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domingo, 18 de setembro de 2011

O Diabo

Guardo na memória essa tarde como nenhuma outra. Acredito ser a única que o tempo não conseguiu apagar. A única recordação igual ao fato.

Ele me vinha seguindo há muito tempo e eu nunca fugi dele. Estava mais ansioso de falar-me que eu de ouvi-lo.

Esse dia apresentou-se soberano, vermelho. Surpreendeu-me à saída de casa, dizendo:

- Não olhe para trás, siga caminhando como se nada houvesse acontecido. Somente você pode ver-me e perceberá que os outros vêem seus gestos, não os meus. Chegou o grande dia e aqui estou para levá-lo.

- Pensei que fôssemos discuti-lo antes - murmurei com dissimulação - necessito mais tempo.

- O prazo vence com o pôr-do-sol. Serei sua sombra nesta última hora.

- Você decidirá.

- Isso significa que posso não aceitar?

- Sim, - soltou uma gargalhada escura, cavernosa - mas terá que suportar as conseqüências...

- Você não me dá opção. Confesso não entender por que me escolheu, logo eu, um homem comum, normal...

- De maneira alguma - interrompeu, - você é o escolhido perfeito para ser meu sucessor do novo século.

- Sou sua antítese. Que tem isso de perfeito para você?

- Não se faça de espertalhão tratando de ganhar tempo. Reconheço que sua resistência é um dos aspectos que o faz mais interessante. Veja, vou conceder-lhe esses últimos minutos, mas não esgote minha paciência. Venha, ali há um banco, bem embaixo dessa árvore.

A capa vermelha sibilou no ar e apontou o banco da praça solitária. Um gesto teatral e mordaz que desprezei do fundo dessa estranha tranqüilidade que me invadia. A pequena trégua fortalecia minha oposição.

Acomodou-se, abrindo os braços em cruz sobre o espaldar, com ar de quem quer abarcar o mundo. Tratei de sentar-me no outro extremo, como se isso me afastasse de seu alcance.

- Observa o entardecer, - continuou - essas nuvens sangrentas, vá acostumando-se a sua paisagem futura, às eternas chamas de meu reino?

- Não o imaginava poeta,você tem algo de sensibilidade...

- Não tente ser irônico, sabe que sou imune a essas alfinetadas.

- Como eu às suas...

- Esse é o ponto! Um ser humano incorruptível, o maior atrativo ante meus olhos. Você é meu desafio. O formidável domínio que tem sobre sua consciência, a firme resistência a minhas influências, como não haveria de escolhê-lo?

- Isso é contraditório. Posso fazer de seu inferno um paraíso.

- Que não perca a onipotência, não sabe o que diz. Uma vez que me substituir você será completamente eu. Pensará e agirá como eu, reinará no inferno e na terra, gozará da tortura sobre mortos e vivos, encarregar-se-á da perdição de todo habitante do planeta. Esse há de ser seu destino durante um século completo, ao fim do qual escolherá seu sucessor. Sempre foi assim e sempre continuará sendo.

- A menos que me negue...

- Cabeça dura...Quando se convencerá que sou absolutamente necessário para o mundo? Pensa um pouco: sem o mal, que seria do bem? Sem a feiúra, existiria a beleza? Que sentido teriam a lealdade, a humildade, a sinceridade e toda esse moralismo sem a presença da traição, a altivez, a mentira, tudo enfim que eu represento? Pode olhá-lo deste modo. Estou oferecendo-lhe o reinado do equilíbrio, nada menos!...

- Um falso equilíbrio, dirá você. Sempre soube fazer bem seu trabalho, inclinando a balança para a sua conveniência.

- Porque sou inteligente e sagaz quando se trata de meu dever. Igual a você.
Esboçou um sorriso em meia lua, enorme e salivoso como um talho de melancia.

- Você esqueceu de acrescentar sem escrúpulos, diferentemente de mim - acrescentei mais pesaroso que temeroso - você ameaçou-me com a morte em suas formas mais horríveis e todos haveremos de morrer um dia, ignoramos se será contemplando um entardecer como este ou despedaçados sob a metralhadora da guerra, se nos iremos apagando de velhice ou carcomidos pela doença mais atroz. Não compreendo que perco negando-me.

Pela primeira vez me encorajava a enfrentá-lo. Minha atitude o exasperava, os olhos eram duas brasas, o semblante um sulco escuro e feroz. Mostrou os dentes:
- Talvez isto ajude sua decisão...

Bastou aquele seu gesto no ar e uma dor aguda instalou-se em minha nuca. Senti-me desvertebrado como um frango a quem torcem o pescoço. Quando meus olhos pareciam querer saltar das órbitas, a dor me abandonou de repente. Eu não havia deixado de olhá-lo.

- Como se atreve a desafiar-me fuzilou, furioso.

- Não tenho outra saída.

- Poderíamos fazer um pacto.

- Que você romperia sem dúvida. Jamais pactuaria com você.

- Agora é você que não me deixa opção.

Minha atitude exacerbou sua raiva e era óbvio que não teria piedade comigo. Iniciou então uma sessão de torturas infernais. Ignoro como consegui que se detivesse em cada uma de suas intenções, minha vista parecia perfurá-lo e ele renunciava à beira do fracasso. Contemplava-me atônito sem resignar-se à derrota.

- Ou talvez isto...ou isto - prosseguira.

O sol era apenas uma linha no poente. As primeiras sombras protegiam a cena da vista de possíveis curiosos. Veriam, surpresos, os movimentos epiléticos de um homem solitário revolvendo-se em um banco de madeira. A noite atiçava a paciência do diabo.
Foi quando apareceu esse gato vagabundo de aspecto mais que lamentável. De um salto trepou no banco miando sua fome e desamparo. Bastou esse instante de distração para que o demônio empalidecesse na penumbra. O tempo havia expirado. Acariciei o pelo do animal e, ao meu contacto, pareceu reluzir em negrura. Seus olhos, dois fusos amarelos, refulgiram e esfregou sua cabeça contra minha coxa.

- Vou chamá-lo Feri, - disse-lhe quase exausto ao tempo em que me erguia do assento, - não me engano, eu sei quem você é. Dependerá de mim o resto de meus dias, depois...só Deus sabe...

Da imagem vermelha não ficaram rastros.

Empreendi, manquitolando, o regresso à minha casa, o gato atrás de mim.

Passaram-se muitos anos desde essa tarde. Enquanto meu corpo se encurva e minha memória fraqueja, Feri parece cada dia mais jovem. A cada amigo que me visita devo mentir e dizer que, se bem conserva o nome, este felino enegrecido que dorme aos pés de minha cama é neto ou bisneto daquele Feri que recolhi na praça uma tarde que o tempo não conseguiu apagar..
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Conto de Ileana Schnitzler
Tradução de Sérgio de Agostino
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