, concediam a graça de um "oba".

O dr. Alceu, em declarações a O Globo, aplaudia a minha interdição. Sempre que se referia a mim dizia, enojado: — "As peças obscenas de Nelson Rodrigues".

O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro, nem Senhora dos afogados tinham um único e escasso palavrão. Eu viria a usá-lo muito mais tarde. E, no entanto, montou-se, a meu respeito, todo um folclore medonho.

Segundo corria à boca pequena, eu, todos os dias, depois do almoço, fazia a sesta num caixão de defunto. E as esquerdas tinham, dos meus textos, uma repugnância total.

Súbito, elas descobrem o palavrão, ou especificando: — o palavrão no teatro. Já o usavam no romance. Mas a pornografia do livro se dirige a um único e íntimo leitor e morre numa relação individualíssima e secreta. Ao passo que no teatro o palavrão é declamado para duzentos, quatrocentos, oitocentos.

Se bem entendi, as esquerdas querem chocar a platéia. É preciso que esta não fique, nas cadeiras, comendo pipocas.

O bom teatro tem de ser agressão. Muito bem, ótimo. Nada tenho a objetar. E fui ver, sábado, o Rei da vela, dirigido por meu caro e simpaticíssimo José Celso. Trata-se do grande diretor do momento. Do mesmo modo que o Plínio Marcos está sendo representado em todos os palcos, o José Celso parece dirigir todas as peças. A do Chico, por exemplo, é dele.

Preparei-me para ser testemunha e vítima da agressão.

Durante todo o espetáculo, não fiz outra coisa senão esperar. Diziam que o texto e o espetáculo eram um soco na cara. E eu estava lá para ver e receber o soco na cara. No fim de duas horas e meia, saímos, eu e os outros, intactos. Éramos quatrocentos sujeitos e não havia, entre nós, um único e vago agredido. O novo teatro conseguiu desmoralizar o soco na cara. O palavrão, antes, tinha suspense, tinha mistério, tinha espanto. E a audiência do Rei da vela saía arrotando a sua satisfação burguesa.

Por aí se vê como falhou o sonho de uma platéia esbugalhada, horrorizada. Imaginem que, no segundo ato, um dos personagens solta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas do Bocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de a platéia arrancar os cabelos ou subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. E, no entanto, vejam vocês: — os presentes, de pé, aplaudiam, aos vivas.

Essa apoteose súbita e feroz frustrou, ofendeu e humilhou o pobre palavrão.

[31/1/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Álbum de Verão - I

Ivo em BCBC 270014P1050002P1050027P1110015Ivo em Balneário Camboriú
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Balneário Camboriú - SC , um álbum no Flickr.

Algumas fotos das temporadas de verão de Balneário Camboriú - SC, de 27/12/2008 a 5/1/2011.

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O segredo da guilhotina

Às 7 horas da noite de 5 de junho de 1864, o Dr. Edmundo Couty de La Pommerais, que fora transferido das prisões da Conciergerie à da Roquette, estava sentado na cela dos condenados à morte.

Taciturno, imóvel, com os olhos parados, apoiava-se numa cadeira. A vela sobre a mesa iluminava seu rosto pálido, paralisado. A dois passos dele um carcereiro com os braços cruzados, encostado na parede, o vigiava.

Quase sempre, prisioneiros eram obrigados a trabalhar todos os dias e do soldo que recebiam era descontado pela administração, como prioridade, o custo de um caixão no caso de morte. Mas os condenados à morte não tinham trabalho obrigatório.

No rosto do prisioneiro não havia nem medo nem esperança. Tinha 34 anos, moreno, de estatura mediana, forte; nas têmporas os cabelos começavam a clarear; o olhar instável, a testa larga, mãos agitadas; a fisionomia calma e os modos distintos.

No Tribunal do Sena, a defesa do advogado Lachaud, apesar de brilhante, não alterara na consciência dos jurados a impressão transmitida pela acusação do senhor de Vallés. E La Pommerais, acusado de ter ministrado, com premeditação e fim delituoso, doses mortais de digitalina a uma senhora sua amiga - a Sra. De Pauw - ouviu a sentença de morte, conforme artigos 301 e 302 do Código Penal.

Naquela noite ele ainda ignorava a rejeição do recurso da pena e de qualquer audiência solicitada pelos seus familiares. Seu defensor foi atendido com displicência pelo imperador. O venerável abade de Crozes, que a cada execução suplicava branduras nas Tulherias, voltara sem nada conseguir. Comutar uma pena de morte poderia aparecer como uma abolição. Abrir-se-ia um precedente muito grave. O carrasco fora avisado que a execução seria no dia 9, às 5 horas da manhã.

Subitamente, um estrepitoso bater de coronhas de fuzil ressoou no corredor, a fechadura rangeu, a porta se abriu e o diretor da Roquette surgiu acompanhado de visitante que La Pommerais reconheceu como sendo Armand Velpeau, ilustre cirurgião. A um sinal o carcereiro saiu e o diretor, após formal apresentação entre os dois colegas, também se retirou.

* * *

Velpeau alcançava seus 60 anos. No apogeu da sua fama, herdeiro da cátedra de Larey no Instituto, primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris, era tido, pelos trabalhados executados, um luminar da patologia da época.

Depois de breve silêncio, ele disse:

- Entre médicos as condolências são inúteis. Por outro lado, uma moléstia - da qual morrerei nos próximos dois anos, ou, no máximo, dois e meio - me classifica, com alguns meses de distância do colega, na categoria dos condenados à morte. Vamos então ao que interessa.

- Então, segundo o colega e professor, a minha situação é sem esperança? - interrompeu La Pommerais.

- Teme-se - respondeu, simplesmente, Velpeau.

- Assim, a minha hora está marcada?

- Eu ignoro. Como ainda não está nada concretizado, o colega pode contar com alguns dias.

La Pommerais enxugou a fronte pálida com a manga da sua roupa de prisioneiro.
- Seja o que for, estou pronto. Quanto antes acontecer, melhor.

- Se o seu recurso não foi até agora rejeitado - prosseguiu Velpeau - a proposta que venho fazer é condicionada. Se for salvo, tanto melhor, caso contrário...

- Caso contrário?...

Sem responder, Velpeau apoiou o dedo médio no pulso do jovem condenado.

- Senhor La Pommerais, - disse - sua pressão revela tratar-se de um homem muito calmo, de uma firmeza rara. O que pretendo propor ao colega, que deve ficar em segredo, pode parecer, dirigida desta maneira a um médico cheio de energia e bastante destemido, uma extravagância ou mesmo uma intenção maldosa. Mas, mesmo que ela possa consterná-lo, no primeiro instante, espero que o colega a leve em consideração.

- Tem toda a minha atenção - respondeu La Pommerais.

- O amigo não ignora - continuou Velpeau - que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna é saber se algum resto de memória, reflexão, sensibilidade, persiste no cérebro do homem, depois que a cabeça lhe é decepada.

Ante tal preâmbulo, o condenado assustou-se, mas recompôs-se em seguida:

- Quando o professor entrou, - respondeu - eu imaginei mesmo alguma coisa nesse sentido, mas que pudesse ser interessante para mim.

- O colega certamente está informado dos trabalhos escritos sobre tais problemas: de Sommering, de Sue, de Sédillot, e de Bichat, até os mais modernos.

- Certa vez assisti seu curso sobre dissecação no cadáver de um justiçado.

- Ah! E tem noções exatas, numa visão cirúrgica, sobre a guilhotina?

La Prommerais respondeu com frieza:

- Não.

- Hoje mesmo estudei detalhadamente a guilhotina - prosseguiu Valpeau, sem comoção. - É um instrumento perfeito. Age a um só tempo como foice e como clava, corta o pescoço do paciente num terço de segundo, exatamente. O decapitado, com a rapidez fulminante do golpe, não sente nenhuma dor, como a de um soldado que perde o braço na explosão duma granada. A sensibilidade, pela exigüidade do tempo, é nula.

- Talvez a dor venha depois...

- Bérard fez justiça a essa fantasia - interrompe prontamente Velpeau. - Estou plenamente convicto, baseado em numerosas experiências e observações generalizadas, que o rompimento instantâneo da cabeça resulta numa anestesia absoluta. Saber que a síncope, provocada pela repentina perda de quatro a cinco litros de sangue - freqüentemente com força de expansão de projeção circular de um metro de diâmetro - deveria tranqüilizar os mais medrosos.

Quanto às reações inconscientes da estrutura carnal, mesmo que subitamente sustada no seu processo, não são indícios de sofrimento como no frêmito de uma perna cortada, cujos músculos e nervos se contraem depois da amputação, sem sofrimento do indivíduo. Eu digo que a febre nervosa da incerteza, a preparação da solenidade da execução, o assombroso despertar no dia fatal, se apresentam como os terríveis sofrimentos. Sendo, portanto, imperceptível a amputação, a dor real é imaginária.

Um golpe assim violento na cabeça, não só não é sentido, como não lhe deixa a consciência do fato: a simples lesão das vértebras provoca absoluta insensibilidade. A rescisão da cabeça, o corte da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o coração e o cérebro, não seriam então suficientes para exterminar qualquer sensação, mesmo íntima ou vaga, da dor? Creio que sim.

- Pelo menos eu espero que sim, mais ainda do que o professor! - responde La Pommerais. - Ainda que haja qualquer sofrimento físico - apenas concebido pela desordem sensorial e o sufoco crescente da morte - não é isso que eu temo. E outra coisa...

- Pode me explicar? - perguntou Velpeau.

- Escute, - murmurou Velpeau, depois de um instante de silêncio. - Eu penso que os órgãos da memória e da vontade estejam isolados na passagem da lâmina! Temos experimentado muitos equívocos até hoje, para que se possa falar da inconsciência imediata de um decapitado. Quantos homens, questionados, têm se dedicado ao problema?... Memória dos nervos? Movimentos reflexos? Não. Recorda-se da cabeça daquele marinheiro que, na clínica Brest, um quarto de hora após sua decapitação, moveu seus maxilares, talvez voluntariamente, partindo em dois um tudo colocado entre eles?... Para não escolher apenas este exemplo entre tantos outros, a questão seria saber se existe ou não o ego deste homem, que contrai os músculos da cabeça exangue. Quem poderia revelar isso? Antes de oito dias eu vou saber, mas... também esquecerei!

- Depende mesmo do colega esclarecer a humanidade a respeito, definitivamente - respondeu calmamente Velpeau, olhos fixos no interlocutor. - E falemos claro, é exatamente por isso que estou aqui. Fui delegado por uma comissão dos mais eminentes colegas da Faculdade de Paris, junto ao colega, aqui, para fazer a última tentativa junto ao imperador.

- Explique... Não entendo... - respondeu perplexo La Pommerais.

- Senhor de La Pommerais! Em nome da ciência, que nos é muito importante e que não conta mais com inúmeros mártires magnânimos, venho reclamar - na hipótese de alguma experiência entre nós for possível - reclamar de todo seu ser toda a energia e a coragem que se possa conseguir de um ser humano. Se o seu recurso de graça for negado, o colega estará numa condição ímpar como médico, competente e lúcido, a sofrer uma suprema e fatal cirurgia. Assim, seria inestimável sua cooperação comunicação experimental, em busca de esclarecimentos sobre o corpo e as sensações. A ocasião deve ser aproveitada. No caso de um sinal de inteligência, identificado depois da execução, o colega vai deixar um nome cuja glória científica obscurecerá para sempre a lembrança da sua culpa social.

- Ah! - murmurou La Pommerais, pálido mas com um sorriso resoluto. - Começo a compreender!... E de que natureza seria a experiência? Choque elétrico? Excitação do nervo ciliar? Injeção de sangue arterial?

- Ao colega é dispensável salientar que, depois da triste cerimônia, o seu cadáver irá repousar em paz sob a terra e que nenhum dos nossos instrumentos serão usados nele - acrescentou Velpeau. - Ao cair da lâmina estarei de pé diante do colega, junto à guilhotina. O mais rápido possível, a sua cabeça passará das mãos do carrasco às minhas. Então, gritarei, claramente, ao seu ouvido: "Senhor de La Pommerais, pode neste momento abaixar três vezes a pálpebra do olho direito, conservando o outro aberto?"

Se então puder o colega, quaisquer que sejam as outras contrações faciais, puder fazer o tríplice piscar de olhos, me avisando que me ouviu e compreendeu, provando assim o uso da memória e da vontade através do seu músculo palpebral, do nervo zigomático e da conjuntiva - controlando todo o horror e a onde de impressões do seu ser - bastará para iluminar a ciência e elevar nossas convicções. E seu nome, esteja certo disso, será anunciado de maneira que o colega será lembrado no futuro, não como um delinqüente, mas como um herói.

Diante destas palavras, La Pommerais pareceu tão emocionado que, com suas pupilas dilatadas e fixas no cirurgião, permaneceu alguns minutos em silêncio, imóvel. Depois se ergueu e deu alguns passos, balançando a cabeça com ar tristonho:

- A horrível violência do golpe vai me fazer desmaiar. Realizar o que me pedes, fica acima de toda a vontade e esforço humano. Mas, diz-se que as chances de vida não são as mesmas para todos os guilhotinados. Então volte, professor, no dia da execução. Responderei se concordo ou não com a empreitada, ilusória e impressionante. Se eu não concordar, conto com a sua palavra que a minha cabeça sangrará totalmente, até a última gota, no vaso de barro.

- Está bem, senhor de La Pommerais - disse Velpeau, levantando-se - reflita bem sobre o caso. Em seguida o doutor Velpeau saiu da cela. O carcereiro reapareceu e o prisioneiro se deitou, resignado, para dormir ou sonhar.

* * *

Quatro dias depois, às cinco e meia da manhã, o diretor da Roquette, o abade Crozes, os senhores Claude e Potiers, este conselheiro da corte imperial, penetraram na cela.

O doutor de La Pommerais, ao saber da notícia fatal, se conservou de cabeça baixa, muito pálido. Depois se levantou e se vestiu rapidamente. Em seguida, conversou cerca de dez minutos com o abade Crozes, ao qual já agradecera a visita. Ao avistar o doutor Velpeau anunciou:

- Tenho trabalhado, veja!

E, durante toda a leitura da sentença, conservou fechada a sua pálpebra direita, olhando o cirurgião com o olho esquerdo bem aberto.

Ao final, Velpeau se inclinou demoradamente diante do colega, depois voltou-se para o carrasco, que entrava com seus ajudantes, e trocou com ele um sinal, como a confirmar um tratado.

O apresto foi rápido. O fenômeno dos cabelos que se branqueiam rapidamente ao corte da tesoura nos condenados à morte, não ocorreu. La Pommerais recusou o copinho de aguardente e o cortejo seguiu pelo corredor. Diante do pátio, estando na porta o colega, murmurou-lhe:

- Daqui a pouco... adeus!

* * *

De repente os grande portões de ferro do presídio, que davam para a rua, se abriram.

A aurora despontava. Via-se a praça, organizada por um duplo cordão de cavalarianos. No centro, num semicírculo de guardas a cavalo, surgia o patíbulo. A uma certa distância, além do grupo de jornalistas, não havia ninguém. Mais embaixo, atrás das árvores, ouviam-se os rumores bestiais da multidão, cansada da vigília. Nas coberturas das tavernas, nas janelas, jovens corrompidas, lívidas, em roupas excêntricas; outras, ainda trazendo nas mãos as garrafas de vinho - surgiam acompanhadas de tristes casacas pretas. Já as andorinhas, madrugadoras, voavam em círculos, sobre a praça.

O cadafalso parecia prolongar até o horizonte a sombra dos seus braços estendidos, entre os quais, lá em cima, muito mais distante, no clarão da alvorada, se via brilhar a última estrela.

Diante deste fúnebre espetáculo, o condenado teve um calafrio; depois se aprumou e caminhou direto ao palco, inclinando-se na posição de entrega. A lâmina triangular brilhava junto ao negro madeirame; cinco pessoas se perfilavam no patíbulo e o silêncio, naquele momento, se tornou tão profundo que o leve rumor de um ramo quebrado pelos pés de um curioso chegou até o trágico grupo.

Soando a hora em que lhe foi negado o último recurso, o doutor de La Pommerais pôde ainda ver, do outro lado, seu ilustre colega, que o observava. Fechou os olhos, concentrando-se.

A mola escapou bruscamente, o botão cedeu e o brilho da lâmina oscilou. Um choque violento sacudiu a plataforma e os cavalos se agitaram, como a sentir o cheiro de sangue; o eco do barulho ainda vibrava quando a cabeça ensangüentada da vítima parecia palpitar entre as mãos do doutor Velpeau, avermelhando-lhe os dedos, os punhos, a roupa.

Era um rosto terrivelmente branco, olhos escancarados, com os supercílios arqueados e a boca contraída; os dentes pareciam soltos e o mento, na extremidade da mandíbula, estava cortado.

Velpeau curvou-se sobre a cabeça e, junto à orelha direita, fez a pergunta combinada. Apesar de preparado para aquela contingência, sobressaltou-se, sentindo um frio percorrer-lhe a coluna: a pálpebra do olho direito se abaixou, enquanto o olho esquerdo fixou-o, escancarado.

-Em nome de Deus e do nosso ser, mais duas vezes este sinal! - gritou, confuso.

Os cílios separaram-se, como sob esforço interno, mas a pálpebra não mais se ergueu e a fisionomia se tornou, aos poucos, rígida, gélida e, por fim, imóvel. Era o fim. Então o doutor Velpeau entregou a cabeça exangue ao carrasco, que a colocou num cesto, segundo os costumes, entre as pernas do corpo quase rígido.

O célebre cirurgião lavou as mãos numa das vasilhas destinadas à lavagem da guilhotina. O público se dispersava, silencioso. Também em silêncio, o doutor enxugou as mãos e caminhou a passos lentos, preocupado, até o coche que o esperava junto ao portão.

Ao sair observou a lúgubre carreta que se afastava rapidamente, para o cemitério dos justiçados.

por Villiers de L'Isle-Adam
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