Quando a ilha de Florianópolis era Desterro, as bruxas costumavam visitar os cemitérios, especialmente no interior e somente à noite. |
No século XIX a ilha se revela calma e tranquila. Ilha de Santa Catarina de Alexandria, que preferiu morrer a deixar de lado suas crenças e convicções. Mas, naqueles tempos de uma capital serena e bem provinciana, vez por outra, fatos estranhos costumavam acontecer, parecendo agora que a modernidade acabou com eles.
Manoel, de apelido Bieli, é um
pescador do Ribeirão, comunidade açoriana da parte sul da ilha. Tira do
mar o sustento, ajudando o pai na pesca dos peixes dadivosos da baía,
engastada entre o continente e os morros ilhéus. Usa da tarrafa para
trazer à terra saborosos camarões, como também auxilia a família na
beira do mar, principalmente as mulheres, na faina trabalhosa da catar
berbigões. Pecador solteiro, na juventude de seus vinte e cinco anos,
gosta de usar os domingos para esquecer o mar e tentar algum namoro com
as moças casadoiras da freguesia.
Numa tarde de domingueira
conheceu Nina, morena clara, baixinha, longos cabelos anelados, bem
feita de formas, pernas roliças e firmes escondidas dentro do vestido
de chita, que melhor se delineavam cada vez que se sentava no banquinho
da praça, em frente à igrejinha de estilo português. Uma pequena
berruga na testa, julgava Bieli, fazia com que ela parecesse mais
bonita e interessante, adereço ilhéu tão comum naquela gente açoriana.
Ele, num sábado, quando a missa da boquinha da noite terminava, se
declarou a ela na escadaria de pedras irregulares e largas, passadiço
que levava os fiéis à reza na igrejinha simples.
Ela o olhou com candura e
declarou o seu sim, o que fez o venturoso Bieli catar estrelas ao invés
de berbigões. Apesar do firmamento carregado de nuvens escuras, ele
relembra aquela noite com emoção e afirma que as estrelas e meteoros
nunca se fizeram tão brilhantes, um imaginário luar de contornos
prateados e suaves.
E voltou ele ao mar na segunda,
com vontade redobrada de mais peixes tirar da baía, já pensando em
viver com a amada num ranchinho próprio.
Na outra semana, numa
sexta-feira, ele vai com o amigo Édi, assim chamado por ser muito
trabalhoso falar Edeclésio, para a região de Naufragados, no extremo
meridional da ilha, em busca de peixes maiores que aumentam também a
renda suada.
No meio da pesca o vento
nordeste começa de mansinho, paa em seguida aumentar e não lhes permitir
a volta. A frágil embarcação, movida a remo e verga de bambu, não
conseguiria retornar ao ninho. Eles evitam a briga com o mar e se deixam
levar à terra no sentido inverso, aportando bem perto da saída das
águas para o mar do oceano. Estão em Naufragados, região erma e
desabitada, de muitas histórias de tormentas e naufrágios.
Escondem a canoa e procuram
abrigo. Por sorte, levaram pão e água, que faz enganar a fome. Os peixes
eram poucos e a noite começava com um negrume maior que o normal. Eles
se acomodam num canto de mato, pensando em ali passar a noite e voltar
no outro dia costeando as margens da ilha, se o vento nordeste não
arrefecer.
De repente. o Édi aponta na
direção do sopé do morro. Vira ao longe uma luzinha bruxuleante que
acendia e apagava. Bieli também divisa o estranho e fugidio vaga-lume,
formado pelos açoites do vento na galharia. Resolvem se dirigir para lá.
Talvez consigam uma refeição um pouco melhor, um calor de fogo que
lhes retempere o ânimo. Perdem muito tempo andando, pois a escuridão é
quase total.
Em determinado momento da
caminhada começam a ouvir um canto. Um refrão repetitivo de vozes
estridentes e femininas, palavras ininteligíveis e gargalhadas, talvez
uma outra língua. Eles seguem adiante, já com certo medo. O clarão de
fogo começa a aumemtar e melhor se delineia no escuro de uma noite sem
lua e sem estrela.
E, como por encanto, abre-se uma
clareira e eles, mudos, petrificados, amparados pelo negrume da noite,
veem à sua frente um espetáculo dantesco. Na clareira, iluminada por
uma grande fogueira no centro, estão a dançar umas vinte, talvez trinta
mulheres encarquilhadas e horríveis. Vestem longas túnicas negras,
grossas sobrancelhas e rostos angulados, narizes pontudos.
Apertam vassouras de mato nas
mãos nodosas e de longas unhas, algumas de chapéu cônico, outras de
coques que quase escondem o cabelo cor de galho seco, acinzentado. O
vento nordeste sibila insistente, mas nada se remexe na clareira. Parece
que ali o vento não entra.
Executam elas uma dança tétrica
em torno do fogo. A roda que formam ora segue para um lado, ora para o
outro. Ao lado do fogo, numa pedra lisa que mais parece uma mesa, com
um tipo rústico de toalha feita com pequenos pedaços quadrados de
tecidos das mais diversas cores, estão alguns objetos em metal e pedra,
amuletos sinistros, dentre os quais se destacam um enorme novelo de
corda e a estatueta de um abutre querendo alçar voo. Comentários havia
em toda a ilha faceira a respeito desses horrores. Agora, porém, os
dois pescadores adquirem a certeza de que naquele lugar de pesadelo há
uma reunião de bruxas, talvez um sabá que tenha até a presença do
Tibinga, o capeta ilhéu.
E elas continuam cantando sem
cessar a estranha melodia, antes bem fraca e agora ensurdecedora,
pontilhada de gritos e risadas macabras. Um caldeirão a exalar vapor ou
fumaça assoma em seu aço de um negro brilhante, que uma delas remexe
metodicamente. Pegam elas canecas de barro e provam do estranho
preparado, que parece fazer com que voltem à roda com mais vontade e
fervor, continuando o canto sibilante e histérico. Eles permanecem na
treva, olhos arregalados, mudos e paralisados de pavor.
De repente uma delas pára o
canto esganiçado, sai da roda, volta-se para eles e lhes aponta o longo
dedo indicador. O ohar que despeja é terrível. Parece penetrá-los,
possui-los, fazendo com que permaneçam quais estátuas de pedra e medo
ante a terrífica medusa. Ela ri uma risada horrenda, o olhar penetrante
lhes atravessa a alma. As outras, ao notar que a companheira parara,
param também e se voltam na mesma direção. E os dois homens, apavorados,
têm a fitá-los não um daqueles olhares terríveis, mas todos os olhares
macabros do mundo.
Elas param a dança, as feições
maléficas na direção da sombra, uma risada em coro que finalmente tem o
condão de lhes despertar do torpor. Bieli e o amigo voltam a si e
disparam em desabalada carreira na direção do mar, pois nas histórias de
roda de fogo tinham ouvido dizer que as bruxas detestavam água.
Elas não os seguem e retornam ao
canto, mas, para eles, todas as bruxas da terra estão ali atrás. Ao
chegar à praia, fazem retornar a canoa à baía com todo desespero que as
forças permitem. Arquejantes, lançam-se ao mar e passam uma noite
diabólica, brigando com o vento e as ondas.
É de manhã quando aportam na
freguesia. E contam para todos a aventura da véspera, sendo recebidos
com o riso de muitos e a dúvida de poucos.
No domingo, Bieli encontra a sua
Nina e lhe conta o ocorrido. Ela o ouve de olhos baixos, tranquila.
Quando ele termina, estranha a placidez da amada.
Neste momento, ela levanta os
olhos para ele e Bieli tem um frêmito de pavor. E sabe, com aterradora
certeza, que já vira antes o olhar da namorada, o mesmo olhar da bruxa
que primeiro descobrira os dois intrusos.
Desta vez não foge, pois sabe
que não adiantaria. Já está inexoravelmente dominado. Ela pega a mão
gelada do pescador e eles começam a passear em torno da praça.
Nina irá conduzi-lo pelo resto da vida.
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Da Série "Recordações Açorianas X".
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