segunda-feira, 28 de maio de 2012

Uma guerra maometana no Brasil

Negro muçulmano - Debret
A religião de Maomé e a civilização árabe chegaram ao Brasil através dos escravos importados das regiões africanas de cultura árabe. Tentaram até deflagrar uma guerra santa na província da Bahia, onde eram numerosos.

Davam a si próprios nomes de mussulmis, muçulmanos, mas os outros escravos negros, de origem banto ou congolesa, os denominavam malês, isto é, gente do império africano e maometano do Níger-Mali. Malê era uma corruptela da palavra Malinké, gente de Mali.

Esses escravos muçulmanos pertenciam aos povos haussás ou auçás, nagôs ou jorubas (iorubás), tapas, jejes, grunas, bornos, cabindas, barbas-minas, calabares, jobus, mendobis e benins. Não seguiam ortodoxamente o Corão, porém as práticas duma das seitas do Islã que se espalharam na África. Alguns possuíam certa instrução, muitos sabiam ler e escrever em árabe. Obedeciam a imames, chamados limanos ou alumás, e a marabutos ou santarrões.

As primeiras insurreições desses negros maometanos na Bahia foram preparadas pelos auçás em 1807 e 1809, sendo esmagadas pelo governador, conde da Ponte. Durante os anos de 1813 e 1816 o governador conde dos Arcos venceu duas novas rebeliões desses mesmos auçás. Em 1826, 1827 e 1828 os iorubás se levantaram, foram vencidos e duramente castigados pelas autoridades. Em 1830 nova revolta abortou devido a uma denúncia.

A guerra santa explodiu em 1835. Durante essa época, devido à revolução dos farrapos no Rio Grande do Sul, as províncias do norte, entre elas a da Bahia, estavam desprovidas de tropa. Os mussulmis ou malês aproveitaram essa circunstância favorável prum golpe de surpresa que lhes devia entregar a cidade de Salvador, onde pretendiam chacinar os brancos e proclamar uma rainha negra, a escrava Sabrina, que afirmavam ser uma princesa em sua terra natal.

Pra se reconhecerem, durante a luta, todos deviam usar uma gandura ou camisola branca com cinta vermelha. Todos os documentos dessa grande conspiração, escritos em língua e caracteres árabes, estavam no Arquivo Nacional.

O movimento devia eclodir durante a noite de 24 a 25 de janeiro de 1835, durante os festejos tradicionais no arrabalde do Bonfim, a cuja famosa igreja quase toda a população da cidade costumava ir em peregrinação. Os escravos marchariam de vários pontos sobre a cidade semi-deserta e se apoderariam dos quartéis e pontos estratégicos, semeando, em toda parte, confusão e morte.

Tudo fora minuciosamente preparado em segredo no seio das djemas ou associações religiosas que mantinham os escravos em contato, sob a orientação da sociedade secreta Ohogbo. Escravos libertos, enriquecidos no comércio e pequenas indústrias locais, forneciam arma, munição e dinheiro. Havia escravos organizados em grupos militares e muito bem armados. Mulatas e negras libertas serviam de elementos de ligação.

Duas dessas mulheres se apavoraram na última hora e denunciaram a conspiração às autoridades, que tomaram logo providência de caráter militar. Enquanto reforçavam postos, guardas e patrulhas, os mussulmis já se reuniam nos pontos de antemão combinados. Alguns soldados de polícia, que procuravam escravos fugidos, alarmaram inadvertidamente esses ajuntamentos. Os conjurados se julgaram descobertos e perderam um tempo precioso modificando as ordens e senhas pro movimento, o que permitiu ao governo tomar mais medida de precaução.

Ao começar a madrugada os pretos, armados de chuços, espadas, facas, pistolas e espingardas, se lançaram, em várias colunas, sobre a cidade. Uma dessas colunas atacou o palácio do governo, a segunda o quartel de polícia, a terceira o forte de São Pedro e a quarta a caserna da infantaria de linha. Os poucos soldados que guarneciam esses postos as repeliram com duas ou três descargas. Então, os escravos se espalharam nas ruas da vizinhança, saqueando as casas e matando os moradores.

Uma quinta coluna marchava na beira-mar e foi atacada pela polícia em Água de Meninos. Combate terrível! Os negros se defenderam como heróis. Sua resistência somente cedeu diante do assalto, na retaguarda, que lhes deram os marinheiros dos navios de guerra surtos no porto. Grande número de cadáveres ficaram na praia. Inúmeros ficaram feridos.

Na manhã o movimento rebelde estava inteiramente dominado. Se enchiam as prisões de escravos vencidos. Se instaurou um processo que só terminou nove anos mais tarde, em 1844.

Muitos dos rebeldes presos, condenados à morte, foram fuzilados ou enforcados. Outros receberam pena de prisão mais ou menos longa. Enfim, alguns voltaram à África, mandados pelas autoridades, pois não tinham grande prova contra eles e os reputavam perigosos, capazes de nova articulação. É provável serem esses os sacerdotes maometanos da pretalhada, os chamados alumás ou limanos.

Essa foi a guerra maometana que houve no Brasil e da qual pouca gente tem notícia. Ameaçadora e de curtíssima duração. O povo traduziu a seu modo o nome dos co-participantes dessa frustrada guerra-santa: Malês, gente da má lei, da lei má, más leis.

A lei má era o Corão que, espiritualmente, regia esses pobres negros trazidos de Benim e Senegal, que os antigos cronistas lusos chamavam Çanagá.

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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.
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sexta-feira, 18 de maio de 2012

Observações morais, satíricas ou irônicas

"O homem que se vende recebe sempre mais do que vale".

"Quem foi mordido de cobra até de minhoca tem medo".

"Sabendo levá-la, a vida é bem melhor do que a morte".

"As criança atingem aos sete anos a idade da razão. Depois disso, começam a praticar toda espécie de loucura, até o juízo final".

"É mais fácil sustentar dez filhos do que um vício".

"Diplomata é um homem inteligente que consegue convencer a senhora que, com um casaco de pele, pareceria muito mais gorda".

"A esperança é o pão sem manteiga dos desgraçados".

"Queres conhecer o Inácio, coloca-o num palácio".

"O mal alheio pesa como um cabelo".

"El vivo vive del sonzo y el sonzo, de su trabajo".

"Há Cadillacs de oitenta cavalos, sem contar com o proprietário".

"Aquele senhor era tão tímido que até tinha vergonha de proceder honestamente".

"Desgraça de jacaré são essas bolsas de couro".

"A primeira ação de despejo de que se tem memória foi a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, fundamentada na falta de pagamento de aluguel e comportamento irregular".

"Esporte é tudo aquilo que fazemos para deixar de fazer justamente aquilo que deveríamos fazer".

"Os homens são sempre sinceros. O que acontece, porém, é que às vezes trocam de sinceridade".

"Quem é mais porco? O porco ou o homem que come o porco?"

"O médico militar é um doutor que examina rigorosamente o soldado para ver se ele está em perfeito estado de saúde para ir morrer no front".

"Adolescência é a idade em que o garoto se recusa a acreditar que um dia ficará cacete como o pai".

(Barão de Itararé)
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Do livro "Máximas e Mínimas do Barão de Itararé", Editora Record - Rio de Janeiro, 1985, pág. 115.
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Homem no mar

De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.

Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele.

Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.

Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá.

Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.

É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".

Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.

Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

Janeiro, 1953.
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Extraído do livro "A Cidade e a Roça" - Rubem Braga - Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 11.
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