Gravura holandesa mostrando o cerco a Olinda de Pernambuco em 1630. |
Foi o Brasil, no mundo colonial
ibérico, a única região onde repercutiram as lutas religiosas travadas
na Europa da segunda parte do século 16 à primeira do século 17. É esse
um dos aspectos mais importantes das tentativas de fixação de franceses,
ingleses e holandeses em vários pontos de nosso país. Pontos ainda não
estudados convenientemente.
Até hoje, a nossos
historiadores, preocupados tão-somente com as razões políticas ou com os
fatores econômicos da pirataria e conquista daqueles povos contra os
domínios ultramarinos dos portugueses, escapou aquela feição,
nitidamente definida de alargamento também da esfera de influência
protestante no universo.
A reforma luterana determinara,
na Europa, a famosa guerra dos Trinta Anos, a que pôs termo,
provisoriamente, a paz de Vestfália, celebrada em Münster, cujo tratado
adrede feito nada mais foi que a sementeira de agitações e lutas que
vieram até o tempo da revolução francesa, por sua vez preparadora
doutras lutas e doutras agitações. Depois de Lutero, Calvino formou
partidários na Suíça, Flandres e França. A nova seita protestante
dividiu a catolicíssima nação em huguenotes e papistas.
A Espanha imperial e católica
assumiu a liderança da contra-reforma. Daí suas intervenções na política
francesa desde o século 16, suas guerras em Países Baixos contra os
gueux calvinistas e seu longo duelo marítimo com a Inglaterra. Como
nação também fundamentalmente católica, Portugal teve de sofrer ataques
que se intensificaram em suas colônias da África, América e Ásia,
sobretudo após sua queda sob o domínio espanhol.
A heresia calvinista procurou
firmar pé no Brasil com o estabelecimento de Villegaignon na baía de
Guanabara. Os fundamentos religiosos dessa tentativa são evidentes, pois
discussões violentas em matéria de crença separaram os colonizadores da
França Antártica, e o episódio de João de Bolés nos demonstra a
tentativa de propaganda protestante entre os silvícolas, com destruição
conseqüente da catequese jesuítica.
Na conquista de Pernambuco e
terras adjacentes pelos holandeses, quase um século depois, é também
claro o elemento religioso. Os hereges perseguiram os católicos em
Recife e alhures, os passam a fio de espada como no engenho Cunhaú ou
tentaram a propaganda calvinista no seio da indiada, além de serem
apoiados sempre pela numerosa judiaria daquele tempo em terra
brasileiras.
No bastidor dessa luta de
religião no Brasil, há episódios interessantíssimos, que nos dão
informes curiosos sobre caracteres e ações de indivíduos nela
participantes, bem como até onde podia ir, na época, o sentido religioso
da vida. O do jesuíta Manuel ou Francisco Morais, pois se não sabe bem
seu nome de batismo, é dos mais elucidativos. No auto-de-fé realizado a 7
de abril de 1642, em Lisboa, pela Santa Inquisição, foi queimado em
efígie.
O que teria feito o padre pra
tão dura pena, embora fosse sacerdos in aeternum? Passou do lado dos
pernambucanos, que defendiam o Brasil luso-católico ao dos holandeses,
que representavam a conquista herege. E, como se isso não bastasse, sem
trepidar, lançando a batina às urtigas, abjurou o catolicismo, se
declarando calvinista e se casou com uma holandesa sectária desse credo.
Grande e grave foi esse escândalo em nossa vida colonial.
Tão, grande e tão grave que
repercutiu na própria existência, em nossas plagas, da ordem Inaciana,
pois que o invocaram pra justificar a falta de confiança na mesma que
alegavam todos quantos tinham interesse na escravização dos índios, que
ela tenazmente combatia, a fim da pôr fora de seus arraiais. Não
esqueçamos de que, um século e pico antes do marquês de Pombal, deste
lado do Atlântico, especialmente no Maranhão e em São Paulo, se
propugnou e efetuou a expulsão dos jesuítas. Em São Luís contra eles
tenazmente lutou Manuel Bequimão.
No volume 1, páginas 684 e 685, de Cronologia paulista,
de J. J. Ribeiro, se encontra, firmado por 124 homens bons de São
Paulo, entre os quais Amador Bueno da Ribeira, o Aclamado, o que não
quis ser rei, Domingos Jorge Velho, governador do gentio de cabelo
corrido, herói de Palmares, um dos grandes generais do sertão, e todos
os procuradores das vilas das capitanias de São Vicente e Santo Amaro,
notável documento que declara ter sido a expulsão dos jesuítas de São
Vicente, no mesmo ano, baseada no grande crime de padre Morais, da
capitania de Pernambuco.
Leiamos nesse papel o trecho que mais nos importa:"
...e juntamente constando que um padre de sua mesma ordem, religioso
professor, sacerdote e pregador, que governavam as aldeias dos índios de
Pernambuco, por nome padre Francisco Morais, ao qual constituíram
capitão e governo dos mesmos índios na guerra de Pernambuco contra os
holandeses, se rebelou e lançou com o inimigo levantando guerra contra
os nossos, assim ele com os mesmos índios, nos fazendo notável dano e
morte, de que procedeu a total ruína de Pernambuco por serem os índios
muitos em quantidade, e por remate se fez apóstata e foi casar em
Holanda, e tem os ditos reverendos padres tanta mão com estes índios que
se pode temer o risco de nossas vidas...".
Aqui os escravizadores da
bugrada se sangraram em saúde, aproveitando a negregada traição e
apostasia de padre Morais pra lançar caluniosa e vil suspeita sobre toda
a companhia de Jesus, apontada sibilinamente como capaz de usar os
índios contra os colonizadores lusos, como o fizera o infeliz sacerdote.
Pra isso exageram a importância de seu ato injustificável, lhe
atribuindo a total ruína de Pernambuco. Na opinião desses caçadores de
escravo de São Paulo, fora padre Morais um verdadeiro Calabar de batina.
Grande e negra a traição,
gravíssima a apostasia, mas nem uma nem outra de molde a causar essa
total ruína ou a transformar em flamengo-herege o Brasil luso-católico.
Na verdade, como chefe de várias aldeias de índios mansos ou em vias de
redução, adotar o calvinismo e levar todos esses íncolas ao grêmio
calvinista foi obra tão maléfica que custa a crer a tenha praticado um
jesuíta.
É o caso de recordar a lição
camoniana de que, mesmo entre os portugueses, alguns traidores houve
algumas vezes. Também entre os jesuítas. Não foi esse, infelizmente, o
primeiro e único exemplo. Outros, embora raríssimos e distanciadíssimos,
lhe sucederiam na viagem do tempo.
À gravidade do crime do Calabar
de batina correspondeu a pena inquisitorial: Morte da fogueira do auto
da fé lisboeta, em efígie, porque o novo calvinista se refugiara em
Países Baixos, fora do alcance da justiça que o perseguia.
Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.
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