terça-feira, 12 de março de 2013

Herói e mártir

Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa.

E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóias caras. E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás.

Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles (2).

Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — "Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino".

Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã.

O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — "Que diálogo! Que diálogo!".

Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia: — "A mulher brasileira não chega aos pés da francesa". O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi.

E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — "o Brasil é um país de quinta ordem". E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — "O brasileiro não sabe fazer uma frase".

A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França.

Quando o táxi passou pelo relógio da Glória, eu pensava em D'Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — "Por quê? Por quê?". Fisicamente, D'Annunzio era o antifauno — pequenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D'Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.

Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase.

Vejam a última "Revolução Francesa". Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a já insuportável "É proibido proibir". Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo.

Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa francesa. "É proibido proibir", mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da "jovem irracionalidade" varreu a França.

Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro "não sabe fazer uma frase". Dirá um patriota de penacho: — "Mas é injusto! Injusto!". Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.

Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês se Pedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia.

Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosidade, de praia, de Antonio's — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.

E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de uma inveracidade total. O brasileiro sente como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.

Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o "É proibido proibir". Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.

Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera.

É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.

(2) Personagem criado por E. W. Hornung, Raffles é um aristocrata inglês arruinado que, para manter-se condizente com a sua condição social, torna-se um sofisticado ladrão. [Nota Guinefort]
[28/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Lição de nudismo

Nasceu o primeiro menino nudista! Deu-se que uma dama de pouca roupa, habitante da Ilha do Sol, ilha onde reina a popular Luz Del Fuego, conheceu, no mesmo local, um cavalheiro, chamado Ladário Brito, que se veste na Sem-Cal. A jovem, cujo nome é Cleide, se apaixonou-se (vê aí onde fica melhor colocado o oblíquo, Osvaldo) pelo Ladário e, já vai pra mais de um ano, a dupla casou.

Agora — noticiam os jornais — vem de nascer o primeiro menino nudista. Sim, porque, mesmo depois de casados, Ladário e Cleide continuaram firmes como sócios do Clube Naturalista do Brasil, com sede na acima citada Ilha do Sol.

A mãe do primeiro menino nudista é quem dá entrevista à imprensa saudável, explicando que a criança, se tivesse nascido menina, ia se chamar Lua mas felizmente — nasceu menino e será batizado com o nome de Sol, coitadinho. De qualquer maneira, Sol é melhor do que Lua, pois tem luz própria, ainda que não seja Del Fuego.

Dona Cleide Brito está contentíssima com o nascer do Sol e já declarou que o seu júbilo é enorme. Tão grande que até parece que o Sol nasceu pra todos. Ela foi muito fotografada logo após o Nascente e os jornais abriram espaço para dar um lugar ao Sol, razão pela qual também apareceram nas reportagens diversas fotos do menino.

Nós — embora achando que nudismo é como brincadeira, isto é, tem hora — não podemos deixar de cumprimentar o casal e muito principalmente a jovem mãe que deu.à luz o Sol. Apenas gostaríamos de corrigir um equívoco de Dona Cleide, no que tange à sua declaração de que seu filho é o primeiro menino nudista nascido nesta cidade.

Para não cometer um erro, andamos mesmo a consultar entendidos no assunto, acabando por recorrer à Tia Zulmira, como sempre fazemos em caso de dúvida. Pedimos à sábia ermitã da Boca do Mato para nos informar se não é precipitação de Dona Cleide reclamar para seu filho o título de primeiro menino nudista.

A experiente parenta nem pestanejou para responder que, de fato, há aí um erro que a sócia do Clube Naturalista cometeu, com relação a prioridades nudistas do garoto. E acrescentou, não sem antes meter um pouco de malícia:

— Salvo um ou outro cocoroca que já nasceu de touca, todo menino, quando nasce, é nudista.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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segunda-feira, 11 de março de 2013

Dia do Papai

A jovem senhora, realmente muito bonita, estava na boca de uns e outros. A Candinha já morara em seu assunto. Madame, de fato, tinha sido educada no ambiente sadio do Vogue, fora mais ou menos modelo de casa de modas e tinha até feito sua experiência no chamado teatro rebolado. Depois conheceu o otário, aliás, o marido, e casara. Tivera um filhinho mais ou menos louro, embora o acima citado fosse mais ou menos moreno.

Na época, Primo Altamirando — muito do mau caráter — chegou a comentar:

— Tava lá Mane Sinhô. (1)

O menino cresceu até ficar de bom tamanho, a distinta até que andava mais pra calma do que pra assanhada, e o murmúrio foi diminuindo até parar. O marido não tomava conhecimento, mesmo porque, conforme diz o ditado: "os maridos e os Diários Associados são os últimos a saber".

Veio, então, o "Dia do Papai". Chamaram o garoto, deram um embrulho a ele (quem'deu foi a vovó, coitada, sempre tão amiga de datas), e explicaram :

— Isto é um presente, porque hoje é o "Dia do Papai". Você pega esse presente e guarda. Logo mais você entrega ao seu pai.

O garoto, que adorava ouvir conversa, fez que sim com a cabeça e disse que tava legal, que depois entregava o presente ao Papai. A avó ainda deu um beijinho nele antes de sair, crente que tudo ia acontecer como ela previa. Depois veio o fim da tarde, a mãe do garoto — a que tinha sido até candidata a Rainha de um baile aí — chegou do dentista, o marido dela chegou logo em seguida e aí caiu a noite.

O menininho então lembrou-se da recomendação da avó. Tinha que pegar o embrulho do presente e entregar ao Papai. Foi lá dentro, apanhou o embrulho no armário, botou debaixo do braço e saiu pra rua. Entrou na casa ao lado, tocou a campainha e, quando o vizinho apareceu, entregou-lhe o embrulho.
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(1) Tava lá Mane Sinhô. — Trecho da canção "Uma Casa de Caboclo", que vem logo depois daquele pedaço em que o cantor diz que numa casa de caboclo um é pouco, dois é bom, três é demais. O terceiro, no verso, era Mane Sinhô.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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